Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
Os destruidores da vinha de Nabote

 

 

 

 

Legionário, 6 de maio de 1945, N. 665, pag. 5

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No seu trabalho de desagregação da família, as forças organizadas contra a nossa civilização católica procuram empregar, além dos processos de corrupção moral, as armas que atingem a instituição em suas bases tradicionais. Daí toda uma série de medidas revolucionárias tendentes a ferir a integridade do patrimônio familiar, sobretudo pelas leis de herança.

Criou-se toda uma literatura para fulminar o que aos olhos da “igualdade, liberdade e fraternidade”, no sentido demagógico e subversivo dessas palavras, seria um abuso responsável pelo desequilíbrio social que ainda hoje se nota por todo o mundo: o direito de primogenitura, vigente nos países cristãos antes do advento do código napoleônico.

A verdade, porém, é que o fracionamento do patrimônio da família, feito em nome da igualdade revolucionária, é que deve ser responsabilizado em grande parte pela miséria social tão acentuada com predomínio das idéias liberais.

A família, em vez de ser uma instituição vinda do passado e se prolongando para o futuro através da obra comum realizada e acrescentada num patrimônio que se transmite, sua integridade passou a constituir apenas uma única geração de braços com os mais elementares problemas de ordem moral e econômica, suscitados em grande parte pela ausência de um ponto de apoio.

Daí toda uma série de sugestões recomendada pelos nossos modernos legisladores no sentido de remendar o mal tão desastrosamente feito, como por exemplo a criação do “homestead” norte-americano e outras medidas julgadas capazes de tornar alienável o patrimônio familiar. São medidas, porém, que apenas servem de mero paliativo, pois unicamente se preocupam com a situação da família em seu estado natural até que os filhos atinjam a maioridade, quando passa a vigorar a lei de herança comum aos países de constituição liberal, que em geral atentam contra o direito de testar.

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A questão da integridade do patrimônio familiar vem, porém, sendo esquecida do ponto de vista de seus verdadeiros termos, ao se estudarem os meios tendentes a retirar a humanidade do caos social em que se encontra. E é no sentido de concorrer para esclarecer o assunto, desfazendo as declarações e deformações demagógicas com que costuma ser tratado, que hoje iniciamos a transcrição do que sobre ele diz Funck-Brentano, do Instituto de França, em seu livro sobre “L’Ancien Régime”.

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Com seus costumes e suas tradições e sua posição social, a família devia se conservar intacta nas mãos de seu chefe, forte pelo patrimônio que seria transmitido em sua integridade ao herdeiro. O patrimônio sobre o qual vive a família, é um bem sagrado. “Aquele que dissipa seu patrimônio comete um roubo horrível”, escreve Antoine de Courtoi em seu livro de razão “Melhor seria para ele e para toda sua raça se não tivesse nascido”.

A terra familiar deve ser conservada intacta. Incorrer-se-ia em censura não somente ao vendê-la, mas até mesmo ao trocá-la. “Tanto que este domínio se conserve em minha família, lemos no mesmo livro, ela terá uma existência honrada”.

“Não posso suportar o pensamento de que meus descendentes possam ser colocados na necessidade de vendê-lo. Vender os campos paternos é renegar seu próprio nome. Não se deve crer que será possível substituí-los por outros: basta ver como se arruinaram aqueles que quiseram trocar o patrimônio de seus antepassados”.

Essas linhas de um modesto gentil-homem campestre são características e só podem ser consideradas com muita atenção. Nelas se acha o Antigo Regime. Podemos transportar estes sentimentos às diversas classes e condições da sociedade, encontrando-nos sempre em face dos mesmos três elementos: família, tradição, estabilidade. Conservação do patrimônio, apego ao lar paterno e, na burguesia, entre as classes rurais, essas preocupações predominantes se transmitiam talvez melhor do que na aristocracia. “Todos meus antepassados trabalharam para adquirir as parcelas deste bem”, escreve em 1750 um trabalhador de Ollioules, “e não destruirei a sua obra”.

O direito de primogenitura e o do pai de dispor livremente de seus haveres chegavam a se impor. As leis de herança eram de uma variedade infinita na velha França - elas se modificavam não somente de uma província a outra, mas de uma região à vizinha, de uma cidade à cidade próxima. Viam-se até famílias providas de leis sucessórias particulares e que os Parlamentos homologavam. Mas a tendência geral era de deixar o patrimônio intacto nas mãos do chefe de família, que dele dispunha do melhor modo de acordo com os interesses da família. Manter o esplendor do nome e a integridade do domínio, eis a constante preocupação.

A prática das substituições, da reserva hereditária e dos bens próprios para isso contribuía com o direito de primogenitura e a faculdade de testar. A substituição acarretava a impossibilidade para o proprietário de certos bens de os alienar a um pretexto qualquer, com devolução desses bens segundo uma ordem sucessória determinada. Na nobreza as substituições tomavam o nome de “majorato”.

A substituição era, como se vê, um freio no direito de primogenitura. O proprietário não passava do usufrutuário de um bem que pertencia à família. Os costumes que concediam ao primogênito a parte mais larga eram também os que estipulavam substituições mais extensas e mais rigorosas.

Os “próprios” eram os bens que eram submetidos a uma apropriação especial, a qual fazia dos bens de família mais do que simples bens individuais. São eles designados conforme os costumes, por diversos nomes: bens antigos, avitinos, patrimoniais, ou de modo às vezes bizarro.

Os próprios se compõem de imóveis, rendas e às vezes até rebanhos se acham compreendidos entre esses bens de uma família. O chefe de família não tinha ele próprio sobre esses bens senão um direito de gozo. Qualquer que fosse seu poder, não podia alienar. Para isto era necessário o consentimento dos herdeiros. Não é notável que essas tradições familiares, que vieram até ao Antigo Regime, se encontrem entre as formas primitivas da monarquia capetíngia (proveniente de Hugo Capet, do qual foi descendente Luís XVI, n.d.c.)?

O direito de primogenitura, estabelecido como se sabe no interesse da integridade da família, não era uniforme em toda a parte. Na Champanha as sucessões nobiliárias se faziam de um modo e as do comum do povo de outro. O costume de Paris, pelo contrário, espalhado por uma grande parte da França, dá o direito de primogenitura tanto para os nobres como para a população restante. Segundo este costume, o primogênito toma por parte o castelo ou mansão, a residência principal, com a baixa corte; além disso recebia dois terços dos bens, se apenas havia dois filhos, a metade se o pai deixava bastante. Na Lorena, o direito do primogênito compreendia o castelo, a baixa-corte, o parque murado, o jardim, os direitos senhoriais, o direito de nomeação à capela castrense e ao curato da aldeia. Esta parte do primogênito não lhe podia ser retirada mesmo no caso de a isso ser contrário o pai.

Nas regiões de direito escrito, o pai tinha, pelo contrário, inteira liberdade em suas disposições testamentárias. Eis aqui um testamento feito em Aix a 12 de fevereiro de 1622. O pai deserda seu filho mais velho porque este contraiu um casamento que não foi julgado conveniente. Devia o primogênito receber apenas uma pensão, e a herança iria para o último filho. Mas contrariamente ao que se podia supor, este recusa-se a aceitar uma herança que considera um fardo pesado, porque a posse da herança pelo filho mais velho acarretava obrigações que muitos deles consideravam como um encargo diante o qual desapareciam as vantagens que lhes eram feitas. A saber, trabalhar pelo interesse da comunidade familiar, sacrificar seus gostos e sua independência, dispensar cuidados aos parentes velhos e doentes, dirigir os irmãos mais novos, estabelecê-los, bem como as irmãs, gerir os bens de raiz. Eis um filho mais velho que tem predileção por uma carreira mais movimentada: a profissão militar o atrai, ou o desconhecido dos mares longínquos, o comércio das Índias ou as Escalas do Levante; um outro é seduzido pelas profissões liberais: deseja ser artista, poeta. Não mais cuida de se ver estreitamente ligado à exploração da gleba e aos deveres que dela resultam.

É quase supérfluo notar que essas prescrições, às vezes tão rigorosas, tinham por único objetivo manter a integridade e a perenidade da família. Na Bretanha, nas massas rurais, o direito de sucessão não favorecia o filho mais velho, mas o mais novo. Era um direito de juventude, se nos permitem assim exprimir. Se não havia moças na casa, era a filha mais nova que herdaria. O mais jovem entrava sozinho na posse da herança familiar, e participava com irmãos e irmãs apenas os móveis deixados pelo pai; mas notai que ele não podia recolher essa herança a não ser com a condição de haver morado, antes da abertura do inventário, um ano e um dia sob o teto paterno, e sem interrupção. Compreende-se a razão: era necessário continuar o cultivo das terras, as tradições adquiridas, conservar os empregados, o aspecto da casa. Um filho mais velho, casado, há muito tempo e que frequentemente fundava um novo lar, que havia explorado uma propriedade afastada da casa paterna para esta teria trazido um espírito muito diferente.

Nós já vimos que o filho permanecia menor por toda a vida. O casamento o emancipava, mas com a condição de ir morar longe de seu pai e de fundar um lar distinto. Morando sob o teto paterno com mulher e filhos não possuía nada de seu. Tudo que pudesse ter, tudo que ganhasse, as doações ou legados que pudesse receber se tornavam propriedade de seu pai, e na maioria das províncias o filho não podia herdar de seu pai como direito de primogenitura - achamo-nos entre camponeses - a não ser se morasse com ele, sob o mesmo teto. Então somente, tornando-se chefe da família com a morte do pai, assumia a direção do patrimônio que frequentemente ele havia feito crescer pelo seu trabalho e pelos seus cuidados.

Sente-se sempre a mesma preocupação dominando os costumes, mais profundamente enraizados na alma popular: assegurar a integridade, a estabilidade, a perpetuidade da família em seus costumes, em suas usanças, em suas tradições. A Champanha, a Lorena e a Alsácia eram províncias em que o direito de primogenitura era menos fortemente estabelecido. Ele não existia para os ramos colaterais nem para as filhas. A partilha se fazia de uma maneira igual entre os filhos para os bens do povo em geral. Mas o mesmo sentimento ali subsiste: era conservado nas mãos do herdeiro principal o lar, a “casa”, cabeça do feudo, como se dizia. Na Idade Média o “chefe” do patrimônio, como diz o Antigo Regime, a fim de que cada família continue a ter seu ponto de ligação, sua “retirance”, como diziam os camponeses com uma palavra bem característica. Pierre Joseph, de Colônia, em um livro de razão de 1807 se expressa do seguinte modo:

“A Provença, bem como diversas outras partes da França meridional eram regidas pelas leis romanas... Em todas as províncias submetidas a essa legislação reinava nas famílias a mais terna união. O herdeiro se considerava o pai de todos os irmãos e irmãs mais novos; os quais, frequentemente eram alimentados em sua casa e alojados sem pagar ou pagando uma pensão. Tudo isto verdadeiramente não constituía senão uma família”.

De modo que esses costumes tiveram sua razão de ser: contribuíram para a felicidade e para a prosperidade de nosso país; e foram benfazejos enquanto foram praticados não somente segundo o texto da lei, mas segundo seu espírito.

Nota: Para aprofundar este assunto, vide A instituição do morgadio.