Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
Povo e massa, democracia e demagogia

 

 

 

 

 

Legionário, 28 de outubro de 1945, N. 690, pag. 3

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Não sabemos baseados em que raciocínio, para muitos o fim desta segunda grande guerra marcaria o início de uma nova e promissora era para a humanidade. Livres da tirania e da opressão, os povos lograriam, de agora para diante, gozar de uma felicidade e de um sossego apenas comparáveis à paz e à tranquilidade do jardim das delícias.

Mal, porém, se iniciam os trabalhos preliminares para a implantação dessa nova ordem ideal, e os horizontes começam a turvar-se. Que serpente teria conseguido se insinuar logo à entrada desse novo paraíso terrestre?

Sem dificuldade podemos nela reconhecer, sob novos disfarces, aquela mesma serpente antiga que destruiu a felicidade de nossos primeiros pais. Esqueceram-se os criadores dessa nova utopia, da corrupção da natureza humana, fruto da queda e herança que os homens carregarão até o fim dos séculos, com seus terríveis efeitos, sobretudo em um mundo paganizado, que despreza a lei e a graça de Deus.

E é essa natureza corrompida que explica a cegueira da humanidade, ao insistir nos mesmos erros que provocaram esta última e tremenda hecatombe. Com efeito, de nada valeu o exemplo do totalitarismo socialista da direita, pois que povos inteiros se precipitam na voragem do totalitarismo socialista da esquerda, mediante os mesmos processos demagógicos que vem transformando os povos em massa amorfa, que os manipuladores sem escrúpulos agitam de um lado para outro, ao sabor das conveniências das forças do mal, coligadas contra a civilização católica. E é importante assinalar que a tática da agitação e direção das massas, característica do nazismo e do fascismo, é de inegável origem comunista. Mussolini e Hitler ensaiavam os seus primeiros passos na agitação demagógica das massas e já Fulop Muller escrevia o seu impressionante depoimento sobre a mística da “massa” na Rússia soviética.

E é essa mesma deificação das massas, lançando as multidões contra a hierarquia social, criando o ódio entre o homem da rua e as elites, que hoje vemos de novo exacerbada e levada ao delírio.

Vem-nos, portanto, à memória as sábias e profundas palavras do Santo Padre Pio XII, gloriosamente reinante, sobre o conceito de “povo” e de “massa”, para explicar as perturbações que continuamos a presenciar no panorama político do mundo moderno.

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Povo e multidão amorfa ou, como se costuma dizer, “massa”, são dois conceitos diversos. O povo vive e move-se por vida própria; a massa é de si inerte e não pode mover-se senão por um agente externo. O povo vive da plenitude da vida dos homens que o compõem, cada um dos quais - no próprio lugar e do próprio modo - é uma pessoa consciente das próprias responsabilidades e das próprias convicções. A massa, pelo contrário, espera uma influência externa, é um brinquedo fácil nas mãos de quem quer que jogue com seus instintos ou impressões, pronta a seguir vez por vez, hoje esta, amanhã aquela bandeira. Da exuberância de vida de um verdadeiro povo, a vida se difunde abundante e rica no Estado e em todos os seus órgãos, infundindo neles, com vigor incessantemente renovado, a consciência da própria responsabilidade e o verdadeiro sentido do bem comum. O Estado pode servir-se da força elementar da massa, habilmente manobrada e usada: nas mãos ambiciosas de um só ou de diversos artificialmente agrupadas por tendências egoístas, o próprio Estado pode, com o apoio da massa, reduzida a não ser mais que uma simples máquina, impor o seu arbítrio à parte melhor do verdadeiro povo; o interesse comum fica então gravemente e por longo tempo golpeado, e a ferida é bem frequentemente de cura difícil.

“Daí desponta clara outra conclusão: a massa - qual acabamos de definir - é a principal inimiga da verdadeira democracia, e do seu ideal de liberdade e de igualdade.

Num povo digno de tal nome, o cidadão sente em si mesmo a consciência da sua personalidade, dos seus deveres e dos seus direitos, da própria liberdade conjugada com o respeito da dignidade e liberdade alheia. Num povo digno de tal nome, todas as desigualdades que não sejam arbitrárias, mas derivadas da própria natureza das coisas, desigualdades de cultura, posses, posição social (sem prejuízo, bem entendido da justiça e da caridade) não são de modo algum obstáculo à existência e ao predomínio de um autêntico espírito de comunidade e fraternidade. Pelo contrário, longo de lesar de algum modo a igualdade civil, lhe conferem o seu legítimo significado: isto é, que diante do Estado cada qual tem o direito de viver honradamente a própria vida pessoal, no lugar e nas condições em que os desígnios e disposições da Divina Providência o tiver colocado.

“Em contraste com este quadro do ideal democrático de liberdade e igualdade num povo governado por mãos honestas e previdentes, que espetáculo oferece um Estado democrático entregue ao capricho da massa! A liberdade, enquanto dever moral da pessoa, se transforma numa pretensão tirânica de dar desafogo livre aos impulsos e apetites humanos, em detrimento dos outros. A igualdade degenera em nivelamento mecânico, numa uniformidade monocroma; sentimento de verdadeira honra, atividade pessoal, respeito da tradição, dignidade, numa palavra tudo o que dá à vida o seu valor, pouco a pouco definha e desaparece. E sobrevive apenas, de uma parte, as vítimas iludidas pela fascinação aparente de democracia, ingenuamente confundida com o genuíno espírito democrático e com a liberdade e igualdade; e, de outra parte, os aproveitadores mais ou menos numerosos, que souberam, por meio da força do dinheiro ou da organização, assegurar para si sobre os outros uma condição privilegiada e o mesmo poder” (Pio XII na radiomensagem do Natal de 1944).

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Qual a origem, nos tempos modernos, dessa transformação do povo consciente em massa amorfa e sujeita aos caprichos dos régulos totalitários? A doutrina liberal que há longos anos vem inculcando nos espíritos que “a vontade do povo e o sufrágio universal têm por eles próprios uma autoridade tal, que não necessitam de nenhuma razão para que seus atos sejam válidos” (proposição taxada de herética pele Comissão de teólogos reunida em Roma em 1862). E para o católico se persuadir dos efeitos maléficos dessa doutrina, basta que se lembre do exemplo histórico dado pelo povo judaico ao preferir Barrabás a Cristo, num verdadeiro plebiscito, que, fomentado e insuflado pelos fariseus, herodianos e saduceus, levou ao Calvário o Salvador do gênero humano.

Dessa teoria nasceu o Estado-Deus, ou Estado totalitário, pois que o povo abdica de sua soberania em favor do Estado, que passa a ser o órgão do povo, e a vontade do povo, exercida através do sufrágio universal; é divina, pois se acha acima de quaisquer considerações, sejam de que ordem forem.

Pretendem os liberais que a autoridade pública reside primordialmente no povo, do qual deriva em seguida aos governantes, de tal modo, entretanto, que ela continua a residir nele. Inteiramente contrário é o pensamento dos católicos que fazem derivar de Deus o direito de comandar, como de seu princípio natural e necessário. E Leão XIII refutou de antemão esta tendência de conciliação entre a doutrina católica e o erro do filosofismo. Com efeito, diz ele: “É necessário observá-lo aqui: aqueles que presidem ao governo da coisa pública podem bem, em certos casos, ser eleitos pela vontade e pelo julgamento da multidão, sem repugnância nem oposição com a doutrina católica. Mas, se esta escolha designa o governante, não lhe confere a autoridade de governar, não lhe delega o poder, apenas designa a pessoa que dele está investido” (Enc. Diuturnum Ilud).

E uma importantíssima consequência de tal erro é esse igualitarismo que Pio XII denuncia, ao estudar as razões por que a massa é a principal inimiga da verdadeira democracia. Com efeito, se o povo continua a ser o detentor do poder, que vem a ser a autoridade? Uma sombra, um mito; não há mais leis propriamente ditas, não há mais obediência. Desde que se reclama, em nome da dignidade humana, a tríplice emancipação política, econômica e intelectual, pela subtração da massa à tutela da autoridade civil, dos patrões e da casta dirigente, a sociedade não mais terá mestres nem servidores: os cidadãos serão todos livres, todos camaradas, todos reis. E desse falso conceito de liberdade e de igualdade nascem, no dizer de Pio XII, a pretensão tirânica de dar livre expansão aos impulsos e apetites humanos, e o nivelamento mecânico do povo, de que resultam a massa anônima, de um lado, e de outro lado, os aproveitadores, que através da força da corrupção e da propaganda, asseguram para si uma condição privilegiada no poder: são os ditadores e régulos totalitários.

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Ora, já dizia Pio X, sobre esta matéria do reerguimento e regeneração das classes operárias, que os princípios da doutrina católica são fixos, e a história da civilização cristã aí está para atestar sua fecundidade benfazeja. Leão XIII recordou-nos, em páginas magistrais, que os católicos ocupados em questões sociais devem estudar e ter sempre sob os olhos. Ele ensinou, de um modo especial, que a democracia cristã deve “manter a diversidade das classes que é seguramente o próprio da cidade bem constituída, e querer para a sociedade humana a forma e o caráter que Deus, seu autor, lhe imprimiu”. Ele fulminou “uma certa democracia que vai até aquele grau de perversidade de atribuir, na sociedade, a soberania ao povo e de pretender a supressão e o nivelamento das classes”. Ao mesmo tempo, Leão XIII impunha aos católicos um programa de ação, o único programa capaz de recolocar e de manter a sociedade sobre suas seculares bases cristãs.

Que fizeram, porém, os falsos doutrinadores da reforma social? Não somente seguiram um ensinamento diferente dos de Leão XIII, mas repudiaram abertamente o programa traçado por Leão XIII sobre os princípios essenciais da sociedade, colocam a autoridade no povo ou quase a suprimem, e tomam, como ideal a realizar, o nivelamento das classes. Eles caminham, pois, ao revés da doutrina católica, para um ideal condenado.

Pio X a seguir declara saber que tais inovadores se gabam de reerguer a dignidade humana e a condição demasiado desprezada das classes trabalhadoras, de tornar justas e perfeitas as leis do trabalho e as relações entre o capital e os assalariados, enfim, de fazer reinar sobre a terra uma justiça melhor, e mais caridade, e, por movimentos sociais profundos e fecundos, de promover na humanidade um progresso inesperado.

E, certamente, a Igreja não condena estes esforços, que seriam excelentes em todos os respeitos, se os inovadores não se esquecessem que o progresso de um ser consiste em fortificar suas faculdades naturais por novas energias e a facilitar o jogo de sua atividade no quadro, e de acordo com as leis de sua constituição; e que, pelo contrário, ferindo seus órgãos essenciais, quebrando o quadro de suas atividades, impele-as o ser, não para o progresso, mas para a morte. Entretanto, é isto que eles querem fazer com a sociedade humana; seu sonho consiste em trocar as bases naturais e tradicionais desta e prometer uma cidade futura edificada sobre princípios, que eles ousam declarar mais fecundos, mais benfazejos do que os princípios sobre os quais repousa a atual cidade cristã.

“Não, Veneráveis irmãos, conclui Pio X – e é preciso lembrá-lo energicamente nestes tempos de anarquia social e intelectual, em que todos se erigem em doutores e legisladores – a cidade não será construída de outra forma senão pela qual Deus a construiu: a sociedade não será edificada se a Igreja não lhe lançar as bases e dirigir os trabalhos; não, a civilização não mais está para ser inventada, nem a nova cidade para ser construída nas nuvens. Ela existiu, ela existe; é a civilização cristã, é a cidade católica. Trata-se apenas de instaurá-la e restaurá-la sem cessar sobre seus fundamentos naturais e divinos contra os ataques sempre remanescentes da utopia malsã, da revolta e da impiedade; omnia instaurare in Christo” (Pio X, Carta Apostólica sobre “Le Sillon”).

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De Pio X a Pio XII a humanidade se precipitou na rampa que a fez cair nos campos de concentração dos totalitarismos. Quando se dará a volta do filho pródigo à casa paterna?