Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
Falseadores esquerdistas do regime democrático

 

 

 

 

 

Legionário, 27 de maio de 1945, N. 668, pag. 5

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Os demagogos liberais, cujo oportunismo nos autoriza a afirmar que estariam solidários com a direita totalitária se a esta coubesse o êxito no atual conflito, começam a sustentar a impossibilidade da existência de outra democracia a não ser a de pendores esquerdistas. A marcha para a esquerda assumiria então o caráter de um movimento irresistível da corrente democrática. De modo que, ao aprovar a fórmula democrática de governo, a Igreja estaria concorrendo com o prestígio de sua autoridade para a implantação do socialismo no mundo.

A verdade, porém, é que, como os demais regimes políticos, o regime democrático também não está livre de corrupção. E a corrupção do regime democrático é justamente a demagogia ou esse democratismo de que se tornaram porta-vozes, não somente os agentes soviéticos que entre nós desenvolvem a propaganda vermelha, mas também uma certa ala dos chamados liberais.

*

O LEGIONARIO por mais de uma vez tem condenado esse democratismo liberal, apontando-o como um dos principais responsáveis pelo surto dos totalitarismos socialistas, pardos e vermelhos no mundo moderno, não somente pela desordem social, política e econômica que provocou, mas também pelo concurso que as hostes liberais em geral prestam diretamente à obra revolucionária que vem sendo desenvolvida pelas alas mais avançadas da conjuração anticristã.

Não resta dúvida que nesse oportunismo liberal há uma certa coerência. O fiel seguidor dos princípios que nortearam a Revolução Francesa bem sabe que o movimento iniciado por Robespierre e seus cúmplices não chegou às suas últimas consequências. E as últimas consequências da Revolução Francesa não são outras senão o Estado totalitário socialista. Nada para estranhar, portanto, que para o democratismo liberal a marcha da democracia para a esquerda, agora que foi frustrado o golpe socialista do nazismo, assuma o aspecto de um movimento incoercível, pois se trata de um programa traçado e desejado pelas forças que desencadearam sobre o mundo a campanha revolucionária contra a civilização católica, a cujos golpes de audácia estamos presenciando.

Em 1854, numa época em que os liberais menos iniciados ainda eram adversários do socialismo, eis o que sobre o assunto já escrevia um publicista católico:

“A noite de 4 de agosto de 1793 foi uma verdadeira noite de socialismo. Ela foi iluminada pelos incêndios dos castelos, os quais eram destruídos pelos devastadores dos próprios títulos de propriedade, para abolí-la até os fundamentos, ao mesmo tempo que esses fundamentos eram sacrificados no seio da Constituinte, com um açodamento que parecia querer fazer perdoar à sociedade sua antiga existência.

Esse socialismo, executado depois em ponto grande, pelo confisco e venda dos bens feudais e eclesiásticos, tinha um caráter político; mas, no fundo, era um verdadeiro socialismo, e o olhar penetrante de Burke bem o soube descobrir. “Uma vez abalada a prescrição, dizia ele, não há mais espécie de propriedade que possa ser assegurada, desde que ela se torne bastante considerável para excitar a cupidez de um poder indigente. Vejo que os confiscos começaram pelos bispados, pelos capítulos, pelos mosteiros, mas não os vejo se deterem ali. Estou certo de que os princípios que predominam em França se estenderão a todas essas pessoas, a todas essas classes de pessoas, em todos os países do mundo, que encaram sua indolência com a mesma calma com que consideram sua segurança. Essa espécie de inocência dos proprietários será logo depois perseguida sob o pretexto de inutilidade, e da inutilidade se passará à incapacidade de possuir tais bens”.

Que golpe de vista profético!

De resto, nessa própria época não faltaram as advertências: e alguns lampejos de verdade e de sabedoria vieram descobrir e fazer aparecer no futuro o espectro do socialismo.

“Vós nos conduzis à lei agrária!” clamou um dia o Padre Maury. “Todas as vezes, ficai sabendo, que remontardes à origem das propriedades, a nação até aí remontará convosco.”

“Sobre que rampa nos desejais colocar? dizia o sábio Arcebispo de Aix, Boisgelin; hoje se atacam as doações feitas à Igreja, amanhã atacar-se-ão as doações feitas às comunidades, as doações feitas aos colaterais, aos estranhos. Infeliz da sociedade, se se remonta aos princípios! Já não se propôs derrogar os testamentos como uma usurpação do futuro, como atos ilegítimos, que transmitem a propriedade de colheitas que ainda não existem, e que o testador nem semeou nem colheu? Deter-se-á numa primeira exceção? Quem poderá nos responder? ... “

O socialismo hoje não deixa de tirar vantagem desses precedentes por reflexões muito coerentes: “Submetendo a discussão, diz Louis Blanc, a legitimidade dos bens eclesiásticos, a Assembleia, sem o saber, convidava o povo a discutir a inviolabilidade dos bens leigos; ela cavava abismos dos quais não percebia a profundeza. O resultado foi, portanto, duplo e contraditório na aparência: muitos proprietários se enriqueceram; mas o direito de propriedade exclusiva ficou profundamente abalado” (Histoire de la Révolution Française, t. III, p, 23).

“E assim se entreabriu o último abismo em que a sociedade vai cair, o abismo do socialismo, que foi aberto pelo abismo da revolução, como este foi aberto pelo do filosofismo, que havia sido aberto pelo abismo do protestantismo: Abyssus abyssum invocat (um abismo atrai outro abismo).

A propriedade aristocrática e eclesiástica foi substituída, quando de seu sacrifício, pela propriedade burguesa, mas a substituiu, para o futuro, tornando-se aristocrática por sua vez em relação ao simples proletariado. O grito de abaixo os privilégios! lançado pela revolução contra as classes feudais, devia ser repetido mais tarde pelo socialismo contra as classes burguesas, tornadas feudais elas próprias pelo desaparecimento das classes superiores e pelo transbordamento das classes inferiores. A propriedade não é mais sagrada em nossos dias e não tem mais fundamento que os privilégios e os bens que foram arrebatados de seus possuidores.

“É necessário dizer que a situação criada para a propriedade, no novo regime, é completamente anormal, e a expõe gravemente aos ataques de que ela é alvo. Na antiga sociedade francesa, e em toda a sociedade, a riqueza jamais foi o objeto da condição daqueles que a possuíam, mas o meio, a maneira de ser de uma condição cujo objeto era superior e eminentemente social. Era-se votado à carreira das armas, à vida eclesiástica ou à magistratura; pagavam-se pela própria pessoa, pelo próprio sangue, pelo apostolado ou pela inteligência as funções sociais; e a riqueza vinha somente se unir a essas funções, a esses serviços públicos, e deles era como o dote e o tratamento. A maioria dos privilégios eram privilégios de devotamento e de sacrifício. A frase eminentemente social e francesa Noblesse oblige exprimia perfeitamente essa verdade, e não havia grande família que deixasse de dar a cada geração o preço de sua fortuna, dedicando um ou vários de seus filhos ao serviço público e social da pátria e da religião. As coisas poderiam ter que se alterar, os privilégios poderiam se tornar abusivos, impor-se sua reforma; não quero discutir este ponto, mas o que desejo frisar é que esses privilégios, que encerravam obrigações de sacrifício, uma vez arrebatados, a propriedade permaneceu sozinha em suas obrigações, e, de meio, de acessório, se tornou o principal e frequentemente o único objeto de sua posse.”

“A antiga sociedade política e civil se achava forte e largamente organizada. Ela se assentava no princípio católico que a havia formado, mesmo após o protestantismo e o filosofismo haverem arrancado dos espíritos esse princípio. E a sua destruição não se deu sem violentos esforços. Esses esforços, levados por sua própria violência não puderam ser domados, e (17)89 caiu em (17)93.

Sempre se procurou estabelecer uma diferença enorme entre essas duas épocas. Ela existe quanto aos fatos: mas quanto aos princípios e ao fim visado, não. A insurreição foi o princípio comum, e esse princípio foi proclamado por 89: 93 nada fez que o repetir e que o realizar pela destruição de todas as superioridades que a isso se opunham. O fim não era menos comum: fazer desaparecer o edifício apenas, 89 desejava depô-lo, e 93 o abateu. O primeiro desejava matar a realeza, a aristocracia, o clero; o segundo assassinou o rei, os nobres e os sacerdotes. A revolução golpeou tão fortemente a ordem política e civil, que abalou a ordem social.

Isto se deu implicitamente, não somente pelo confisco das propriedades eclesiásticas e feudais, no que Burke viu tão bem um futuro atentado contra a propriedade privada, mais ainda pelo confisco desta pelo simples fato da saída da França no momento em que o país estava em fogo, pela criação do papel-moeda, pela bancarrota que veio em seguida, o empréstimo forçado e arbitrário, o maximum que arruinou o comércio de um só golpe, e as requisições de toda espécie que se sucediam sob o regime de todas as fações.

O privilégio da propriedade ficou profundamente abalado por todos esses atentados. E Proudhon vem confirmar a judiciosa observação de Burke, ao dizer que a Revolução foi um levante pela lei agrária. Esta saiu em cena, como se sabe, na última hora e da maneira mais radical por Gracchus Babeuf, chefe do clube dos Iguais, que pugnava pela partilha de todas as terras e de todas as riquezas entre os cidadãos pobres, como uma consequência natural do princípio da revolução e de suas aplicações anteriores.

Uma palavra dessa sinistra época, o uso da qual iria num crescendo com a destruição, fazia entrever onde a revolução devia culminar: era a palavra fraternidade que conduziria evidentemente à igualdade e à comunidade, tudo devendo ser comum entre os homens.

É o ponto em que Robespierre deixou a obra interrompida e é onde o socialismo a retoma hoje”.

“A Providência não permitiu, nessa época, que o holocausto da sociedade fosse inteiramente consumado. Ela susteve o machado nas mãos dos sacrificadores, e o voltou contra eles próprios. Tendo piedade da França e do mundo, suscitou um desses guantes de ferro nos quais mete sua mão quando deseja reter as sociedades em suas quedas, ou recolocá-las em suas bases.

Mas essas intervenções da Providência vêm apenas em auxílio da liberdade do homem, sem suprimí-la nem dispensar seu concurso. Elas deixam, por conseguinte, subsistir todos os elementos da luta. É uma trégua, é um “sursis” que Ela concede aos combatentes, para lhes deixar tempo de se reconhecerem, de acumular méritos ou agravos, em razão dos quais as últimas consequências do erro são conjuradas ou se consumam. Porque é preciso que se frise bem, essas consequências apenas podem ser suspensas enquanto o erro subsiste. E se o tempo que dura essa trégua não é empregado em repudiar o erro, elas vão se acumulando, para se precipitarem um dia com uma violência quase irresistível, recuperando por sua impetuosidade o tempo que perderam nesse período de relativa calma”.