Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

A Comédia da ONU

 

 

 

 

 

 

Legionário, n° 704, 3 de fevereiro de 1946

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Nem todo o mundo penetrou o sentido profundo do que se passou na ONU acerca da política iraniana, malaia e grega. Esses lugares são distantes, ocupam no desenvolvimento de nossa civilização um papel secundário, figuram no rol numeroso e obscuro das potências de última classe. Tudo isto é próprio a diminuir o interesse do grande público pelo que ali se passa. Tanto mais quanto, faltando-lhe informações sobre as figuras e problemas desses lugares, dificilmente pode o "homem da rua" compreender o intrincado manejo político que presentemente se faz sob os rótulos iraniano, malaio e neo-helênico.

E, com isto, a ONU, a Europa, América e o mundo vão sendo arrastados para situações e crises que as massas ocidentais nem sequer compreenderão a fundo.

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O Legionário é adversário irredutível deste sistema de "imbroglio", em que os "brasseurs d'affaires" e suas agências telegráficas costumam ocultar as operações confusas, e quase sempre muito pouco limpas, da alquimia política. Assim, tentamos esclarecer nossos leitores, ao menos em certa medida, sobre os debates que se travaram na ONU.

Antes de tudo, esclareçamos que já se foi o tempo em que a posse de uma aldeia na Alsácia ou na Lorena tinha tanta importância que punha o mundo em guerra... enquanto territórios imensos na África ou na Ásia se ganhavam ou se perdiam sem que quase ninguém o notasse. A facilidade dos transportes tornou os mercados fornecedores e consumidores, africanos ou asiáticos, absolutamente essenciais para o comércio e a indústria do Ocidente. A perda de uma aldeia alsaciana pode significar quando muito, para o país vencido, uma dolorosa amputação. A perda de um território africano ou asiático significa, para a maior parte das potências coloniais, uma crise séria, e quiçá total, de todo o seu sistema econômico e social: de onde a perspectiva de todo o cortejo de privações, lutas intestinas, crises, prejuízos no domínio do prestígio internacional etc., que costumam acompanhar semelhantes fenômenos.

A perda de uma aldeia alsaciana seria uma questão de tamanho maior ou menor, do território nacional. A perda de um território africano ou asiático é uma questão de vida ou de morte para todo o país.

Esta é a verdadeira situação.

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O que se diz da Ásia e da África, pode-se dizer da Oceania, e também, em certa medida, dos Balcãs. Com efeito, o domínio dos Balcãs está em íntima conexão com o domínio da posição chave que é, geográfica, militar e economicamente, Constantinopla. Possuir a chave de Constantinopla é possuir o meio de engarrafar ou desengarrafar a marinha russa, quer mercante, quer de guerra. Por outro lado, os Balcãs ainda possuem riquezas minerais e agrícolas pouco exploradas, sendo, pois, "países semi-coloniais" de que são ávidas as grandes empresas americanas, européias, etc.

Qualquer problema concernente a países asiáticos como o Irã, oceânicos como a Indonésia, balcânicos como a Grécia, é de importância fundamental no mundo hodierno.

Sem que o leitor incruste a fundo em seu espírito essa noção, não poderá compreender o abc da política atual.

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A estes elementos se soma outro. Rússia, EE.UU. e Inglaterra disputam veladamente (?) o domínio do mundo. Rivalidade política, "a prima facie", interessando a fundo três dos maiores povos contemporâneos. Contenda ideológica, em segundo lugar, porque a vitória russa trará a implantação do regime soviético em todo o mundo, e isto, por sua vez, significa um "renversement" ideológico completo no mundo hodierno. Batalha econômica, por fim, porque o problema da economia privada ou coletiva está ligado a fundo, a tudo isto.

Nesta imensa rivalidade internacional, é bem de ver que tudo se disputa palmo a palmo. Uma posição-chave na Indonésia ou na Grécia, ganha ou perdida, pode significar uma completa mudança no mundo de amanhã.

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Conflito imensamente vasto. E não só. Imensamente intenso, também. Tudo quanto pode acalorar, excitar, e até por em delírio os homens, joga-se nesta colossal partida. O dinheiro, o poder, a glória, a Fé, tudo aquilo por que se movem os homens maus ou bons, tudo está em jogo numa partida de vida e de morte. Não é preciso dizer mais, para que se compreenda até que ponto se disputa cada carta de baralho neste formidável jogo.

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Tal, o panorama político-ideológico. Agora, o lado jurídico-diplomático.

A ONU é uma organização internacional com funções judiciárias. Cabe-lhe decidir as questões entre os Estados-sócios, desde que eles não as consigam resolver em negociações diretas.

A URSS e o Irã tiveram um incidente diplomático muito fácil de explicar: é que a URSS invadiu pura e simplesmente importantes zonas do território iraniano. Como o animal da fábula, o Irã é "une bête trés mechante". Imagine-se que "quand on l'attaque, elle se défend"! Não pode haver pior. E, de tão má, ela se foi queixar à ONU.

A URSS é uma das fundadoras da ONU. Ela deveria, pois, aceitar de inteiro coração a idéia de submeter à ONU o conflito. Mas, pelo contrário, ela se opôs. E o primeiro ardil que encontrou foi este: se a Inglaterra votasse a favor do pedido iraniano, e assim exigisse que a questão fosse submetida à ONU, a URSS também exigiria que a ONU deliberasse sobre a questão grega e a questão indonésia.

Prontamente, com uma fleugma bem britânica, a Inglaterra concorda. Ela se sentaria de bom grado no banco dos réus... para que a URSS também fosse julgada. Era um desafio moral. Ela aceitava de boa mente uma devassa em sua política. A URSS que também a aceitasse. O mundo veria qual das duas tinha as mãos limpas.

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A URSS não quis que o mundo visse qual das duas tinha as mãos limpas. Na reunião da ONU, o Sr. Vichinsky deblaterou com socos na mesa, gritos, toda a pirotécnica de um carroceiro que se quisesse impor, representando o papel de um Wotan wagneriano.

Entrementes, a comédia tomava outro rumo. Caía o governo persa, segundo a URSS "havia previsto". Não é difícil prever aquilo que a gente mesmo prepara. Assim, a URSS "previu" muito facilmente a coisa.

Subiu ao governo outra "equipe" política. E a URSS, por motivos que ela mesma conhece, quis abrir negociações com a nova "equipe". É que sabia não encontrar diante de si nem a coragem, nem a envergadura da equipe anterior.

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Mas a velhacaria é a força dos fracos e a coragem dos poltrões. A "equipe" persa teve medo de negociar a só com a fera soviética e pediu que a ONU estivesse presente às negociações. Junto aos domadores inglês e americano, o camundongo se sentiria mais à vontade para discutir negócios com a pantera.

A pantera não quis. Rugiu toda espécie de sofismas. E firmou o princípio de que quando um assunto está em curso na ONU, e ambas as partes resolvem negociá-lo diretamente, a ONU deve deixar de tomar conhecimento do assunto.

O que quer dizer que sempre que a URSS fizer cair um governo qualquer, por um golpe comunista, poderá retirar da agenda da ONU seus assuntos e se entender com o "Quisling" ou o homem de papel que haja feito subir no pobre país vizinho. O que eqüivale a dizer que a ONU é para os outros e não para ela.

Discutiram os diplomatas. Por fim, chegou-se a um acordo. De fato, a ONU não terá mais direito de interferir nas negociações. Mas será informada a respeito dela. Isto é, o domador não pode mais ficar dentro da jaula, ajudando o camundongo. Mas, pode ficar de fora, com a porta da jaula semicerrada.

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O que, tudo, equivale a uma formidável comédia. Desde já se pode dizer que a ONU fracassou pela má fé soviética. E a grande experiência que daí se tira é de que com os soviéticos não se negocia, como não se negocia com gangsters, apaches ou nazistas. O mundo civilizado perceberá isto? Ou cometerá o erro de capitular indefinidamente ante os vermelhos, como já capitulou ante os pardos?