Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
O espírito de Munique,

a  inflação  dos  tratados e a

moral dos “outlaws”

 

 

 

Legionário, 11 de novembro de 1945, N. 692, pag. 5

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Poucos meses após o término da Segunda Guerra Mundial, vemos, sem espanto, que os responsáveis pela condução da política internacional repetem os mesmos erros e os mesmos processos condenáveis que provocaram e possibilitaram o grande conflito. É o espírito de Munique que ressurge com todo o seu séquito de concessões e de vacilações. Das cinzas da tremenda hecatombe, emerge criminoso guarda-chuvas, agora manobrado, não mais para aceitar os fatos consumados da Alemanha nazista, mas da Rússia comunista.

Insistem os novos Chamberlain, em transigir com o perigo totalitário, em vez de combatê-lo. E nos rastros de Chamberlain, vemos, por exemplo, o Sr. Stafford Crips a exclamar, patético, que não se poderá conjurar o perigo de uma nova guerra, a menos que se façam as mais largas concessões à Rússia bolchevista. Má fé ou falta de descortino desse líder fabiano? Não nos mostra a experiência histórica, palpitante e recente, que as concessões feitas pela política de Chamberlain ao nazismo, para evitar a guerra, não somente deixaram de evitar o conflito armado, mas, pelo contrário, fortaleceram enormemente o agressor?

E que autoridade moral tem o governo soviético para merecer tais concessões, quando os seus processos no campo internacional são os mesmos do Terceiro Reich, como foi demonstrado no caso da Polônia, da Estônia, da Lituânia, da Finlândia e da Letônia, para não nos referirmos a situações mais recentes dos “diplomatas” do Kremlin?

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As relações entre os povos, nos últimos decênios cada vez mais se enveredam pelos tortuosos caminhos trilhados pelos “out-laws” na vida social. E é de uma análise dos tratados e convenções realizados nesta primeira metade do século vinte que surge a hediondez da vida internacional hodierna, como poderemos ver pela seguinte síntese do capítulo a ela referente nas anotações do Professor Guido Gonella às Mensagens do Santo Padre Pio XII sobre os princípios básicos para uma ordem internacional.

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Em um breve ciclo de anos, às vezes de meses ou de semanas, tem sido possível acompanhar o nascimento desses acordos internacionais, sua juventude, madureza e finalmente sua morte, às vezes natural, outras violenta, e isto na maioria dos casos. Morreram jovens, não os acordos mais queridos dos deuses, mas os menos queridos das nações mais poderosas. E nem todas as velhices foram honradas; algumas languesceram esquecidas durante anos. No fundo empoeirado dos arquivos das chancelarias permanecem os rastros de tão longas agonias.

O estudo dessas teses diplomáticas é, pois, um estudo necroscópico; instrui-nos acerca das “causas de morte” e termina por nos edificar acerca das “condições de vida”.

Tal investigação nos mostra que a causa principal da morte dos tratados foi a falta de oxigênio espiritual na atmosfera política do tempo, a deficiência de um sólido costume moral, de uma clara consciência coletiva do dever que todos têm de respeitar a norma: pacta sunt servanda (os pactos devem ser cumpridos). Sem este oxigênio moral, mesmo os organismos jurídicos mais robustos estão destinados a uma morte lenta por asfixia.

A estas causas gerais devem-se agora acrescentar causas particulares, que se referem às deficiências intrínsecas de cada acordo, isto é, erros e ilusões do direito, especialmente da política internacional que, com suas artificiosas manipulações na tessitura da vasta rede dos tratados, chegou a ser responsável pelo fato de se debilitar na consciência coletiva a noção do obrigatório respeito dos tratados.

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E o autor passa a enumerar algumas das principais observações críticas que podem ser dirigidas ao atual sistema de convenções internacionais.

Em primeiro lugar trata da inflação dos tratados. O imperativo de respeitar as obrigações internacionais não se corrobora com o multiplicar-se dos tratados. Os períodos de decadência se caracterizam, frequentemente (mesmo na vida interna dos povos), pela inflação de leis. Forja-se a ilusão de remediar a ineficácia do simples preceito multiplicando os preceitos, às vezes contraditórios. Entretanto, é inútil prodigalizar a semente quando a aridez do terreno não permite a fecundação de sequer um só grão. Sem amanhar o terreno, de nada serve a abundância de sementes. Em solo árido apenas germinarão desilusões e pessimismo. Do mesmo modo, é inútil multiplicar o número de leis quando se debilita a consciência da obrigatoriedade de tais leis.

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Os decênios de 1919 a 1939 foram particularmente fecundos em tratados internacionais. De ano em ano se multiplicaram as convenções, das quais recordamos as de maior alcance:

Em 1919 o Tratado de Versalhes (paz com a Alemanha) ao qual se anexou o Pacto da Sociedade das Nações; o Tratado de Saint Germain (paz com a Áustria); o Tratado de Neully (paz com a Bulgária); em 1920 o Tratado do Trianon (paz com a Hungria); o Tratado de Sèvres (paz com a Turquia); em 1921 o Tratado das Quatro Potências, relativo às possessões do Pacífico; em 1922 o Tratado das Nove Potências (para determinar “a política de portas abertas” na China) e o Tratado naval de Washington (para a limitação dos armamentos navais); em 1923 o Tratado de Lausanne (para os problemas do Oriente Próximo) e o Tratado Gondra (para resolver os conflitos entre os Estados americanos); em 1925 os Acordos de Locarno (para a garantia das fronteiras ocidentais); em 1928 o Pacto Briand-Kellogg de Paris (para a renúncia à guerra); em 1929 o Tratado geral de arbitramento interamericano e o Protocolo Litvinof para a entrada em vigor do Pacto de Paris; em 1930 o Tratado naval de Londres; em 1932 o Acordo Americano sobre o não-reconhecimento das aquisições territoriais obtidas pela força; em 1933 o Pacto de organização da “Entente”, os Protocolos para a definição do agressor, o Pacto de conciliação Saavedra Lamas e o Pacto dos Quatro; em 1934 os Protocolos danubianos de Roma, o pacto da “Entente” balcânica; o Pacto da “Entente” báltica; em 1936 o Tratado naval de Londres, o Pacto Antikomintern e as Convenções de Buenos Aires; finalmente em 1937 o Pacto Asiático, para o entendimento entre os países do Oriente Próximo.

Em 1938 se entra em uma nova fase de pactos, que tem um caráter pré-bélico ou bélico (o acordo de Munique, o Pacto de amizade e aliança ítalo-germânico, o Acordo Tripartite a que aderiram sucessivamente várias nações menores, os Tratados anglo-polonês, germano-russo, polonês-russo, russo-nipônico, anglo-russo, polonês-russo, os vários pactos de garantia dos países balcânicos, a Convenção do Atlântico, o Pacto de Washington, o Acordo do Rio de Janeiro etc. É compreensível que depois do início da conflagração mundial, as vicissitudes dos tratados tenham sido mais rápidas, dado o maior dinamismo que o conflito imprime às relações entre Estados.

Por outro lado, convém recordar que nos anos que correram entre 1919 e 1939 simultaneamente com os principais pactos acima citados se teceu uma complicada rede de pactos menores de ajuda mútua e não-agressão, de acordos bilaterais e plurilaterais, regionais e gerais, que enredaram a política exterior a que pretendiam disciplinar.

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Mostra o autor em seguida os inconvenientes tanto do sistema de pactos a longo prazo como do sistema de breve prazo. Ao vincular por breve tempo as partes, resulta uma consequente impossibilidade de uma segura estabilização de suas relações; enquanto que, vinculando-as por tempo demasiado, se tem uma incerteza acerca da vitalidade dos acordos, dada a possiblidade de mudanças nas situações que a determinaram. O primeiro sistema é demasiado dinâmico, o segundo demasiado estático. As artes da política e da diplomacia têm precisamente a difícil tarefa de conciliar a estática com a dinâmica nas convenções internacionais.

Mas além da inflação dos acordos e sua ilusória perpetuidade, também a amplitude excessiva do objeto das obrigações internacionais foi uma das causas da crise dos tratados.

É típico a tal propósito o chamado “pacto de amizade perpétua”. Prometer amizade significa prometer muito mais que uma genérica colaboração entre dois Estados. Mesmo que se quisesse distinguir a amizade individual da amizade internacional, a amizade implica sempre uma estrita reciprocidade de cooperação.

Basta pensar na amplitude de um compromisso de tal gênero para compreender que os Estados zelosos de suas prerrogativas e inclinados a satisfação de suas necessidades – só por ligeireza ou por consciente insinceridadepodem com tanta facilidade e frequência decidir-se a estreitar entre si os laços de uma amizade que sendo de per si difícil de praticar nas relações internacionais, torna-se um absurdo quando se pretende que seja “perpétua”.

A própria pompa das expressões que a miúde engalanam os acordos deste tipo, induz a suspeitar da sinceridade das intenções ou, quando menos, da seriedade de ponderados propósitos destinados à conformar as palavras com as intenções e os fatos com as palavras.

É história recente a de certo pacto de “amizade perpétua” que durou apenas pouco mais de uma semana.

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O progressivo complicar-se da rede de pactos bilaterais e plurilaterais, particulares e coletivos, regionais e gerais, determinou situações em que não foram raras as interferências entre compromissos opostos assumidos pelos Estados. Trata-se de zonas de sombra, preferentemente marginais, onde as obrigações impostas por mais de um tratado (concluídos em tempos diferentes e com distintas finalidades) se sobrepõem e, às vezes, se chocam.

Por tal motivo se recorreu, a miúde, à cláusula “salvos os empenhos assumidos anteriormente”! Não é possível cooperar ao mesmo tempo com um amigo e com o inimigo deste. Não se pode servir a dois senhores, especialmente se estes se acham em luta entre si. São, precisamente, os compromissos assumidos “precedentemente” os que eliminam de maneira radical a possibilidade deste tipo de cooperação, que se tornará, por isto, somente sob o aspecto nominal, como expediente aconselhado por motivos inconfessáveis.

As tentativas inúteis para conciliar o inconciliável surtiram, às vezes, o efeito de provocar uma série de contradições, as quais lançaram descrédito sobre os tratados, aumentando o ceticismo na consciência dos povos.

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Há ainda a considerar a simulação das intenções. Também no campo do contratualismo internacional pode dar-se, como na esfera do contratualismo interno, a simulação das intenções.

Afirma-se visar o fim expresso no tratado, ao passo que substancialmente o tratado é usado para conseguir outro fim. Simula-se e também se dissimula. (Um acordo cultural entre dois países pode servir para disfarçar uma aliança; um acordo defensivo pode tender a organizar uma agressão).

A tal propósito devem ser recordados especialmente os pactos de não agressão bilaterais, os quais aparentemente tendem a impedir agressões entre vizinhos. São em aparência os mais pacíficos dos acordos. Entretanto, pelo contrário, dissimulam uma intenção oculta. Um Estado que se propõe agredir a um país vizinho, antes de realizar a agressão, trata de precaver-se firmando com os vizinhos (excluída, supõe-se, a vítima designada) vários pactos de não agressão. Tais acordos, longe de ter uma finalidade pacífica, encobrem assim uma dupla finalidade iníqua: imobilizar os vizinhos do Estado que vai ser agredido, a fim de conseguir a agressão sem ser molestado; e a finalidade de impedir que os Estados em jogo lhe prestem ajuda, ajuda que nem indiretamente poderia significar uma violação dos “pactos de não agressão”, firmados anteriormente por quem se prepara para agredir o seu vizinho.

De tal sorte o belicismo se disfarça em pacifismo, esgrimindo os argumentos já postos em prática pelo lobo contra o cordeiro. Tal falta de sinceridade influiu sensivelmente na generalizada desconfiança em relação às garantias pacíficas dos tratados, desconfiança amadurecida na experiência dos fitos egoístas e belicosos, que se ocultam às vezes atrás de motivos ideológicos e pacifistas, nos quais pretende se inspirar a política dos pactos de não agressão.

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Veremos, em nosso próximo número, como essa situação miserável, a que chegou a vida internacional, decorre do fato de se considerar que na relação entre os povos não devem prevalecer os princípios morais que regulam as relações entre os indivíduos.