Plinio Corrêa de Oliveira

 

Vacina

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 20 de maio de 1945

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Li, com sincero pesar, e mais do que isto, com desapontamento, a notícia de que os Aliados pretendem destruir um dos mais "afamados" campos de concentração nazista, para evitar o desenvolvimento de não sei que germens nocivos à saúde pública.

De tudo quanto se fez, ou se planeja fazer para extirpar no nascedouro qualquer veleidade de renascimento nazista pouca coisa tem importância comparável à conservação dos campos de concentração. Os horrores que lá se passaram foram incríveis. Tão inexprimíveis que, há dez anos atrás, ninguém os julgaria possíveis em terras civilizadas. Daqui a dez anos, se o mundo encontrar novamente os caminhos da paz, elas parecerão novamente inverossímeis. E enquanto destes tormentos ficará na memória dos povos recordação tétrica com ares de lenda suspeita, a lembrança dos feitos militares nazistas, sem dúvida notáveis, se irá cristalizando em legenda heróica. Com isto, segundo a conhecida e gasta comparação mitológica, o nazismo irá ressuscitando de suas próprias cinzas e, da vergonhosa realidade histórica que temos diante dos olhos, se desprenderá para orgulho dos nacionalistas germânicos do futuro, um nazismo legendário, militarista, heróico. Isto se dará com a naturalidade com que da larva sai a borboleta. O militarismo gerará, mais uma vez, as crueldades e todas as ignomínias que o mito da guerra criou em nossos dias.

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Não seria novo esse processo de reabilitação histórica. Observamo-lo em ação, beneficiando a memória dos facínoras da Revolução Francesa. Enquanto Robespierre, Danton, Marat, Saint-Just, a clique terrorista enfim, cometia suas famosas atrocidades, toda a opinião mundial se indignava contra eles. Para as crianças, eles personificavam os espectros e os monstros noturnos de que a imaginação infantil povoa os quartos escuros. Para as mães, para as esposas, para as filhas, eles eram algum dos bandos de monstros que São João anteviu e o Apocalipse descreve com uma terrível meticulosidade de pormenores simbólicos. Para os "espíritos fortes", a própria personificação dos germens de decomposição e de desordem que as sociedades normais eliminam habitualmente, ou pelo menos comprimem em seu "bas fond". De tal maneira esse horror embebera todas as camadas da sociedade, que a reação mais ardente contra a "mafia" do Comité não procedeu como de costume, dos políticos ou dos militares, mas dos quadrantes menos habituados à ação violenta. Contra Marat, por exemplo, foi o braço alvo e feminil de uma jovem sentimental, de boa estirpe, de educação cuidada e compleição delicada, que vibrou o golpe fatal. Passaram-se os tempos, morreram as últimas pessoas que tinham sofrido durante o Terror, por si ou vendo os outros sofrer. Toda a abjeção dos personagens revolucionários foi sendo esquecida. E, hoje, a estampa de Marat ou de Danton figura, marcada com uma bela fita tricolor, no compêndio de História de muita mocinha do feitio de Charlotte Corday. A cristalização da legenda histórica transformou o bandido em herói, o tirano em mártir da liberdade.

O mesmo se deu, "mutatis mutandis", com Napoleão. Não é inteiramente verdadeiro dizer que em 1814 ou 1815 a França tenha sido derrotada pela Europa coligada. Napoleão foi certamente derrotado. A França se deixou vencer. Extenuada de lutas, farta das conquistas artificiais, do peso de seu Império desmesurado, anacrônico e postiço, dos louros inevitavelmente efêmeros da epopéia napoleônica, os franceses já não queriam lutar e apoiavam molemente um déspota de que, no fundo, se queriam ver livres. Não há dúvida de que os feitos militares napoleônicos tem sido canonizados pelos técnicos de guerra como admiráveis obras primas da perícia militar. Mas a ciência moral se recusava e se recusa categoricamente a sancionar com igual admiração as causas e as conseqüências dessas guerras. Para a Europa inteira, e mesmo para imensas camadas da opinião francesa, Napoleão não era senão um Átila malfazejo que tinha arrastado seu país e o mundo inteiro a uma aventura louca. Com o tempo, porém, a recordação de tudo isto se esvaiu. E o Napoleão da legenda, o Napoleão que se ensina aos escolares, emergiu heróico, viril, respeitável, na admiração de todos os povos, mesmo dos que ele oprimiu mais duramente. E ficou para uso dos especialistas a recordação mais científica, menos brilhante e mais verdadeira, do autêntico Napoleão, que era o que as famílias na retaguarda, e os moribundos nos campos de batalha, maldiziam de todo coração.

E haverá ainda outros exemplos a aduzir.

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A este propósito não será demais acrescentar que a propaganda Aliada está utilizando os dados provenientes dos campos de concentração de um modo nem sempre muito previdente.

Qualquer homem de mediana cultura, nos dias que correm, não pode por em dúvida nem sequer os mais inconcebíveis relatos que se fazem sobre os processos de detenção, tortura e morte, usados nos antros nazistas. Isto que hoje é evidente, que se apresenta a nosso espírito como realidade quente, palpitante, que se toca com as mãos, nem sempre permanecerá tão quente e tão palpitante com o correr dos anos. E, por isso mesmo, certas preocupações hoje supérfluas, serão de futuro de uma imensa importância.

Quando Nosso Senhor apareceu aos Apóstolos reunidos, não era necessário tocar suas divinas Chagas para se ter a certeza de que era Ele mesmo. Tanto é que São Tomé mereceu censura pela dúvida infundada em que caiu. Mas, como observa finamente Santo Agostinho, obrigado a tocar com as próprias mãos o lado santíssimo ferido pela lança, São Tomé certificou sobre a autenticidade da aparição toda a posteridade, excluindo a hipótese de uma figura vaporosa suscitada por algum jogo de luz ou pela sugestão dos Apóstolos extasiados.

Convém mergulhar fundo o dedo de São Tomé nessas tristíssimas chagas que são os campos de concentração. Seria melhor que em lugar de comissões de parlamentares anglo-americanos, os Aliados constituíssem uma imensa comissão internacional, onde preponderassem os professores universitários e os representadas das forças conservadoras Aliadas e dos países neutros, inclusive da Espanha e Portugal. Essas comissões poderiam funcionar sob a direção da própria Santa Sé, ou, caso isto não fosse viável, da Suíça. E, com o auxílio do cinema e da fotografia, dirigindo pesquisas policiais documentadas com a última precisão, dever-se-ia fazer um relatório monumental, enciclopédico, de tudo quanto há nos campos de concentração, acompanhado do depoimento dos prisioneiros ali encontrados. Filmes, fotografias, documentos, tudo autenticado com o maior rigor em várias vias oficiais, e divulgado em uma multidão de cópias também autenticadas, constituiria o maior fruto desta guerra. A comprovação da terrível, da satânica fecundidade dos sistemas religiosos e filosóficos que conduziram ao nazismo.

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Qual o fruto deste trabalho insano e dispendioso? A paz. Evidentemente, não há no mundo um só remédio que assegure a paz perpétua. Mas, pelo menos, os inomináveis horrores dos campos de concentração marcariam tão a fundo o espírito e a mentalidade nazista, desmoralizariam tão completamente o totalitarismo aos olhos de todas as pessoas que não tivessem perdido completamente o senso moral, que o nazismo só poderia renascer, com camisa parda ou qualquer outra insígnia, caso o mundo tivesse chegado ao último grau de putrefação.

Uma só coisa seria necessária: documentação perfeita, comprovada por elementos inteiramente insuspeitos, igualmente capaz de se impor à convicção dos nossos contemporâneos e da mais remota posteridade.

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Com isto, dissemos, opor-se-iam sérios obstáculos a um renascimento nazista. E, portanto, a um novo surto belicista.

Ora, quanto dinheiro se economizaria por essa forma? Há proporção entre o que os Aliados possam gastar para sanear um campo de concentração, ou levantar um relatório perfeito sobre ele, e o que gastariam em nova guerra? Por que então destruir o melhor de todos os documentos, o próprio campo em que as monstruosidades se passaram com seus fornos crematórios, seus instrumentos de tortura, suas salas baixas, e todos os seus horrores?

Penso que, de todo o dinheiro que se gastar para evitar nova guerra, nenhum teria emprego mais eficaz.

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E, já que se toca no assunto, seria conveniente acrescentar que a comissão internacional de que falamos também deveria apurar, com dados certos, de uma evidência indiscutível, os desmandos da vida privada dos principais chefes nazistas. Muito há que dizer a este respeito, incluídas coisas que uma simples narração jornalística, máxime em um jornal católico, não poderia mencionar.

O que de certo, de irretorquível, se fizesse nesse sentido, poderia completar utilmente o relatório enciclopédico de que falamos, e fixar definitivamente aos olhos do povo a figura desses heróis de fancaria, viveurs excêntricos e dissipados, pródigos entretanto em proclamações sonoras incitando o povo à coragem e ao sacrifício.

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E uma última palavra. A ciência criminal tem demonstrado de modo irretorquível que a narração de crimes, feita com sensacionalismo, é nociva às massas. Estas, entretanto, precisam não ignorar o que sofreu a humanidade nos campos de concentração. Seria necessário organizar filmes adequados para cada categoria de públicos, despir a apresentação das hediondezas – tanto quanto a natureza horripilante dos quadros permita – de qualquer nota de sensacionalismo. A apresentação deveria ser rigorosamente científica, com uma objetividade e uma frieza que excluísse qualquer artifício próprio para excitar [os] nervos. Como se o horrendo assunto precisasse de tal! Nestas condições, seria mesmo desejável que o comparecimento a estes filmes fosse obrigatório para toda uma categoria de pessoas: estudantes de várias idades, operários, soldados etc.

assim a preservação contra o nazismo se faria com a melhor das medidas: a vacina tirada do próprio mal.


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