Plinio Corrêa de Oliveira
Comentando...
Legionário, 11 de novembro de 1945, N. 692, pag. 2 |
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Uma coisa está fora de dúvida: foi o Cristianismo que dignificou o trabalho, entendido no seu sentido comum e corrente, de trabalho material para o sustento da vida, tipicamente o trabalho do artífice. Entretanto, a partir do século passado (XIX), começaram a surgir, em assuntos econômicos e sociais, certas doutrinas que visavam já não mais a dignificação do trabalho, mas a supervalorização, o que é coisa assaz diversa. Entretanto, como é fácil confundir dignificação com supervalorização, acontece que, frequentemente, estas doutrinas procuram louvar-se no cristianismo e, mesmo, quiseram e ainda querem comprometer consigo o cristianismo. Estas doutrinas de supervalorização do trabalho são intrinsecamente revolucionárias, e tendem para os radicalismos de esquerda ou de direita, e foi por causa de sua confusão com o cristianismo que surgiu a ideia de que este era uma força revolucionária, na acepção comum da palavra, tendo sido Jesus Cristo o primeiro socialista, senão bolchevista. O que caracteriza a supervalorização do trabalho é a sua ereção em valor supremo no que respeita a moral. Assim, só o que é produzido pelo trabalho tem valor, só o que vem do trabalho é digno, nada mais. Na ordem econômica, este é o princípio do georgismo, do marxismo, de todos os socialismos. Na ordem ética, este princípio afirma que só pelo trabalho o homem se constitui efetivamente em seu ser moral, em outras palavras, “o trabalho é obra moral de um sujeito moral”. Já observou com toda a razão Scheler que esta supervalorização do trabalho é fruto do ressentimento. Este ressentimento é que os revolucionários cultivam e manejam habilmente entre as classes baixas, acenando-lhes, como valor supremo, com uma coisa que está ao alcance mesmo dos menos dotados intelectual e moralmente: o trabalho material; ao mesmo tempo em que lhes mostram tudo o mais (tudo o mais que faz com que haja classes superiores), como simples decorrência e função do trabalho material. Foi por uma indesculpável confusão com esta atitude que o cristianismo foi algumas vezes taxado de ser uma religião de ressentidos, uma religião de escravos em revolta, uma religião dos fracassados. Infelizmente, é esta confusão que parece claramente num longo artigo publicado ainda recentemente em “O Estado de S. Paulo” (João de Scantimburgo – O apogeu do proletariado). O Autor parte do princípio já referido: “O trabalho é a obra moral de um sujeito moral” onde existe a tremenda ambiguidade do termo “trabalho”, explorada no sentido de absorver no trabalho operativo tudo o que só se pode afirmar do trabalho espiritual (o que, aliás, é fácil, porquanto a palavra “trabalho” se aplica primariamente ao trabalho operativo, e só por analogia à atividade espiritual, embora esta seja muito mais trabalhosa). Ora, a verdade é que o cristianismo sempre atribuiu a mais insofismável primazia à vida contemplativa sobre a vida ativa. Nasceu do cristianismo a velha e saborosa expressão: “vacar nas coisas espirituais”, que é o substituto cristão do “otium” da Antiguidade. Nem vale dizer que a lei do trabalho tinha sido imposta aos nossos primeiros pais, mesmo antes do pecado original. Porque então o trabalho não tinha o caráter de castigo, mas de livre expansão de forças físicas; eles ainda não precisavam comer o pão com o suor de seu rosto. E, depois do pecado, não foi só o trabalho físico que se tornou penoso, mas especialmente, o espiritual. Nada mais árduo do que “vacar nas coisas espirituais” e, sem a graça, ninguém suportaria a vida contemplativa cristã. Quem tiver dúvidas, leia São João da Cruz. Nada mais falso do que afirmar que o cristianismo veio abalar revolucionariamente a ordem social do Império Romano, valorizando a Suburra (bairro mal afamado na Roma imperial, n.d.c.), pondo para cima os escravos. Se houve quem quisesse conservar o Império foram os cristãos. Nada mais avesso ao cristianismo do que a subversão da sociedade. Entre outras recomendações do respeito à Autoridade, diz São Paulo (1 Tim. VI, 1-2): “Todos os escravos que estão sob o jugo considerem os seus senhores dignos de toda a honra, para que o nome do Senhor e a sua doutrina não sejam blasfemados”. E os que têm senhores fiéis (isto é, cristãos) não os desprezem, porque são irmãos; antes os sirvam melhor, porque são fiéis e amados de Deus, participantes do benefício da Redenção. São Tomás de Aquino justifica a escravidão com razões semelhantes às de Aristóteles; apenas, evidentemente, a escravidão cristã respeita a dignidade da pessoa humana, não a degradando ao estado de simples coisa. Contudo, embora a escravidão não seja intrinsecamente contrária à natureza, entretanto a liberdade é condição mais adequada ao cristão. Por isso, a escravidão foi sendo, muito paulatinamente, afrouxada e, por fim, extinta. Porém, houve algumas dificuldades: quando São Luís, no século XIII, quis estabelecer a completa liberdade, muitos servos queriam ficar na servidão, por acha-la mais conveniente. É o que nos conta Funck Brentano, no seu interessante livro “La Société au Moyen Âge”. Por outro lado, a grande preocupação da Igreja, depois da queda do Império Romano, foi restaurá-lo. Sabe-se que o Sacro Império considerava-se a continuação do Império Romano. E nada mais ricamente hierarquizado do que esta sociedade, que a Igreja levantou sobre os escombros do Império destruído. Nesta sociedade distinguiam-se claramente os trabalhos ignóbeis, como as artes mecânicas (que hoje se chamariam proletárias), o comércio, próprios de vilões (habitantes das vilas e cidades), dos trabalhos nobres, a guerra, o governo, as artes liberais, a contemplação. Mas por isso não se desprezava o artesão, antes, ele tinha um título especial de respeito e amor, porque a sua humilhação o tornava semelhante a Jesus Cristo sofredor e humilde pelos nossos pecados. Para bem compreendermos a dignidade do trabalho, em nossa condição de humanidade decaída sem o exagero de supervaloriza-lo, façamos uma comparação com o sofrimento. Em si mesmo considerado, o sofrimento é algo de puramente negativo. Por isso, no Céu não haverá sofrimento, como também não haverá trabalho, nem pobreza. Aliás, o gosto do sofrimento é uma grave perversão. Mas o sofrimento suportado com resignação cristã, mesmo com alegria, por amor de Deus, é ocasião de santificação. O mesmo se dá com o trabalho. Porque, quanto ao mais, o ter de trabalhar para comer o pão com o suor do rosto, exprime apenas uma situação de inferioridade, de que não temos de que nos honrar. |