Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
O corpo místico de Satanás

 

 

 

 

 

 

Legionário, 13 de janeiro de 1946, N. 701, pag. 5

 

 

Não é o discípulo maior que o mestre, nem a sorte dos filhos de Deus superior à que foi reservada à Igreja, a qual, segundo as palavras do Redentor, seria perseguida pelas potências da terra, dilacerada por heresias e cismas, e que haveria escândalos em seu seio, crescendo o joio junto do trigo. Não fosse a Igreja divina e não poderia subsistir à rudeza desses golpes. Não fosse a graça de Deus e seríamos devorados pelo príncipe deste mundo, pela prudência da carne, esse monstruoso composto de malícia e de iniquidade.

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E assim como na vigência do Velho Testamento vemos a confusão social, o comunismo e o cesarismo totalitário como consequência do “non serviam” de Lúcifer, como consequência do naturalismo e do panteísmo, do mesmo modo vemos a partir do Novo Testamento que todas as heresias, qualquer que haja sido seu ponto de partida, seus variados nomes e suas variadas formas, todas têm em comum o fato de deformarem o dogma da Encarnação do Verbo e, por via de consequência, resvalarem para o panteísmo, para o fatalismo, para o comunismo.

Ao lado da Igreja nascente, vemos se insinuar a heresia dos judaizantes ou ebionitas. A ela se referem São Pedro e São Paulo em suas Epístolas. Eram judeus cristianizantes ou cristãos judaizantes. Distinguiam-se do resto dos judeus, porque reconheciam em Jesus Cristo o Messias; separavam-se dos Cristãos porque não admitiam a divindade do Salvador. Negavam, portanto, o dogma da Encarnação e adotavam o panteísmo oriental, segundo o qual o Messias era o mais elevado dos espíritos emanados de Deus. Até aqui o erro religioso. Não lhes faltava, porém, o erro social. Professavam a comunidade de bens, não como um conselho, mas como uma prescrição que falsamente imputavam aos Apóstolos. Permitiam, ademais, a poligamia. E vemos assim que desde os primeiros dias do Cristianismo, a negação do dogma fundamental da Encarnação se caracterizou pelo panteísmo e pelo comunismo.

O mesmo podemos afirmar dos gnósticos de que provieram os maniqueus. Negavam, como os ebionitas, o dogma da Encarnação. A diferença, porém, é que enquanto aqueles negavam a divindade de Cristo, estes negavam sua humanidade. Praticavam a doutrina panteísta da emanação, de fundo oriental, o panteísmo da matéria, princípio emanador do mal; e o panteísmo do espírito, cujo princípio emanador era o bem. Professavam, assim, o horror das coisas materiais e se afastavam do casamento, como perpetuador da matéria, princípio do mal, e da posse dos bens terrenos, como apego a um mau princípio. Mas como todas as seitas que ousam reprovar a união legítima dos sexos e a legítima propriedade dos bens, caíram nas piores torpezas e na mais crassa subversão da ordem social: eram verdadeiros socialistas e comunistas. Suas inscrições descobertas no século passado na Cirenaica dão-nos um valioso testemunho das idéias desses gnósticos maniqueus. Uma coloca na mesma plana Thot, a divindade lunar dos egípcios, Kronos, Zoroastro, Pitágoras, Epicuro, o persa Mazdac, João e Jesus Cristo, afirmando que todos eles unanimemente ensinaram a comunidade de toda propriedade. A outra inscrição diz: “A comunidade de todos os bens e das mulheres é a fonte da justiça divina, e a perfeita felicidade para os homens bons tirados da populaça cega”.

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O mesmo poderíamos dizer dos patripassionistas, do arianismo, do pelagianismo, do nestorianismo e de outras heresias do período da definição dos dogmas.

Para evitar a monotonia, citemos apenas o exemplo do nestorianismo. Todas as heresias precedentes haviam posto em dúvida a existência, ora da Divindade, ora da humanidade de Jesus Cristo. O nestorianismo veio explorar um outro filão herético, aquele que não mais tocava na existência, mas nas relações naturais e nas operações recíprocas das duas naturezas existentes no Salvador. Foi, portanto, atacada a unidade da Pessoa, como havia sido a dualidade de natureza. Nestório, Arcebispo de Constantinopla, afirmava que havia dualidade de Pessoa, como havia dualidade de natureza. Segundo ele, havia em Cristo duas pessoas colocadas uma ao lado da outra, unidas exteriormente e moralmente. Escandalizava-se da denominação de Mãe de Deus universalmente dada a Maria e sustentou que se devia dizer simplesmente Mãe do Cristo, e que o homem nascido de Maria devia ser denominado Teóforo, ou o que leva a Deus, como templo em que Deus habita. Portanto, a Encarnação nada mais era que uma simples habitação do Logos em Cristo, o que equivale a dizer que o Verbo eterno não se havia feito homem. Procedia essa heresia do maniqueísmo, e com os erros a que deu causa, sobretudo depois de desenvolvidos por Eutiques, descambou para o primitivo gnosticismo panteísta.

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Passemos, porém, à Idade Média. Podemos dizer que a Cruz e o crescente são bem os símbolos representativos da luta entre as duas Cidades nessa fase da História. São Tomás de Aquino, com a Suma contra os gentios, e Carlos Martel detendo pela espada o avanço dos infiéis na Europa cristã, são os seus homens representativos. Ora, o islamismo se estabeleceu, sobretudo, à custa do arianismo, do nestorianismo e do eutiqueísmo que infestavam a Igreja no Oriente.

Eis, mais uma vez, as heresias combatendo o dogma da Encarnação do Verbo e da Maternidade divina de Maria, e abrindo as portas à barbárie, portadora do deísmo fatalista e do aviltamento da mulher.

Do Oriente os restos dessas seitas gnósticas sobem para a Europa, e começam a infestar com suas doutrinas a Bulgária, a Croácia e a Dalmácia. Penetram nas caravanas de peregrinos da Hungria e não tardam a surgir na Itália e no sul da França. Esses chamados búlgaros passam ao território dos albigenses. E eis-nos diante da segunda grande frente de combate contra os inimigos do dogma da Encarnação e da ordem social, na Idade Média.

Os albigenses professavam o mesmo panteísmo dualista dos maniqueus. Rejeitavam o dogma da Encarnação do Verbo, negando a igualdade das três pessoas divinas, com os arianos; rejeitavam também a humanidade de Jesus Cristo, reduzindo-a a um puro fantasma, com os docetistas e seguidores de Eutiques. Demonstravam grande ódio contra a Igreja, contra a tradição, contra os Sacramentos, contra a intercessão dos Santos, contra a Ave-Maria, contra o culto das imagens, contra tudo enfim que lhes pudesse lembrar o mistério de um Deus que se fez homem, supremo objeto do culto católico.

E é quase escusado dizer que caíram nos mesmos erros sociais. A propriedade, a justiça, o matrimônio, a hierarquia social não foram menos combatidos por eles do que a Religião. Neles também encontramos o germe do comunismo.

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E a esta altura convém assinalar uma outra característica comum dessas heresias através da História. É o mistério de suas sociedades, de seus juramentos, de seus símbolos, de sua fraternidade subterrânea.

Santo Agostinho descreve as cerimônias secretas dos gnósticos maniqueus, em que tomara parte em sua juventude. Reproduzem elas as práticas ainda hoje seguidas pelas sociedades secretas. Os historiadores da heresia albigense e dos templários também nos esclarecem sobre essas iniciações secretas. E se há continuidade de ação no Corpo Místico de Cristo, por que não haverá essa mesma continuidade no Corpo Místico de Satanás? Se há um plano de Redenção, porque não haverá um símile caricato que será o plano de perdição? Esse encadeamento das heresias no erro teológico do panteísmo e do naturalismo, e no erro social do socialismo e do comunismo não está a indicar sua filiação subterrânea, mais de uma vez comprovada pela solidariedade do espírito herético através dos séculos?

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É o que veremos ao estudar o protestantismo em suas relações com as heresias anteriores e os erros desencadeados sobre o mundo da Renascença aos nossos dias.