Plinio Corrêa de Oliveira
Nova
et Vetera
Legionário, 13 de maio de 1945, N. 666, pag. 5 |
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Vimos em nosso último número como entre os primeiros ataques revolucionários contra a família e contra a propriedade privada, se acha a partilha forçada do patrimônio familiar entre todos os herdeiros, em que o Estado costuma ficar com a parte do leão. Nesse regime da partilha forçada das sucessões, cada um dos filhos recebe, com efeito, uma fatia da fortuna paterna, sem que nenhum deles represente e continue o patrimônio familiar. Ninguém se aferra à sua parte da herança, porque esta, para cada um, nada mais é que o caco de uma fortuna cuja lembrança lhe torna patente a inferioridade de seu novo estado. Ninguém vê nesses bens uma herança de tradições e de recordações, mas apenas uma fonte efêmera de renda. Que acontecerá? O filho, pouco afeiçoado à sua parte do patrimônio, a venderá sem repugnância, para ir para outros rumos e tentar fortuna em nova carreira. E assim os bens de família passarão facilmente a estranhos. E é um fato universalmente constatado que a partilha forçada das heranças vem acarretando tremenda mobilidade na propriedade individual. * Nabote dissera ao príncipe que desejava comprar sua vinha: “Deus me livre de vender a herança de meus pais!” Ele via, com efeito, nessa vinha, todos os seus antepassados: com o suor de seu rosto a haviam plantado; e ela os havia abrigado e alimentado, como abrigava e alimentava ao próprio Nabote. Legada por seus pais, estes pareciam sobreviver naquela herança. “Infeliz de mim, portanto, se vendo a herança de meus pais!” Ora, quando no seio de uma nação as propriedades se transmitem íntegras nas mesmas famílias, todos os proprietários se afeiçoam, como Nabote, a seus bens, com toda a afeição que têm por seus antepassados. Suportarão todos os sacrifícios, e se sujeitarão aos mais rudes labores a fim de evitar que a herança paterna lhes escape das mãos. Que efeito poderia exercer sobre uma sociedade assim fundada as declamações dos sectários contra a propriedade privada? Vemos, pelo contrário, as famílias empobrecidas e sem bens de raiz pelo esfacelamento do patrimônio familiar pela legislação revolucionária e igualitária, é fácil presa da demagogia socialista. * Mas ao lado dessa destruição do patrimônio familiar, vemos outro atentado contra a ordem social na dissolução da vida profissional, que era um prolongamento da vida familiar. Um fato está preso ao outro, pois bem sabemos as raízes profundas que as corporações possuíam no seio das famílias. Elevado e enobrecido pelo Cristianismo, todo trabalho honesto era considerado digno. A hierarquia social se mantinha sem artifícios, pela própria força dos costumes, um dos quais era a transmissão hereditária das profissões. O bom senso popular repudiava isto que hoje hipocritamente os corifeus da subversão da ordem natural a que os homens estão sujeitos dão o nome de igualdade social. E para exemplificar a nossa assertiva, ainda uma vez nos serviremos de algumas páginas de Funck-Brentano em “L'Ancien Régime”. * * *
André le Nôtre (1613-1700), traçou os mais belos jardins e as mais celebres perspectivas, era filho e neto de arquitetos paisagistas. Foi feito nobre por Luís XIV. Acima, breve vídeo sobre os jardins dos castelos de Versailles, Vaux le Vicomte e Chantilly, cujos jardins foram idealizados por aquele famoso arquiteto paisagista. À conservação e à transmissão hereditária do patrimônio familiar se aliam estreitamente a conservação e a transmissão da profissão paterna, desde a profissão de rei (a expressão é de Luís XIV) na família reinante, até a profissão de lavrador na mais modesta família do campo. Se o pai havia exercido tal ou tal profissão, o filho a continuaria: nas famílias de lavradores ou artistas essa transmissão parece muito plausível; mas encontra-se ela nas mais diversas profissões, mesmo naquelas em que menos se podia esperar que existissem. As qualidades profissionais eram assim adquiridas naturalmente, familiarmente e com grande perfeição. Não somente o espírito e os conhecimentos eram dirigidos nesse sentido, mas o próprio caráter e as maneiras eram para isso modelados desde a infância. E que sustentáculo para a vida essa linhagem de antepassados, que haviam exercido a mesma profissão com honra e com dignidade! O que surpreende ainda mais é que essa mesma tradição familiar, que impunha a continuação da profissão paterna, é encontrada também nas profissões liberais, onde, pareceria, o talento pessoal, as disposições naturais, os gostos individuais deveriam servir de guias. Eis que se apresentam famílias de médicos, famílias de sábios, os Emery, os Geoffroy, os Sainte-Marthe, famílias de artistas, famílias de comediantes... O pai foi um músico, um pintor, um escultor, um arquiteto de nomeada: o filho será músico, pintor, escultor, arquiteto, a seu turno. Essa obrigação hereditária apresentava evidentemente um inconveniente bem sério quando o filho não mostrava nem gosto nem disposição para a carreira em que o pai havia brilhado; mas esse ponto de vista parecia de importância secundária: o essencial era que o filho fizesse o que o pai havia feito. Quanto ao resto, as coisas se arranjavam do melhor modo possível. Os pequenos Philidor tinham onze anos quando lhes foi dada, como aos filhos de Lully, a sobrevivência dos encargos musicais de seu pai. Depois os Aubert, os Rebel, os Francoeur... Se fizermos uma incursão entre os pintores, o espetáculo será semelhante. Encontramos durante o reinado de Henrique III, ao fim do século XVII, dois pintores com o nome de Beaubrun adidos à Corte Real na qualidade de valetes, segundo o uso medieval: tais eram João Foucquet, os irmãos Van Eyck, os irmãos Maelewel, Roger de la Pature. A dinastia dos Beaubrun, sob Luís XIII e sob Luís XIV, Luís Boulogne, morto em Paris em 1674, deixa dois filhos e duas filhas, todos pintores, sendo os dois filhos, Bon e Luís, pintores do rei. Os Audran formaram uma grande família de artistas que, na pintura, na gravura, na decoração, foram de grande brilho. Do mesmo modo no século XVIII os Cochin, os Drouais, os Tardieu, os Belle, os Oudry, os Parrocel, os Saint-Aubin... Cai-nos sob os olhos uma lista das melhores pinturas da Academia em 1737. Sobre oito nomes: De Troy, discípulo de seu pai; Coypel, discípulo de seu pai; Van Loo, discípulo de seu pai. A família dos Van Loo pode, na pintura, se comparar a dos Couperin e dos Philidor na música. João Van Loo era pintor em 1585. Forma na arte da pintura seu filho Jacó, que faz um pintor de seu filho Luís; que faz pintores seus filhos João Batista, Carlos e José. João Batista faz pintores seus filhos Luiz Miguel, Francisco, Carlos; e Carlos Van Loo faz pintor seu filho Júlio César. Dez Van Loo se sucederam cultivando com talento a arte da família; sete dentre eles foram acadêmicos e pintores da corte real. E não se limitava a isso a atividade artística da família. Carlos Van Loo tinha um cunhado, Lebrun, pintor de miniaturas. O mesmo se pode dizer dos Parrocel. Bartolomeu Parrocel pintava em Montbrizon no início do século XVII; tinha três filhos, João, Luís e José, todos pintores. José se tornou célebre sob o nome de Parrocel das batalhas. Luís foi pai de dois filhos, Inácio e Pedro, ambos pintores. Inácio é o pai do famoso pintor Parrocel, o Romano. Pedro Parrocel teve dois filhos artistas, gravador Pedro Inácio, e o pintor José Francisco, as três filhas do qual também foram pintoras. O Parrocel-das-batalhas é o pai do pintor Carlos Parrocel. O pintor Noel Coypel é pai de Antonio e Nicolau: ambos pintores, aquele com grande êxito. Seu filho Carlos foi o mestre-pintor do duque de Orléans. A dinastia dos Vernet é famosa. O pintor Antonio Vernet, no fim do século dezessete, teve quatro filhos pintores: José, Inácio, Gabriel e Francisco. José foi célebre pintor de marinhas. Era cunhado do escultor Guilbert. Seu filho, o pintor Carlos Vernet, se casou com a filha de Moreau e foi pai de Horácio Vernet, que desposou a filha de Paul Delaroche. Os Petitot produziram uma dinastia de retratistas em esmalte. Entre os escultores as mesmas tradições de família formavam ramos de artistas, os Dupré, os Bondin, os Bourdin, os Coysevox, os Coustou, os Adam, os Slodtz. “A família Slodtz, escreve Bochaumont, é há muito tempo rica em hábeis artistas. Hoje eles são vários irmãos hábeis em arquitetura, pintura, escultura e decoração, filhos de um muito bom escultor que foi empregado pelo nosso finado rei (Luís XIV). Os Caffieri enriqueceram a arte francesa, durante um século e meio, com escultores, desenhistas, cinzeladores em cobre, desde o primeiro, Felipe, que Colbert nomeou escultor do rei, até João Jacques Caffieri, autor dos admiráveis bustos da Comédia Francesa. E eis os arquitetos, os Chambige, os Guillain, os du Cerceau, os Debrosse, os Gabriel. O grande André le Nôtre, que traçou os mais belos jardins e as mais celebres perspectivas, era filho e neto de arquitetos paisagistas. Foi feito nobre por Luís XIV. Anunciando a morte de Carlos Boulle, o famoso movelheiro de Luís XIV, o (jornal) Mercúrio informava o público que seu filho “havia herdado seus talentos”. Uma herança que não era permitido recusar. Dava-se nas artes o mesmo que na política: a família dominava e arrastava tudo. Talvez haja quem se ria disso, por falta de refletir sobre o assunto. Goscoin escreve em um estudo sobre a dinastia dos Lenôtre, arquitetos paisagistas: “Em nosso século desprezam-se as regras da hereditariedade. É por as haver compreendido que o Antigo Regime conheceu famílias que se nobilitaram pouco a pouco, adaptando-se a essa evolução lenta até aos mais altos cargos no Estado; é por as haver respeitado que nossos reis tiveram gerações de colaboradores incomparáveis, em que os pais, quaisquer que fossem suas funções, instruíram seus filhos a bem servir e a continuar sua obra”. Corrente enorme, irresistível e vivificante: famílias da nobreza de espada, famílias da nobreza togada, famílias de vereadores burgueses, famílias de artistas, cada uma delas com pais e filhos no mesmo mister, famílias de camponeses hereditariamente ligados ao quinhão de terreno que cultivavam, famílias de ministros, famílias de pintores, de escultores, de arquitetos, de músicos... Dos fatos precedentes cada um poderá tirar as conclusões que quiser. Contentamo-nos em expor os fatos. São passíveis de crítica as constituições revolucionárias e o código civil, porque são obra desejada, refletida, deliberada de um certo número de personalidades: as instituições e os costumes do Antigo Regime saíram espontaneamente do estado social em que se modelava a nação inteira. Não se pode censurar a macieira pelo fato de produzir maçãs nem a aveleira de produzir avelãs. Eis os frutos da grande árvore nacional. As artes industriais, conservando a tradição familiar na prática do ofício, disso tiravam grandes vantagens. Os filhos se formavam sob os olhos dos pais, lucrando com tudo o que os mais velhos no ofício haviam adquirido em experiência e em prática. O filho se tornava tão cioso do ofício quanto do nome paterno; empenhava-se em exercê-lo com honra - e aqui de novo entra em linha de conta o lar, a família. Os progressos, as transformações se faziam harmoniosamente, por etapas, em um sentimento de respeito pela obra paterna, influenciada pelo gosto, pelo engenho próprios ao indivíduo e à nova geração. Em nossos dias não há artista que não tente criar em todas as suas produções uma arte, um estilo, processos novos. O gênio humano não lhe basta. A exposição de artes decorativas se abre no momento em que se traçam estas linhas. Ela faz pensar um pouco no movelheiro posto em cena por René Benjamin. Ele fez uma mesa que se assemelha a uma cama e sonha fazer uma cama que se assemelhe a uma mesa. Eis a grande originalidade. Não há pormenor nas artes que não se filie aos ambientes. O artífice, que modela uma poltrona, deve harmonizá-la com os estampados com que o tapeceiro a estofará, deve adaptá-la ao estilo da peça em que será colocada, a menos de correr o risco de fazer “bric-à-brac”. Vede como o estilo Luís XIII saiu harmoniosamente, em seus robustos detalhes, do estilo da Renascença, e o estilo Luís XIV daquele da época precedente, evolução larga e profunda, leve e natural, que conduzirá à majestade da corte do rei-sol, para se tornar mais elegante e mais fino sob a Regência, de onde sairão as formas delicadas do estilo Luís XV. Estas serão mais sóbrias, preferindo a linha reta sob Luís XVI, quando se notará a predominância do gosto antigo no estilo Império. Sob o Primeiro Império trabalham ainda os artistas que haviam se formado nas práticas e nas tradições do Antigo Regime. Da perda dessas tradições, a Restauração seria lamentavelmente espectadora. Onde se acham os trabalhos de seda de Lyon que pareciam tecidos por mãos de fadas? Onde os trabalhos de talhe feitos pelos Boffrand, pelos Cotte, pelos Lassurance, e dos quais conservamos tão belos modelos no Arsenal, nos Arquivos, no Banco de França, na Escola de Belas Artes? Que é da arte do mobiliário que de Boulle a Oeben e a Riesener, produziu milhares de obras primas que não podemos nem mesmo nutrir esperança de igualar? Em que canto se escondeu essa joalheria parisiense sem rival no mundo? Que foi feito das nossas graciosas e fecundas fábricas de faianças populares, de Nevers, Rouen, Monstief, Estrasburgo, Sinceny, Quimpel, Saint-Cloud, Marselha, Saint-Amand, Seaux, Lunéville, tantas outras cujas relíquias são hoje guardadas em redomas? |