Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
O trabalho social e a

“nova  ordem  proletária”

 

 

 

 

 

Legionário, 7 de outubro de 1945, N. 687, pag. 5

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Os demagogos da “nova ordem proletária” não se cansam de sentenciar que entramos numa época em que o Trabalho será o soberano senhor de todas as coisas.

Valendo-se da miséria em que a economia liberal lançou a classe obreira e das justas reivindicações dos salariados, querem os agentes provocadores dessa “nova ordem” convencer o homem da rua de que lhe pertence a direção da sociedade não somente em virtude dos direitos que lhe confere o trabalho, mas também pelo princípio “democrático” do número, em vista do qual o “proletariado” constitui a maioria.

Sabido como é que a massa é incapaz de governar ou de dirigir a si mesma, fica evidenciada a má fé com que os seus manipuladores lhe inoculam essas idéias. Será sempre útil, porém, mostrar como é artificial essa subversão da ordem social, entre outras razões por partir de um conceito parcial e defeituoso do trabalho.

A sociedade tradicional e católica sempre se baseou no trabalho. Não na noção materialista do trabalho, não no trabalho reduzido à demagogia “proletária”, mas na noção do “trabalho social”, do trabalho que não pertence a uma única classe, mas que é desempenhado por todo o corpo social, desde o chefe de Estado ao mais humilde varredor de rua.

Eis porque se torna oportuno relembrar o que sobre este assunto já escrevia há vários anos o nunca assaz citado (historiador austríaco J. B.) Weiss (1820-1899):

“Com a expressão “trabalho social” nos referimos a uma das idéias mais ignoradas de nossa época. O liberalismo, essa filosofia do individualismo, nada tem de comum com ela, é claro, porque, em todos os seus pontos de vista lhe é oposto como a luz às trevas. Todo pensamento da época marcha também nessa direção; e é uma prova da força com que o liberalismo tudo corroeu em torno de si e destruiu as bases da ordem social. É preciso não perder de vista que foi o liberalismo que abalou nos espíritos as idéias fundamentais da vida social, para que não se surpreenda com os juízos incompreensíveis que se ouvem a cada instante sobre este assunto e isto não somente da boca dos homens do povo, sem educação, descontentes, mas também de pretensos homens de letras.

Há inúmeros homens e classes inteiras de homens que, ao juízo da maioria, não trabalham e são como membros mortos ligados ao corpo da sociedade. É curioso ver como nossa época tem o sentimento debilitado e nervos insensíveis a este respeito. Para que serve o clero, dizem? De que utilidade são esses magotes de sábios? Que papel a velha nobreza pode desempenhar? Será que um gordo proprietário, cujo único trabalho consiste em destacar seus cupons e em consumir os frutos do trabalho de outrem, será que esse proprietário não é um puro zero na sociedade? Estas perguntas mostram todo vigor que ainda possui o espírito limitado pelo racionalismo, espírito que engendrou o liberalismo. E domina de modo tal, que frequentemente lança a confusão na cabeça daqueles contra os quais se dirige, e os faz perder consciência de si próprios. (...)

“Na época em que o liberalismo exerceu sua maior influência sobre os espíritos, os nobres se abaixaram até se tornarem empresários de teatros da corte, mestres de dança, para se tornarem um pouco úteis, acreditavam eles. Era o verdadeiro meio para essas classes se tornarem desprezíveis e de se alinharem entre os ociosos e os inúteis, porque aquele que faz um trabalho que não é de sua condição, ou que leva preconceitos ao trabalho de seu estado, é um membro inútil e mesmo perigoso para a sociedade. É ele como que a mão doente que não desempenha seu trabalho, mas que chama a si as funções do estômago. Para obter louvores baratos, um rei pode por alguns instantes tomar a charrua das mãos de um lavrador, mas será uma coisa triste se nisto consistir o único gênero de trabalho pelo qual souber se tornar útil ao seu reino.

“Infelizmente este espírito “factotum” penetrou nas classes influentes e mostra, nestes tempos de materialismo, como cada vez é mais escassa a ideia do trabalho social. Se o chefe de Estado se ocupa de cata-ventos ou de pregos para sapatos, todo mundo ficará convencido de que ele não tem uma noção justa de suas obrigações. Sem dúvida é uma grande desgraça que a nobreza e as pessoas ricas e letradas somente achem ocupação nos prazeres frívolos; mas não é também para se desejar que façam o trabalho dos lavradores, que tratem pessoalmente de seus cavalos, ou que, entrando em negócios comerciais arriscados, em operações de bolsa, se entreguem a especulações funestas para a sociedade.

Todo o mundo deve trabalhar, mas não é necessário que cada um faça toda espécie de trabalho. Basta que faça o trabalho que lhe convém, e com isto faz mais para a sociedade do que se se metesse em tudo.

“Essa tendência é infelizmente uma moléstia de nossa época. A sua causa é que os traços de união entre as classes foram suprimidos, graças às categorias especiais de membros em que cada uma delas se recruta. É assim que a noção do trabalho de estado, que antes desempenhara um papel tão importante, completamente desapareceu.

O aprendiz deseja fazer as vezes do patrão, o ministro as vezes do mestre escola, do padeiro, do pregador. É necessário que mude este estado de coisas, porque é esta a verdadeira maneira de não fazer os trabalhos de que a sociedade tem mais necessidade. Se o arquiteto faz o trabalho dos pedreiros, e se se esquece do seu próprio, que será da construção? Que os pequenos façam, portanto, o pequeno e que os grandes acompanhem e guiem os pequenos, sem o que não sairemos jamais dessa confusão, que é característica de nossa situação social. (...)

“A consciência de ocupar pelo trabalho pessoal não somente um lugar honroso na sociedade, mas, o que é mais importante, um lugar útil à coletividade, não se substitui por nenhum título, por nenhuma comenda. No trabalho - e no trabalho conforme a condição social - se acha uma formação do caráter, uma força moral educadora, não somente para o indivíduo, mas para toda a sociedade. (...)

Em seguida o grande dominicano passa a estudar a questão da hierarquia de valores que deve prevalecer na apreciação do trabalho, e pergunta:

Em que sociedade o trabalho será mais frutuoso, o tempo melhor empregado, as forças do homem de mais longa duração? No ergástulo (cárcere, enxovia, prisão) socialista ou numa associação de homens que realizam seu trabalho diário por amor de Deus, em vista de sua vontade, para expiação de seus pecados e para a obtenção da vida eterna?

“Daqui resulta que, o que já dissemos com relação ao trabalho, deve ser compreendido no sentido mais extenso da palavra. O homem ordinário que ganha seu pão de sol a sol, manejando o machado ou o malho, sem dúvida não pode imaginar outro trabalho a não ser o manual. Inveja a sorte do cocheiro em sua boleia, ou o empregado da estrada de ferro, que pode viajar tão comodamente anos a fio. Não pode, porém, suportar esses senhores que apenas estudam e não sabem o que é trabalho, e que percebem belas rendas sem o menor  esforço de sua parte.

Para o homem vulgar, que jamais experimentou o que é o trabalho intelectual, pode-se perdoar o fato de ter idéias tão estreitas. Mas é mais difícil de perdoar aos pensadores que tem sobre o trabalho uma concepção tão materialista e tão grosseira, ao ponto de apenas distinguirem duas espécies de trabalho: o dos músculos e dos nervos (Stuart Mill, Principles of polit. economy). Fazem eles tábuas rasas do trabalho exclusivamente intelectual. Esta espécie de trabalho é mesmo a primeira e a mais importante, porque o espírito é a parte mais essencial e mais importante do homem. Sem dúvida pode-se dizer que essa questão não entra em linha de conta quando se trata da vida exterior, da vida industrial e do trabalho necessário para assegurar as necessidades da existência, mas tal não se dá. Para a vida industrial e, mais ainda, para a vida comercial, a maneira pela qual se haja cultivado o espírito, a vontade, o caráter, a ideia que se possui do direito, do dever e da justiça, o modo como se faz valer a atividade social, suas pretensões e seus serviços, tudo isto está longe de pertencer à categoria das coisas indiferentes. A piedade é útil para muitas coisas, mesmo nesta vida terrestre, e a justiça é util a todos. Comparativamente a elas, a atividade pouco proveito traz. (I Timoth. IV, 8)

“Temos aqui um novo aspecto sob o qual a religião e a virtude desempenham uma função social. Não somente aqueles que devotaram sua vida a formar os outros no caminho da virtude e ao cumprimento de seus deveres religiosos e morais, mas mesmo aqueles que se aplicam aos grandes trabalhos intelectuais. Considerado do ponto de vista econômico, esse trabalho é mesmo tão importante, que apenas um pequeno número de homens o compreende. (...)

“É necessário também levar em conta a extensão na qual uma atividade faz sentir seu efeito sobre sociedade. No julgamento do operário da fábrica, não há ociosidade comparavel a do químico em seu laboratório, ou do matemático debruçado sobre seus cálculos. O soldado que cava as trincheiras sob o fogo inimigo, pensa que o general nada mais tem a fazer a não ser ficar longe do perigo, tranquilamente sentado diante dos mapas. Entretanto o químico, o matemático e o general realizam um trabalho social de que se beneficiam milhares de indivíduos.

“Poucos homens são capazes de apreciar o tempo e a quantidade de trabalho pessoal obstinado que são necessários antes de poder ser realizado esse trabalho social. E quanto mais um trabalho tem importância social mais deve merecer não somente a estima pública, mas ser compensado pela sociedade pelos esforços pessoais de que é fruto.

“Estas considerações devem portanto entrar em linha de conta na fixação da recompensa que lhe é devida, a fim de que essa recompensa lhe seja dada de modo um pouco justo. Dizemos um pouco justo porque quem poderá recompensar em seu justo valor a invenção da lâmpada de segurança ou do freio a ar comprimido? Se é verdade que os trabalhos mais produtivos são aqueles que tornam o homem capaz de melhor utilizar a seu serviço as forças da natureza, que tornam por conseguinte o homem inteiramente senhor dessa natureza e do trabalho pelo conhecimento de suas leis, aqueles que realizam o trabalho material não devem verdadeiramente queixar-se se o trabalho intelectual é mais bem pago que o seu. (...)

A questão, portanto, é de dar ao trabalho material uma retribuição de acordo com a justiça social - e não de subverter a ordem da Sociedade, pondo o carro diante dos bois, ou a massa à frente das elites”.