Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
O  Cooperativismo  e  sua contrafação totalitária

 

 

 

 

Legionário, 30 de setembro de 1945, N. 686, pag. 5

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Conta-nos Robert Louis Stevenson a fábula de quatro reformadores que se achavam de acordo quanto à necessidade de mudar a face da terra.

“Precisamos abolir a desigualdade”, disse um deles.

“Precisamos abolir o casamento”, disse o segundo.

“Precisamos abolir Deus”, disse o terceiro.

“Devemos abolir o trabalho”, disse o quarto.

“Não saiamos além das medidas práticas”, disse o primeiro. “A primeira coisa a fazer será reduzir os homens a um nível comum”.

“A primeira coisa a fazer”, disse o segundo, “será dar liberdade aos sexos”.

“A primeira coisa a fazer”, disse o terceiro, “será achar o meio de fazê-lo”.

“A primeira providência”, disse o primeiro, “deve ser, abolir os Evangelhos”.

“A primeira coisa a fazer”, disse o segundo, “será abolir as leis”.

“A primeira coisa a fazer”, disse o terceiro, “será abolir a humanidade”.

* * *

Além desses reformadores radicais, partidários do “método direto” na resolução revolucionária da questão social, há ainda a classe dos que desejam salvar a humanidade mediante o processo de fazer delirar uma ideia, muitas vezes boa em si mesma.

Acham-se neste último grupo os partidários de um certo cooperativismo, que pouco tem de comum com o sentido limitado e bem conhecido da palavra. Não há quem não veja as vantagens da difusão das cooperativas de caráter particular, como meio auxiliar na resolução do complexo problema da produção e do consumo.

Nas mãos de certos reformadores, porém, o cooperativismo passa a ser uma doutrina social completa, que pretende resolver todos os grandes problemas contemporâneos, desde a criação e educação dos filhos ao capitalismo, passando pela própria estrutura estatal.

Ora, quando uma ideia justa em seu sentido restrito procura assim tomar um valor absoluto, não é raro que termine caindo no erro.

É o que se dá com a ideia do cooperativismo que, aplicada em sentido universal, equivale ao mais completo coletivismo.

Essa organização cooperativista toma por base o consumidor, isto é, todo o mundo, pois todos são consumidores, sem delimitação de espécie alguma, nem regional, nem mesmo nacional, e tende a se transformar num imenso democratismo, cujos manipuladores declarados ou ocultos, supondo-se completa a realização do programa, teriam em suas mãos a vida política, econômica, social e até mesmo moral dos povos assim federados.

Suponhamos que um governo, quer diretamente, quer por organismos delegados, ou para-estatais, se propusesse, por exemplo, através de uma dessas pan-cooperativas, distribuir, por todos os habitantes do território nacional, gêneros alimentícios, vestuários, medicamentos, assistência médica, farmacêutica, hospitalar, escolar, habitação etc. Quem não vê que com isso estaria aberto o caminho ao mais totalitário coletivismo, ficando praticamente abolida a iniciativa particular e passando os cidadãos a meros joguetes nas mãos dos dirigentes desse organismos cooperativos, que imporiam ao povo o que haveria de comer, o que haveria de vestir (imaginemos a moda sujeita à padronização e ao regulamento ditados pelo espírito burocrático das repartições públicas!), que assistência médica receber, a que escolas enviar os filhos, em que tipo de casa (fabricada em série) deve morar etc.? Estaríamos em pleno regime do Estado-Providência.

Poder-se-á concordar com semelhante desvio da sã ideia do cooperativismo? Será aconselhável generalizar as cooperativas de consumo indefinidamente, tornando-as universais, igualitárias, padronizadoras, substituindo-se a tudo, mesmo à propriedade particular, de forma a constituir um verdadeiro Estado dentro do Estado, ou mesmo confundir-se com o próprio Estado?

* * *

Vejamos algumas idéias básicas dos teóricos desse pan-cooperativismo e depois tiremos as necessárias conclusões.

Teríamos que abordar vários pontos de vista desse pan-cooperativismo, como por exemplo, o educativo, segundo o qual toda a obra educacional será cooperativa, isto é, não ministrada pela família, mas pela escola, e tanto quanto possível, pelas próprias crianças. É o ensino sem mestres ou em que o mestre não é mais mestre, mas simples orientador. Eis a semente igualitária e libertária lançada no próprio espírito das crianças.

* * *

Fiquemos, porém, apenas no estudo sumário do ponto de vista social, onde temos a distinguir entre as finalidades aparentes e as finalidades ocultas de um tal pan-cooperativismo.

Por finalidades aparentes temos, segundo Lavergne, que “a propriedade dos instrumentos de produção se socializa e o lucro se dissemina de tal maneira que uma satisfação igual tende a ser assegurada a todos no exercício das necessidades normais de sua vida econômica”.

E outro teórico do pan-cooperativismo, V. Totomianz, esclarece: “De todas as definições propostas, a mais curta é a do professor Charles Gide: ‘A cooperativa é uma associação que tende a suprimir o lucro’.”

Note-se que por lucro entende Gide o lucro capitalista – e propõe como finalidade do cooperativismo a eliminação do capitalismo.

É o que confessa o mesmo Totomianz: “As cooperativas de consumo que são chamadas a eliminar o lucro capitalista, reduzem muito lentamente o número de empregados capitalistas...”

Ou mais claro ainda: “... o cooperativismo elimina os intermediários, sejam comerciantes, sejam banqueiros, sejam os próprios patrões, ou pelo menos, se não os elimina, permite aos consumidores e aos produtores dispensarem o seu concurso”.

Ora, manda o bom senso que, embora com outros nomes, também nas cooperativas haja dirigentes secundários, isto é, comerciantes, banqueiros, patrões e chefes de usinas ou fábricas. Qual a diferença então? É que no regime da liberdade da iniciativa privada os comerciantes serão realmente comerciantes, os banqueiros serão realmente banqueiros, os patrões realmente patrões. No regime do pan-cooperativismo, porém, todos serão meros funcionários do Estado, ou dos organismos para-estatais encarregados dessa missão totalitária na vida econômica e social do país.

* * *

E aqui insensivelmente tocamos na finalidade oculta desse pan-cooperativismo. Com efeito, para o teórico desse pan-cooperativismo, o povo aparece sob a etiqueta geral do “consumidor”. Esta etiqueta dissimula o agrupamento totalitário de uma enorme massa amorfa e, como toda massa, incompetente para sua própria direção e por conseguinte à mercê dos aventureiros seus manipuladores. Estes nada mais serão que os “comissários do povo” dos regimes socialistas.

E cairemos, assim, no mais completo cesarismo totalitário, idêntico ao da fase de decadência do império romano pagão: uma imensa legião de operários, escravos das usinas pertencentes aos organismos econômicos do Estado, e obedecendo aos cânones da eficiência e dos interesses do mesmo Estado, e um povo de funcionários públicos, também padronizados, e encarregados da complicada burocracia estatal. Todos vestidos, educados (?), medicados, alimentados, arrumados em residências coletivas pelo Estado, único produtor, único educador, único proprietário, única Providência dos cidadãos. E toda essa massa informe, sob a direção de uma elite de gozadores, os “comissários do povo”, cujo fausto espantaria ao próprio Allard que tão bem estudou o luxo excessivo dos sátrapas do paganismo antigo, como espantou ao Embaixador Davis, ao visitar a casa de campo de um “comissário do povo” nos arredores de Moscou.

* * *

Tudo isto por que?

Porque esses reformadores, tanto os radicais e revolucionários quanto os levados por idéias em delírio e afastadas de seus justos limites de aplicação, fazem abstração da natureza do homem tal qual nós, católicos, a consideramos, e põem a solução do problema social mais em meios materiais do que na indispensável reforma dos corações e das vontades.

E no caso particular que estamos estudando, o católico vê, de relance, como é profundamente errado esse delírio da noção do cooperativismo, pois ele sabe, em primeiro lugar, que a vida econômica não pertence ao Estado.

Como diz D. Lallement em seus “Princípios católicos de Ação Cívica”, “assegurar a conveniente subsistência dos seres humanos pertence fundamentalmente à família; é uma das responsabilidades e o cumprimento deste papel desenvolve nela as virtudes de previsão e de ajuda mútua. Em sua tarefa econômica, as famílias se completam normalmente por meio de organizações profissionais, industriais, comerciais, bancárias, que, instituídas para suprir as insuficiências da ação familiar, não devem entravar a vida humana no lar. Tudo isto, embora adquirindo amplo desenvolvimento, continua sendo do domínio da atividade privada”.

E o Estado, guardião e promotor do bem comum, não deve substituir-se a essas instituições, nem absorvê-las, nem destruir o espírito de variedade que deve existir na sociedade humana.

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As diversas formas de socialismo reclamam a dependência das funções econômicas aos órgãos diretores da sociedade. Como diz Pio XI, “o socialismo, ignorando completamente o sublime fim do homem e da sociedade, nada levando em conta, supõe que a comunidade humana foi constituída tendo em vista somente o bem-estar. Com efeito, do fato de que uma divisão apropriada do trabalho assegura a produção mais eficazmente que pelos esforços individuais dispersos, os socialistas deduzem que a atividade econômica – cujos fins materiais são os únicos que retém sua atenção –, deve ser necessariamente conduzida socialmente. E desta necessidade se segue, segundo eles, que os homens se acham obrigados, no que toca à produção, a entregar-se e submeter-se totalmente à sociedade. Mais ainda, os bens mais elevados do homem, sem excetuar a liberdade, estariam subordinados e mesmo sacrificados às exigências da produção mais racional. Este atentado cometido contra a dignidade humana na organização “socializada” da produção, seria amplamente compensado, asseguram eles, pela abundância de bens que, socialmente produzidos, seriam prodigalizados aos indivíduos, e que estes poderiam, a seu gosto, se entregar às comodidades e prazeres desta vida. Desta maneira, a sociedade, tal como a sonha o socialismo, não pode ser concebida, de um lado, sem o emprego de um constrangimento manifestamente excessivo e, por outro lado, goza de uma licença não menos falsa, pois que nela desaparece qualquer autoridade social verdadeira; esta, com efeito, não pode fundar-se sobre interesses temporais e materiais, mas somente poderá vir de Deus, Criador e fim último de todas as coisas” (Encíclica Quadragesimo Anno).

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Portanto, para o católico, qualquer tentativa de implantação de uma reforma social baseada nesse pan-cooperativismo estatal ou para-estatal, nada mais será que um artifício a mais, usado a fim de iludir o povo, na tentativa de condução da humanidade ao Estado totalitário socialista.

Estamos, portanto, diante de uma nova frente de combate em luta contra o messianismo demagógico da “nova ordem providencial e totalitária”.