Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
Os dois estandartes

 

 

 

 

 

Legionário, 6 de janeiro de 1946, N. 700, pag. 5-6

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Vimos que a queda dos anjos e a queda dos homens não passou da tentação de naturalismo, e neste erro temos a explicação de todas as aberrações do espírito humano através dos séculos.

“Deus é o princípio necessário de tudo o que existe. Nada existe senão por Ele e para ele; tudo lhe pertence. Entretanto, nada se confunde com Deus, exceto Ele próprio.

E a corrupção da natureza humana pelo pecado original, faz com que o espírito humano caia inevitavelmente no panteísmo ou no naturalismo, quando procura abordar o problema da existência, guiado apenas por sua própria razão.

“Ou ele procura a razão dos seres finitos em sua causa necessária, o Ser infinito; e a ideia do Ser infinito esgotando, a seu ver, a ideia do ser, faz com que não possa conceber e a não querer admitir nenhuma realidade fora de Deus: o contingente, o variável lhe aparece como uma forma, um fantasma - e termina no panteísmo idealista.

Ou então, procurando explicar o fenômeno da existência por suas condições variáveis, perde de vista seu princípio necessário: Deus lhe escapa. Nega-O e termina no naturalismo, de onde recai ordinariamente no panteísmo materialista” (A. N. Histoire des hérésies).

Eis o finito absorvido no Infinito ou o Infinito no finito.

E desfazendo toda distinção entre o sobrenatural e o natural, o panteísmo acaba por destruir toda distinção na própria ordem natural. Concluímos, assim, que o panteísmo não passa de um comunismo entre o finito e o Infinito, que deve terminar, com mais forte razão, no comunismo entre tudo o que é finito e criado.

Do panteísmo, erro teológico, procede o comunismo, erro social.

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Depois da queda, vemos essa confusão se ancentuar entre os povos antigos, tanto na existência individual como na vida social. A existência do filho e da mulher era absorvida na do pai e do marido. A existência do pai de família era por sua vez absorvida na existência do Estado, totalitário e avassalador, personificado nas divindades mitológicas e nos instrumentos desses ídolos demoníacos. A progênie de Caim, de Esaú, dos sátrapas e dos césares, dos Sardanapalos, dos Tibérios e dos Calígulas; espécies de pans monstruosos, senhores de todas as existências, de todos os bens, de todas as almas, e que dispunham da humanidade ao talante de sua ferocidade e de sua infâmia. E nessa monstruosidade panteística, a desunião, a dissolução mais absoluta de todos os elementos assim escravizados.

O historiador Allard nos dá um quadro do estado lastimável em que se achava o mundo pagão na ocasião do Advento do Verbo Incarnado. Em resumo, havia no mundo romano uma classe de régulos totalitários, que fazia trabalhar um povo de escravos, que trabalhavam para aqueles e não para si próprios, e uma plebe de mendigos que não podia trabalhar, dada a concorrência do mesmo braço escravo. Um tal estado de coisas, diz Allard, conduzia naturalmente ao socialismo, e foi no mais crasso socialismo do gênero demagógico que terminou o cesarismo pagão do Império Romano.

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Contra essa escravidão do pecado clamava a consciência dos homens, que através das Idades não se deixaram levar pelo pai da mentira. Em seu longo cativeiro, a humanidade suspirava pelo seu dia de Redenção. E se elevavam aos céus as vozes dos justos e dos profetas, suplicando e anunciando o Advento do Esperado das nações, do Salvador que nasceria de uma Virgem, dessa mesma Virgem que haveria de esmagar a cabeça da serpente infernal. E a presença de Nosso Senhor Jesus Cristo enche toda a história da humanidade pelas promessas, pela união do povo fiel com o seu Criador, como domina o mundo depois de sua vinda, através da Igreja, seu Corpo místico. Nele, a religião é uma através de todas as Idades: “Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e para todo o sempre”.

Nessa união substancial e indissolúvel das naturezas divina e humana em unidade de pessoa divina, vemos o cumprimento da promessa da Redenção. Eis a distinção, bem marcada, entre o Infinito e o finito. Há em Jesus Cristo duas naturezas substancialmente distintas: a natureza divina e a natureza humana. Como Filho de Deus, é consubstancial a Deus, e é Deus Verdadeiro. Como Filho da Santíssima Virgem, é consubstancial do homem, e é verdadeiro homem. Mas essas duas naturezas distintas se unem, sem se confundir, para formar uma única pessoa, que é o Verbo Incarnado, Nosso Senhor Jesus Cristo. Eis o mistério da Encarnação, segundo o qual, como natureza, Jesus Cristo é separadamente Deus e separadamente homem, e como pessoa é inteiramente e inseparavelmente filho de Deus, inteiramente e inseparavelmente filho do homem.

Diz Santo Agostinho que o homem estava duplamente morto com o pecado de Adão, pela morte do corpo, quando a alma o desampara, e pela morte da alma, quando Deus a desampara. É esta a “morte segunda” a que se refere São João no Apocalipse, que caberá “aos covardes, aos incrédulos, aos ímpios, aos homicidas, aos impuros, aos idólatras, e a todos os mentirosos”.

E é dessa morte que nos veio salvar o “primogênito dentre os mortos” no dizer de São Paulo e “libertar os que em virtude do terror à morte, passaram a vida toda como escravos”. “Convinha, portanto, que em tudo se tornasse semelhante aos Irmãos, a fim de ser junto de Deus um pontífice misericordioso e fiel para expiar assim os pecados do povo. Pois tendo ele mesmo padecido com as tentações, está em condições de valer aos que se acham tentados” (Heb. 2-14).

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Dir-se-ia, portanto, que com a vinda do Messias e Redentor do mundo uma nova era de paz e de concórdia estaria reservada para a humanidade. E quem pode negar que na vigência do Novo Testamento na lei da graça haja havido uma efusão muito maior da misericórdia divina, sobretudo pela ação dos Sacramentos da Nova Lei, num dos quais o Salvador do Mundo se oferece pessoalmente para a santificação das almas?

Mas nem por isso deixou de existir a luta entre as duas Cidades. Diz São Tomás que assim como Jesus Cristo é o superior e cabeça dos bons, Satanás é o caudilho dos anjos rebeldes. Logo, acrescenta o Doutor Angélico, é certo que como consequência desta oposição existe um empenhado duelo pessoal entre Jesus Cristo, chefe dos bons, e Satanás, caudilho dos maus, cujas origens explicam o estado de luta perpétua e incompatibilidade irredutível entre bons e maus em todos os períodos da história.

Eis porque afirma São João que o Verbo eterno vem aos que eram seus mas os seus não o receberam.

Eis porque os sectários, representantes do pai da mentira, O perseguiram, O prenderam, O açoitaram, O coroaram de espinhos, O crucificaram. Eis porque a multidão de Jerusalém, essa mesma multidão no meio da qual havia um grande número de beneficiados e testemunhas de seus milagres, eis porque essa mesma multidão, instigada pelos fariseus, herodianos e saduceus, prefere Barrabás a Jesus Cristo, prefere ao Justo o revolucionário, o sedicioso, o conspirador, o assassino. Eis porque, desde os seus primeiros dias de vida, a Igreja se vê a braços com as heresias e os cismas. E já São Pedro em sua segunda Epístola se refere à abominação e dureza de coração daqueles que “melhor lhes fora não terem jamais conhecido o caminho da justiça, do que, depois de conhecê-lo, voltar as costas ao santo mandamento que receberam”.

Longe, porém, desta luta nos acabrunhar, deve ela servir de estímulo ao nosso zelo. Já dizia São Paulo aos Coríntios ser preciso “que até haja heresias, para que os que são de uma virtude provada” se manifestem. E no Velho Testamento vemos que “o filho atribulado e exercitado nas penalidades será sábio e do imprudente e mau se servirá como de ministro e servo”.

Aliás, ao mostrar como Deus se utiliza do próprio mal para realizar seus desígnios, diz o autor da Cidade de Deus que “muitas coisas que pertencem à fé católica, quando os hereges com sua cautelosa e astuta inquietude as perturbam desassossegam, então, para poder defendê-las diante desses inimigos, os filhos de Deus as consideram com mais escrupulosidade e atenção, percebendo-as com mais claridade, pregando-as com maior vigor e constância, e a dúvida ou controvérsia que excita o contrário serve de ocasião propícia para aprender”.

Aí está a razão porque devemos enfrentar esses erros e evitar que se propaguem à custa de nossa passividade. Aí está porque os seus fomentadores detestam os debates à luz do dia, preferindo rastejar-se nas sombras. Aí está porque não nos abalamos com a exuberante coleção de apodos com que somos mimoseados. Acusados de comunistas quando está em prestigio o fascismo, acusados de fascistas quando o comunismo é o modelo do dia, sejam nosso conforto as exortações do Apóstolo das Gentes aos Coríntios e nos “mostremos armados de justiça e boas obras, à direita e à esquerda, entre a glória e a ignomínia, entre a infâmia e o bom nome; por sedutores, embora homens de verdade; por desconhecidos, embora conhecidos; por moribundos, embora estejamos vivos; por castigados, mas não amortecidos; por tristes, estando sempre alegres; por pobres, mas enriquecendo a muitos; como não tendo nada, mas tudo possuindo.” (II Cor. 6, 7).