Plinio Corrêa de Oliveira
A grande experiência de
10 anos de luta
Legionário, 13 de maio de 1945 |
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"In hoc signo vinces" [Com este sinal – a Cruz – vencerás], disse uma Voz a Constantino num momento em que parecia incerta a sorte das armas. Essa Voz não se calou durante quinze séculos, e ainda hoje é a mesma a sua mensagem para o mundo hodierno. Acima, visão de Constantino (Raffaelo Sanzio)
1 - O término da conflagração mundial, e o esmagamento das potências totalitárias, não poderia deixar de ser assinalado pelo "LEGIONÁRIO" com uma edição consagrada, quase toda ela, ao grande acontecimento. Com efeito, a derrocada final do totalitarismo marca, para nós, o termo de uma longa e dolorosa campanha, na qual fomos obrigados aos mais duros sacrifícios, para esclarecer a opinião católica sobre o tremendo perigo que ameaçava a Igreja. De 1933 a 1942, a vida do "LEGIONÁRIO" foi, a este respeito, uma verdadeira via crucis, ao longo da qual não houve provação que nos fosse poupada. De 1942 a 1945, a luta, menos ostensiva e menos direta, não deixou entretanto de se fazer veladamente. O fim da guerra vem encerrar todo esse passado, e abrir um futuro em que os problemas se apresentam radicalmente diversos. Aproveitemos estes instantes fugazes, em que os cadáveres ainda estão quentes, em que as lágrimas ainda não secaram, em que a terra ainda não sorveu o sangue dos combatentes, em que os incêndios ainda fumegam, e os canos das metralhadoras ainda não esfriaram, para fixar em um quadro geral ainda bem vivo, a recordação destes anos de confusão e de tormenta. É este o instante propício para tal tarefa. A experiência histórica é muito mais substanciosa quando colhida em um passado recente e palpitante, do que nos herbários secos e fanados dos compêndios e dos arquivos. 2 - Será, por exemplo, muito difícil que a História venha a compreender, tão bem quanto nós, a época agitada, crepuscular, indecisa, em que irromperam no mundo os partidos totalitários. É preciso ter vivido em 1920, ou 1925, para compreender o tremendo caos ideológico em que se debatia a humanidade. A Cristandade parecia um imenso prédio em trabalhos finais de demolição. Não havia o que não se fizesse para a destruir. Aqui, especialistas silenciosos e metódicos arrancavam uma a uma as pedras, desconjuntavam as traves, tiravam as portas a seus batentes, e as janelas às suas esquadrias. Essa faina, que faziam com o mutismo, a solércia e a agilidade de conspiradores, progredia com frieza inexorável, sem perda de um instante, sem desperdício de um segundo. Revezavam-se os operários, mas de dia e de noite, enquanto os homens se divertiam, dormiam, trabalhavam ou passeavam, o trabalho não se interrompia. Mais além, monstros de figura humana assaltavam os muros vetustos da Cristandade com o furor delirante e impetuoso com que se atacaria, não um edifício de pedra, mas um edifício de carne viva, um grande corpo. Era a escalada de multidões raivosas, que entravam pelas portas e pelas janelas, saqueavam relíquias indefesas e tesouros abandonados, arrebentavam vitrais, profanavam altares, destruíam imagens ou abatiam com um só estampido de dinamite torres centenárias, muralhas imensas, contrafortes até há pouco inexpugnáveis. E a alguma distância, aos aplausos dos "gravoches", dos vadios, dos petroleiros, outros operários, procuravam com o material roubado à Casa de Deus, construir em suas linhas extravagantes e sensuais, a orgulhosa Cidade do Demônio. 3 - Tudo isto não é senão alegoria. E não há alegoria, nem imagem, nem descrição que possa retratar a confusão daqueles dias de "post-guerra". A conversão dos povos ocidentais não foi um fenômeno de superfície. O germe da vida sobrenatural penetrou no próprio âmago de sua alma, e foi paulatinamente configurando à semelhança de Nosso Senhor Jesus Cristo o espírito outrora rude, lascivo e supersticioso das tribos bárbaras. A sociedade sobrenatural - A Igreja - estendeu assim sobre toda a Europa sua contextura hierárquica, e desde as brumas da Escócia até as encostas do Vesúvio foram florindo as Dioceses, os Mosteiros, as igrejas, catedrais, conventuais ou paroquiais, e, em torno delas, os rebanhos de Cristo. Esta florescência religiosa projetou-se sobre a sociedade civil. O príncipe, o artesão, o filósofo, o guerreiro, o menestrel não era cristão apenas dentro do templo, no momento da oração. Ele reinava, produzia, pensava, guerreava e cantava como cristão. Seu reino era um reino cristão, seu trabalho era um trabalho cristão, seu pensamento era um pensamento cristão, sua guerra era uma guerra cristã, e seu canto era um canto cristão. Toda a vida civil, organizada com fundamento na Lei de Deus, ordenou-se segundo a vontade de Deus, e segundo a ordem natural por Deus estabelecida quando criou o universo, o mundo e o homem. Formou-se assim uma sociedade temporal estabelecida sob o signo de Cristo, segundo a lei de Cristo e conforme a ordem e a natureza própria de cada coisa criada por Deus. 4 - Tudo isto está longe de ser uma vã fraseologia. Exemplifiquemos com um relógio. O relojoeiro tem em vista fazer um instrumento para a marcação do tempo. Para isto, estabelece um plano em que se conjugam várias peças, trabalhando cada qual segundo seu feitio e natureza própria, para o fim visado pelo relojoeiro. Ora, a família é o instrumento humano de que Deus deseja a perpetuação da espécie. No caso do relógio, cada peça realiza o seu trabalho, atuando segundo a natureza e feitio com que a quis o relojoeiro. Se ela trabalhar segundo essa natureza e feitio, terá feito tudo quanto dela desejava seu autor, e tudo quanto era necessário de sua parte para o bom funcionamento do relógio. Assim também na sociedade doméstica: se cada membro agir retamente segundo sua situação e seu papel, terá feito tudo quanto era necessário para que a família funcione bem. E se todos os membros agirem com igual retidão, a vida doméstica terá chegado a sua perfeição própria: precisamente como o relógio atinge sua própria perfeição pelo perfeito funcionamento de cada uma de suas peças. Ora, o mesmo que se diz do relógio ou da família pode dizer-se da sociedade civil. A sua grandeza própria, enquanto sociedade civil, resultará de que cada um dos elementos que a compõem, isto é, família, classe, associação, pessoa, atue retamente segundo seu feitio e natureza própria. E é este, e só este, o modo por que a sociedade civil chegará à sua grandeza. Ora os Mandamentos são a expressão da vontade de Deus para os homens. Esses Mandamentos ensinam o homem a agir como Deus quer. Infinitamente sábio e bom, Deus não poderia querer que agíssemos em sentido diverso ou contrário da natureza que Ele nos deu. Assim portanto, os Mandamentos nos ensinam a proceder segundo nossa própria natureza. E eles contêm, pois, as regras fundamentais que se há de observar para conseguir a grandeza da sociedade civil, enquanto sociedade civil. Esta glória e bem-estar temporal é o prêmio natural da sociedade civil. Mas ela tem, mesmo neste mundo, um prêmio mais alto. Explica Sto. Agostinho que os homens podem ser punidos ou premiados em outra vida, por suas ações boas ou más, mas que as nações recebem seus castigos ou prêmios nesta vida, porque a nação, como tal, não transpõe os umbrais da eternidade. No céu, haverá gregos, troianos, romanos ou egípcios. Não haverá nem Grécia, nem Tróia, nem Egito, nem Roma. Assim pois, é preciso que Tróia, ou a Grécia, ou qualquer outra nação receba seu prêmio neste mundo. Deus auxilia a grandeza dos povos fiéis, não só pelo jogo natural das causas segundas, mas por uma multidão de graças especiais e por vezes miraculosas, de que está cheia a História das nações cristãs. 5 - Isto explica porque, sob o influxo de todas as energias naturais e sobrenaturais entesouradas nas nações cristãs, foi emergindo lentamente do caos da barbárie na alta Idade Média, a sociedade civil cristã, a Cristandade. Sua beleza, de início indecisa e sutil, mais promessa e esperança que realidade, foi se afirmando à medida que, com o escoar dos séculos de vida cristã, a Europa batizada "crescia em graça e santidade". Nasceram por essas energias humanas vitalizadas pela graça, os reinos, e as estirpes fidalgas, os costumes corteses, e as leis justas, as corporações e a cavalaria, a escolástica e as universidades, o estilo gótico e o canto dos menestréis. Os admiradores da Idade Média se exprimem mal quando sustentam que o mundo atingiu nessa época o maximum de seu desenvolvimento. Na linha em que caminhava a própria civilização medieval, muito ainda haveria que progredir. O encanto grandioso e delicado da Idade Média não provém tanto do que ela realizou, como da harmonia profunda e da veracidade cintilante dos princípios sobre os quais ela construiu. Ninguém possuiu como ela, o conhecimento profundo da ordem natural das coisas; ninguém teve como ela o senso vivo da insuficiência do natural - mesmo quando desenvolvido na plenitude de sua ordem própria - e da necessidade do sobrenatural; ninguém como ela, brilhou ao sol da influência sobrenatural com mais limpidez e na candura de uma maior sinceridade. Ela foi feita de homens que lutaram e sofreram na realização desse ideal, e que na sua caminhada muitas vezes recuaram ou desfaleceram ao longo do caminho; mas de homens que sempre continuaram fiéis ao seu ideal, ainda mesmo quando dele se afastavam por seus atos. E daí uma consonância profunda de todas as instituições, de todos os costumes, de todas as tradições nascidas nessa época, não só com as circunstâncias contingentes e transitórias do tempo em que surgiram, mas com as exigências genéricas da alma humana "naturaliter christiana" e as tendências espirituais peculiares aos povos do Ocidente. 6 - Tocamos aí em um ponto de importância fundamental. Todos os povos tem sua mentalidade coletiva e seus problemas regionais. Entre um hindu e um sueco, um espanhol e um chinês, a diferença é enorme. Há um espírito nacional hindu, sueco, chinês ou espanhol, que permanece íntegro durante os séculos, enquanto a nação existir. Os homens, como os cursos de água, poderão ir correndo para a eternidade. Mas as nações, como os rios, continuam sempre os mesmos nos dados essenciais de seu temperamento. Além destas circunstâncias psicológicas, há problemas peculiares à situação geográfica de cada região: da Índia, da Suécia, da China ou da Espanha. Também estes problemas - ao menos os mais profundos e dignos de nota - são invariáveis. Toda a civilização cristã há de ser inteiramente cristã, católica, universal, mas há de se ajustar, há de respeitar, há de desenvolver e estimular as características de cada região, e de cada povo. A sociedade cristã, dissemos, é a que vive de acordo com sua própria ordem natural. E, por isto, ela há de respeitar integralmente as características regionais que pertencem à natureza de cada povo ou região. Respeitar e desenvolver, porque essas características são dons de Deus, e todos os dons de Deus merecem desenvolvimento. 7 - Nos séculos de civilização cristã, cada povo teve, pois, suas características próprias, bem definidas. A alma nacional, em todas as suas aspirações universais e humanas, em todas as suas aspirações nacionais e locais, encontrou plena e ordenada expansão dentro da civilização cristã. Daí a enorme variedade de formas de governo e de organização social ou econômica, de expressões artísticas e de produções intelectuais, nas várias nações da Europa medieval. A expansão das tendências nacionais causa ao povo um grande bem estar físico. A mentalidade nacional inspira a formação de símbolos, costumes, artes, nos quais ela se exprime, se define e se afirma, se contempla a si mesma e se solidifica. Esses símbolos são um patrimônio nacional, uma condição essencial para a sobrevivência e progresso espiritual da nação. Eles tem uma consonância indefinível e profunda com a mentalidade nacional, uma consonância que é natural e verídica, e não puramente fictícia e convencional. Por isto, em via de regra, cada povo elabora uma só arte, uma só cultura e nela caminha enquanto existe. O maior tesouro natural de um povo é a posse de sua própria cultura, isto é, quase a posse de sua própria mentalidade. 8 - Uma civilização cristã só pode ser admirada pelas almas que, fora da Igreja, tendem para o Catolicismo; só pode ser admirada e vivida pelas almas que, dentro da Igreja, vivem do Catolicismo. Ela é incompreensível, é cheia de tédio, é odiosa até em sua superioridade solar, para as almas que começam a abandonar a Igreja, ou que, do lado de fora, blasfemam contra ela. A civilização cristã só viveu plenamente, enquanto foi sincera e profundamente católica a Europa. E a grande tragédia da civilização ocidental foi precisamente a ruptura com o Catolicismo que, no século XVI, arrebatou ao grêmio da Igreja as nações protestantes. 9 - Não é aqui o momento de fazer a análise do Protestantismo. Ele representou, ao pé da letra, a realização da Revolução Francesa no terreno religioso, como a Revolução foi o Protestantismo aplicado ao âmbito civil. Nascido do orgulho e da lascívia, o Protestantismo negou ora explicitamente in radice tudo quanto significasse autoridade, ordem, ascese. Onde pode, proclamou a abolição de toda hierarquia eclesiástica, nivelando inteiramente os leigos aos clérigos, e abolindo a própria clericatura. Onde não lhe foi possível ir tão longe porque os espíritos ainda tinham alguns fragmentos de senso cristão, conservou o presbiterato, abolindo entretanto o episcopado e a supremacia pontifícia, ou admitindo mesmo o episcopado mas negando o Papa. Mas, analisada a fundo a situação de qualquer bispo ou ministro protestante perante seus fiéis, vê-se que seu cargo é mais aparência vã, que realidade, e que mesmo entre os episcopais o bispo pouco ou nada se diferencia em essência, de qualquer fiel. Isto, na ordem do governo e dos sacramentos. Em matéria de doutrina, o livre exame protestante é a afirmação do anarquismo na vida da inteligência. O dístico de 1789 "liberté, égalité, fraternité", entendido segundo e exegese do "Comité de Salut Public", poderia ser perfeitamente o lema da grande revolução religiosa do século XVI. 10 - Em sua magistral Encíclica "Parvenu à la Vingt-cinquième Année", mostra Leão XIII que o Protestantismo não foi senão uma etapa. De seus princípios, se desdobraram convulsões muito mais profundas do que as que se operaram sob o bafejo pessoal e direto de seus autores. A História do mundo, do século XVI para cá não é senão, em forma ora explícita ora larvar, [a história do desdobramento] dos princípios que constituem o substractum mais profundo do Protestantismo. A Contra-Reforma conseguiu conservar os povos católicos indenes da heresia protestante. Impedidos de irromper abertamente no terreno do dogma, eles se manifestaram entretanto através de mil tendências filosóficas, científicas, literárias, artísticas, pelas quais se infiltravam na sociedade católica os princípios básicos de que se originara o próprio Protestantismo. Nos chamados "Tempos Modernos", muita coisa continuou a ser feita pelos povos católicos dentro da linha da civilização cristã. Mas muita coisa começou a ser feita sob o signo da Desordem. O relaxamento geral dos costumes indicava bem um borbulhamento interior de sensualidade nos povos ocidentais, que se exprimiu a princípio de modo sentimental e figurativo, mas que foi aos poucos rompendo todas as barreiras, até chegar à grande explosão de concupiscência de 1789, às "orgias cívicas" de 1792, e à completa paganização dos costumes modernos. O contínuo deperecimento da família ia aos poucos aniquilando as classes sociais. Aristocracia, burguesia, plebe, eram, na Idade Média, corpos sociais vigorosos, coesos, perfeitamente definidos e cônscios cada qual (inclusive, note-se bem, a plebe que se gabava de suas linhagens multisseculares de carvoeiros ou de artesãos com a ufania com que um aristocrata lembrava os príncipes visigóticos de que descendia) de sua dignidade. Nos "Tempos Modernos", as classes perderam a noção de seu papel. A nobreza tendia a emburguesar-se. A burguesia em "singer" a nobreza, a plebe em derrubar a nobreza e a burguesia, e assim por diante. O próprio absolutismo real, que parecia a consolidação do princípio de autoridade, não era senão um princípio revolucionário: a onipotência do Estado perante as leis de Deus e da Igreja. 11 - Na Filosofia, nas artes, na cultura, na política, na vida social, os móveis psicológicos que haviam determinado em outros países a explosão protestante e concomitantemente sua completa transformação, provocaram a pari passu nos países católicos uma transformação profunda da vida civil, e geraram um estado de contradição que se tornou crônico e habitual. Tudo se transformou nos países ocidentais sob o sopro do orgulho e do sensualismo moderno, com exceção das crenças religiosas. O desajuste entre as crenças e a vida se tornou cada vez mais profundo. Tudo se paganizou por obra dessas massas e dessas elites que, entretanto, continuavam a não ser pagãs, e que professavam em matéria religiosa convicções cada vez mais dissonantes de tudo quanto pensavam, sentiam ou faziam em outros terrenos. As instituições cristãs, os costumes cristãos, as tradições cristãs foram perdendo sua vitalidade durante os Tempos Modernos, foram tendendo a se transformar gradualmente em relíquias sem vida, em hábitos meramente protocolares, em vestígios de um passado mumificado. Em fins do século XVIII, havia, sob a aparência de uma sociedade cristã, uma realidade social que já tendia para o paganismo com toda a força de seu dinamismo. A Revolução Francesa, que se propagou por todo o orbe católico, foi a explosão insofrida dessa realidade nova, que atirava para os ares todos as destroços do passado. Nunca se compreenderá inteiramente a Revolução, enquanto não se reconhecer que ela foi ainda muito mais profunda e importante no terreno ideológico que no terreno político. Na França, na Itália, na Espanha em Portugal, a transferência do poder para os liberais, o advento de formas novas de organização estatal, simbolizou e a um tempo realizou o triunfo de novas formas de viver, de pensar, de sentir, de trajar, novos padrões de vida social, o aparecimento de um novo ideal de perfeição humano. Tudo mudou de face e de substância, e todas as transformações se fizeram no sentido de satisfazer melhor o orgulho e a sensualidade. O orgulho, pelo direito conferido a cada qual, de elaborar seu próprio pensamento sem nenhum respeito às leis da lógica e do bom senso; pela supressão ou minimalização de todos os cargos, graus, fórmulas, categorias e distinções que pudessem conter ou exprimir a autoridade; a sensualidade, pela transgressão cada vez mais ousada dos princípios de moral, pela abolição das tradições e costumes que salvaguardavam o pundonor e evitavam as familiaridades demasiadas, e por mil reformas que, davam na vida social a preeminência ao corpo sobre o espírito, à imaginação e ao sentimento sobre a razão, a instauração de mil meios destinados a debilitar a vontade e diminuir o esforço da razão para estudar. 12 - É um erro supor que a Revolução Francesa se encerrou com Napoleão ou com Luís XVIII. De fato, ela se espraiou ao longo dos anos, e seus frutos mais imediatos não cessaram de se produzir até 1925 ou 1926, na Europa, até 1933 ou 1936 no Brasil. Façamos, pois, um confronto entre a Europa de 1789 e a de 1918. Ao longo desses 140 ou 150 anos, por que transformações passou o mundo na ordem de coisas que nos ocupa? Puramente negativas: Em matéria de Religião, as massas, de cristãs passaram a revolucionárias, as elites, de deístas a indiferentes ou atéias. Em matéria de filosofia, do cartesianismo passou-se para o materialismo evolucionista. Em matéria política, do Estado organizado a Rousseau, para a negação niilista de todo e qualquer Estado. Em matéria social a burguesia destruíra a aristocracia em nome da igualdade; e armada do mesmo princípio a plebe se aprestava a estrangular por sua vez a burguesia. Em matéria educacional, do autoritarismo pedagógico da velha escola, para o igualitarismo socialista e para o comodismo didático da escola nova. Em matéria artística e literária, do classicismo rígido e formalista, para as convulsões do romantismo, e daí para as extravagâncias dos modernos sistemas artísticos. Em matéria humana, do tipo semi-tísico, sentimental e "debraillé" dos heróis e das heroínas do romantismo, para o esportivismo, o espírito utilitário, e a ultra-vitaminose dos grã-finos de hoje. Tudo se tornou mais cômodo, mais acessível, e o prazer que se procurou nas coisas foi muito menos do belo do que do "gostoso". O belo encanta o espírito. Mas o "gostoso" delícia o corpo. Das cadeiras elegantes do estilo Luís XVI para as pesadas poltronas de couro modernas, que diferença de beleza! Mas, em compensação, como se sente melhor o corpo estirado sobre a lisura destes couros, afagado pela flexibilidade destas molas! Evoluções todas bem dignas do tipo moderno de habitação, em que por economia se deixa de fazer sala de visitas, mas o luxo não conhece limites para a comodidade da cozinhas, da copas e dos banheiros. Economizar no salão de honra o que se vai gastar no banheiro! A decrepitude dos salões dourados e o apogeu do banheiro! Que tema para uma meditação! 13 - Em 1918 um novo sopro de espírito revolucionário varreu a Europa. Deu-se o imenso estrondo do desabamento do czarismo, e se implantou o comunismo na Rússia. Toda a vida intelectual e social se seccionou ainda mais do passado. No Ocidente, a hegemonia se deslocava cada vez mais da Europa tradicional para os Estados Unidos niveladores. Em meio a todo esse desabamento, que evidenciava cada vez mais o próximo término da civilização cristã como tal, uma salutar reação se produzia. Muitos espíritos percebiam por fim para que abismos caminhava o mundo, e quais os guias que os levavam para o abismo. Como escreveu Pio XI, um sopro universal do Espírito Santo orientava para a Igreja os espíritos transviados. Em plena hecatombe da civilização cristã, a Igreja de Deus, como a vara milagrosa de Gedeão, começava a florir novamente, produzindo rebentos que atestavam iniludivelmente sua eterna pujança. O movimento católico se organizava por toda Europa. Eram legiões de moços que, desgostosos do curso das coisas, abriam os olhos para a Verdade Revelada, e almejavam de todo coração o triunfo da civilização cristã. As obras sociais católicas, a imprensa católica, o radio católico, a ação política dos católicos triunfavam por toda a parte. Assim, na Alemanha, na Áustria, na Espanha, na Itália, na França, no Brasil, na Holanda, na Bélgica, os êxitos eleitorais dos católicos eram cada vez mais estrondosos. E quanto mais crescia o perigo comunista, tanto mais se acendia o ardor da reação católica. A certas almas, Deus atrai ao Céu fazendo-lhes ver o Inferno. Foi dessa terapêutica que se serviu Deus com o mundo ocidental, permitindo que se lhe patenteasse em toda a hediondez a figura dos tormentos em que o comunismo mantinha a Rússia, o México e mais tarde a Espanha. Não há tormento maior do que esse de um povo a que se arranca dia a dia uma tradição, um hábito, um símbolo. É um esquartejamento terrível da alma, a que estavam expostos a pouco a pouco todos os povos cristãos. 14 - Sempre que o demônio está na iminência de perder uma partida, sua grande arma é a confusão. Utilizou-a ainda desta vez. A História talvez diga, algum dia, em que antros o plano tenebroso se forjou. Mas o fato é que, para atender aos anseios das massas sedentas de civilização cristã, apareceu na Alemanha um partido logo copiado em outros lugares, que se propunha a implantar um novo mundo cristão. À primeira vista, nada mais simpático do que o nazismo, movimento místico-heróico, propugnador das tradições da Alemanha cristã e medieval, contra a dissolução demagógica e corruptora da propaganda bolchevista. Os termos meramente negativos da doutrina nazista correspondiam em vários pontos com o que se sentia de mais vivo na consciência cristã, indignada com o enfraquecimento do princípio da autoridade, da ordem, da moral e do direito. Mas, se se atentasse para o lado positivo dessa ideologia, lado que só aos poucos a maquiavélica propaganda parda revelava aos "iniciados", que terrível decepção. Ideologia confusa, impregnada de evolucionismo e materialismo histórico, saturada de influências filosóficas e ideológicas pagãs, programa político e econômico radical e caracteristicamente socialista, intoleráveis preconceitos racistas. Em uma palavra, por detrás dos bramidos anticomunistas do nazismo, era o próprio comunismo que se pretendia restaurar. Um comunismo ardiloso, de máscara cristã. Um comunismo mil vezes pior, porque mobilizava contra a Igreja as armas satânicas da astúcia, em lugar das armas inócuas e impotentes da força bruta. Um comunismo que começava por empolgar os espíritos por algumas verdades, punha-os em delírio sob pretexto de entusiasmo por essas verdades, e os atirava em seguida aos erros mais terríveis. Um comunismo, portanto, que significava, não a obliteração dos maus, mas dos bons, a mais terrível máquina de perdição e de mistificação que o demônio tenha engendrado ao longo da História. 15 - Tal é o peso da verdade, tão duro é o fardo do bem, que infelizmente muitos espíritos, embora sinceramente católicos, se deixaram transviar pela manobra. Não tinham aquela fome e sede de justiça, que é a raiz da santa intransigência. Não tinham aquele apetite de Catolicismo pleno, que os faria rejeitar como elemento impuro qualquer liga com os fermentos do século. As coisas muito acentuadamente católicas, declaradamente católicas, exclusivamente católicas, lhes pesavam como o sol fere a vista das aves noturnas. Preferiram as formas pálidas, diluídas, indiretas, de irradiação católica, como os mochos preferem a luz da lua. E se entregaram de corpo e alma a essas tendências de caráter nitidamente anti-católico. Na Itália, como na Alemanha, como em outros lugares, uma coorte de ingênuos, de desavisados, de pessoas entretanto bem intencionadas, se deixou embair e arrastar de roldão com facínoras e aventureiros de toda sorte. E só Deus sabe com que furor, com que iracúndia, com que abundância de ameaças se atiravam contra os irmãos de crença, que se permitiam o luxo de ser mais penetrantes, mais perspicazes, mais enérgicos na defesa da Fé. 16 - Ruiu o grande sonho, está em pedaços a terrível construção elevada pelos arquitetos dos sistemas totalitários pseudo-cristãos. Hoje em dia, ninguém ousaria sustentar a legitimidade dessa posição contra a qual clama todo o sangue que se derramou, todas as lágrimas que se choraram, todo o suor que se verteu neste anos de guerra. Quando os campos de concentração forem expostos à visitação pública, e se perceber que terrível oficina de ódio era o totalitarismo, é de se esperar que as últimas vendas caiam dos últimos olhos voluntariamente cegos, e que por fim os escombros e os restos de todo esse passado sejam removidos dos últimos espíritos que o fanatismo ainda mantém em uma atitude de obstinação desvairada. 17 - Mas, como dissemos, desse passado ainda quente, se desprende uma grande lição. É inútil querer fazer sem a Igreja ou contra a Igreja, sem a hierarquia ou contra ela, a obra de Deus. "Enquanto o Senhor não edificar a cidade, trabalharão em vão os que construírem". "Enquanto Ele não a proteger, lutarão em vão os que a guarnecerem". O mundo não pode ser salvo por formas diluídas de Cristianismo, ou por sistemas que representem uma etapa comodista ou preguiçosa nas sendas da restauração da Cristandade. Nosso "leitmotiv" deve ser o de que para a ordem temporal do Ocidente, fora da Igreja não há salvação. Civilização católica, apostólica, romana, totalmente tal, absolutamente tal, minuciosamente tal, é o que devemos desejar. A falência dos ideais políticos, sociais ou culturais intermediários está patente. Não se para no caminho de volta para Deus: parar é retrogradar, parar é fazer o jogo da confusão. Nós só queremos uma coisa: o Catolicismo completo. 18 - Esta a grande verdade que o fracasso do totalitarismo revela. Relembramo-la nesta ocasião memorável, não para reavivar dissídios com irmãos de crenças, mas para declarar que, excetuada esta grave lição que contém o suco de toda a trágica experiência destes últimos anos tão ricos em ensinamentos, tudo esquecemos, e que só queremos olhar para o futuro. Do passado não trazemos nem queixa, nem ressentimentos, mas apenas a convicção da vitória desta tese, que deve ficar: os católicos vencerão desfraldando inteiro o estandarte católico e não ocultando-se sob as dobras de doutrinas políticas equívocas. 19 - Aí está diante de nós, hiante, o grande problema do comunismo. Mais uma vez, e com uma acuidade maior do que nunca, exige-se a luta contra a hidra que representa, tanto quanto o nazismo, a quintessência do espírito da Revolução. Os católicos devem unir-se diante do adversário comum, esquecidas todas as queixas e todos os ressentimentos e, consoante o ensinamento de Pio XI, devem aceitar a leal colaboração de todos os homens dignos, que estejam sinceramente empenhados na luta contra o totalitarismo rubro. Mas o segredo da vitória da Igreja consiste precisamente nisto: renunciarmos aos ideais intermediários, e, ligados a todos os que nos ofereçam sua cooperação, vencer a hidra bolchevista com a única arma que a esmagará: a Cruz, que representa a Igreja de Deus e as mais antigas e legítimas tradições da civilização cristã. "In hoc signo vinces" [Com este sinal – a Cruz – vencerás], disse uma Voz a Constantino num momento em que parecia incerta a sorte das armas. Essa Voz não se calou durante quinze séculos, e ainda hoje é a mesma a sua mensagem para o mundo hodierno. |