Plinio Corrêa de Oliveira

 

Pela Europa

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 12 de agosto de 1945, N. 679

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Há pouco tempo ainda, a opinião mundial estava suspensa ao resultado das eleições britânicas. Sentiam todos, que o rumo escolhido pela opinião inglesa influiria sobre a evolução política de todos os povos, e abriria uma nova era na história do mundo.

O mundo hoje é pequeno. O telégrafo, o avião, o rádio tornaram tão fáceis as comunicações entre todos os povos, que um acontecimento ocorrido em qualquer parte do globo, dentro de poucos minutos é conhecido no polo oposto. Haja vista a morte de Roosevelt. Logo que divulgada na capital americana, a notícia correu mundo e, trinta minutos depois, punha em alvoroço Lausanne e Pequim, Stambul e Bogotá, Oslo e a Cidade do Cabo. A interpenetração de comunicações traz consigo a interpenetração de idéias e problemas. Já não há questões locais. Tudo se internacionalizou. Qualquer acontecimento ocorrido em Pequim pode influenciar mais a fundo o Rio, neste século XX, do que se se verificasse em alguma das capitais das nossas repúblicas irmãs, no século XIX. Como essa transformação se passou aos poucos, o público nem sempre percebe o nexo existente entre os acontecimentos nacionais e internacionais. De quando em vez, entretanto, esse nexo aparece em todo o seu vigor, e certos acontecimentos internacionais repercutem em cada país como se fosse um acontecimento interno. Foi o que se deu com a morte de Roosevelt, e, mais recentemente, com as eleições inglesas.

Interessa-nos fixar este aspecto da realidade contemporânea, porque certos leitores, algum tanto atrasados em seu modo de considerar o jornalismo moderno, mais de uma vez têm criticado o LEGIONÁRIO pela atenção "excessiva" que daria à vida internacional. Acham que deveríamos cuidar pouco dos problemas europeus, para concentrar nossa atenção nos problemas brasileiros. Claro está que nunca descuidamos do que é nosso. Entretanto, é de toda a evidência que o mundo hoje está de tal maneira organizado, que tudo quanto é local se entrosa no que é mundial. E é no âmbito internacional que se decidem todos os grandes problemas referentes à civilização e ao futuro do Ocidente.

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Isto posto, consagremos algum espaço à análise das eleições inglesas.

Nada temos a acrescentar sobre o que dissemos nos "7 dias em revista", de nossa penúltima edição, sobre a queda de Churchill. O acontecimento estarreceu a própria Inglaterra onde, segundo um telegrama publicado na imprensa diária desta Capital, uma "verdadeira onda de surpresa" soprou pelo país, à vista do que sucedeu.

Os primeiros instantes, depois da apuração geral, foram de pasmo. Pareceu desde logo que a onda vermelha - ou antes rósea, como diria nosso grande colaborador, Mons. Ascanio Brandão - tinha coberto toda a Inglaterra. A maioria da esquerda no Parlamento novo era esmagadora. O que não poderia ela tentar?

Um primeiro problema chamava desde logo a atenção. Em Potsdam, Truman e Stalin aguardavam o resultado das eleições, e os representantes que o povo inglês designaria para reatar os entendimentos até então entabulados com o Sr. Winston Churchill. A perspectiva do comparecimento de um governo maciçamente trabalhista, em uma conferência internacional em que o grande problema é delimitar as ambições do expansionismo soviético, criava para os "vermelhos" uma situação muito desagradável. A Inglaterra jamais permitiu que se constituísse no continente europeu uma grande potência que dominasse as demais. Para ela, é isto absolutamente vital. Foi para evitar a formação de um desses "colossos" que ela moveu céus e terra contra Napoleão, e acabou por vencê-lo. Os tempos de Napoleão estão distantes. E distantes estão as granadas inofensivas, as espingardinhas de menino, os canhõezinhos de caçar aves, com que combatiam seus soldados. Hoje, o problema do bombardeio de Londres, de "algum ponto no litoral europeu", é tremendo. O Canal da Mancha vai tomando cada vez mais ares de um regatinho que a técnica moderna transpõe com facilidade surpreendente. O "esplêndido isolamento" das "ilhas" cessou. E por isto mesmo elas estão cada vez mais interessadas na política continental. A segurança da Inglaterra foi jogada em Potsdam, tanto quanto a da França ou da Suíça. Que energia, que coragem, que resistência ao imperialismo dos soviéticos saberia opor um regime trabalhista?

Tremendo problema, na verdade, que comovia a opinião inglesa no que ela tinha e tem de mais visceral: o sentido imperial.

E se fosse só isto! Há todo o problema do Oriente. A questão da reorganização da China interessa sobremodo aos russos. A China será a grande dominadora do Extremo Oriente. Em que sentido atuará ela como potência amarela? Apoiará a política colonial anglo-americana em detrimento da Rússia? Ou, pelo contrário, apoiará a Rússia contra os anglo-americanos? O problema é grave, porque na primeira hipótese, todos os sonhos da expansão soviética na Ásia oriental e mesmo média, ficam limitados. E, na segunda hipótese, através da "longa manus" chinesa, o facão bolchevista pode ser facilmente enterrado no flanco da Índia. Desde que os indu-russos apoiem o autonomismo hindu, podem facilmente provocar uma separação, na base de um governo nacionalista e popular, contra a Inglaterra, apoiada pelos rajás. E todos sabem que a Índia não está só na Ásia... mas na menina dos olhos de cada inglês!

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A unidade do império e a soberania da metrópole estavam em jogo, e continuam em jogo. Jogo contra quem? Contra a Rússia. Movido por quem? Por um governo russófilo. O que mais para inquietar um inglês?

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Mas então, dir-se-á, como explicar que os ingleses tenham arrancado do pedestal o homem símbolo, que era Churchill, e tenham formado contra ele uma maioria parlamentar tão maciça?

O problema poderia ser invertido. Como explicar, se Churchill era o homem-símbolo da grandeza britânica, e o momento exigia uma ação russófoba tão decidida, como explicar que os ingleses formassem contra ele uma maioria que parecia esmagadora?

Churchill é um grande homem. Os grandes homens, para serem vistos à distância são muito decorativos. De perto a coisa é outra. Por isto, a posteridade os admira melhor que seus contemporâneos. O grande homem faz grandes coisas, tem um grande vulto, arrasta e impõe. Em torno dele, há as dezenas de milhões dos pintos da mediocridade, que o aplaudem no exílio, mas se sentem esmagados pelo seu vulto colossal. A mediocridade é tímida, incoerente, míope, invejosa. A grandeza do homem invulgar é para ela um insulto. Cada homúnculo imagina, nas regiões confusas de seu "underground" espiritual, que ele talvez pudesse fazer melhor, ao menos neste ou naquele caso concreto. O grande homem vê longe, a pintalhada está no hábito de não compreender seus planos e de se deixar arrastar ao longo de suas realizações como uma ovelha que vai para o matadouro, ou uma criança que trilha a montanha russa. A coerência dói à mediocridade como a primeira aula dói ao analfabeto, ou o sapato ao caipira. O subsolo do triunfo de cada grande homem é feito de admiração, cheia de recalques e ressentimentos, dos seus contemporâneos. E, por isto, em geral a opinião pública vê com alívio a queda do colosso. Seu primeiro calafrio nasce apenas no momento em que ela percebe o buraco imenso em que as bases do monumento derrubado deixaram no solo.

Contra Churchill havia certamente disto. Uma grande crise econômica agravava contra ele ressentimentos comuns. As eleições surpreenderam a Inglaterra em pleno mau-humor. Daí seu resultado.

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Qual foi esse resultado? Muito menos decisivo do que em geral se pensa. A maioria parlamentar na Inglaterra é, indiscutivelmente, trabalhista. Mas, hoje mesmo, se o Rei dissolvesse o Parlamento - prerrogativa normal da Coroa, que nada tem de golpe de Estado, de "golpismo", como aqui se diz - é provável que já o resultado da eleições seria algum tanto diverso, porque a todos causou pesar sincero, o que sucedeu com Churchill... e receio vivaz, o que se pode suceder na política exterior de um ministério trabalhista.

Há mais. De fato a maioria trabalhista foi fraca. Ela foi apenas de dois milhões de eleitores, parecia insignificante num imenso colégio eleitoral como é o da Inglaterra. Apenas por uma singularidade das leis inglesas é que uma tão fraca maioria eleitoral poderia dar uma tão forte maioria parlamentar. Na Inglaterra, o domínio da opinião é uma realidade. E nenhum político inteligente teria a ousadia de arrastar por vales e montes os destinos ingleses contra os verdadeiros desejos de uma maioria grande e sólida.

Do contrário, uma crise cujos elementos já existem, poderia de um momento para o outro minar a vitória da esquerda.

Com efeito, a Câmara dos Lordes é anti-trabalhista, e sua apreciação é necessária para os projetos de Lei. Se surgir um impasse entre os Lordes e os Comuns, o Rei pode dissolver o Parlamento e convocar novas eleições. Se estas se derem num ambiente de reação contra as demasias trabalhistas, reação esta facilmente despertada por um líder de oposição tremendo como Churchill, onde irá parar o trabalhismo?

Assim, pois, tudo indica que na Inglaterra os trabalhistas vão ser muito moderados, vão viver de tateações, de vacilações, de avanços e recuos. A política dos trabalhistas será - para empregar a palavra de um diplomata do século 18 - de fazer tudo quanto a opinião permitir... e permitir tudo quanto a opinião quiser fazer, ou quiser que eles façam.

Todos esperaram um resultado decisivo das eleições inglesas. Foi precisamente o que não veio.


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