Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
Precursores do Deão

 

 

 

 

 

Legionário, 25 de março de 1945, N. 659, pag. 5

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Para enganar mais facilmente os incautos, os dirigentes da revolução socialista costumam torcer a seu favor o próprio texto dos Evangelhos. Daí o socialismo “cristão” esposado pelo falecido “arcebispo” anglicano da Cantuária, Sir William Temple, e pelo “deão” da mesma sé protestante, o sr. Hewlett Johnson. Sem contar com o apoio dado ao comunismo pela igreja cismática russa e por várias outras seitas que se dizem “cristãs”.

O mal, porém, vem de longe, e o LEGIONÁRIO por mais de uma vez já acentuou o fenômeno comum às heresias, que é sua final desagregação no campo social.

Veremos hoje como Wiclef e João Huss, precursores de Lutero na revolta contra a Igreja, são também precursores do “deão” na revolta contra a sociedade. Ambos, como veremos, consideravam-se “cristãos” e eram ao mesmo tempo autênticos partidários da foice e do martelo.

A transcrição é do livro “L'Inquisition Mediévale”, de Jean Guiraud.

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Em 1413, Jean Lucke extraiu das obras de Wiclef 160 proposições que foram, pouco depois condenadas pelo Concílio de Constança. Ora, eis a seguir as que tratam das relações sociais:

“1º. Sem a graça o homem não pode chegar ao direito legítimo de propriedade, nem ao depoimento de testemunhas, nem às sentenças dos juízes, nem à posse material, nem à hereditariedade, nem às mutações;

2º.  Visto que Deus deu ao homem todos os bens, desde que o homem deles abuse, não pode reclamar a doação divina; e se esse título de propriedade lhe falta, não sei que outro poderá alegar;

3º.  Todo homem injusto, que ocupe um bem de Deus, não poderá possuí-lo a não ser pelo roubo, pela rapina e pelo banditismo;

4º. Toda comunidade, toda pessoa eclesiástica que tenha costume de abusar de suas riquezas, pode ser despojado delas pelo poder civil, sejam quais forem os títulos humanos sobre os quais se apoie.

5º. Deus não pode dar ao homem, nem para ele próprio, nem para seus herdeiros, um poder civil perpétuo;

6º. A sucessão não é um título suficiente para legitimar um verdadeiro poder, se a ele não se ajunta a caridade;

7º. Toda pessoa em estado habitual de pecado mortal não pode exercer um poder legítimo;

8º. No caso em que a pátria seja saqueada e devastada, mesmo pelos bárbaros, melhor será tudo sofrer humildemente do que repelir com coragem a agressão;

9º. Deus exige justiça do poder civil; ademais, quem quer que esteja em estado de pecado mortal não é senhor de nada”.

Não será necessário examinar longamente essas proposições para nelas descobrir um caráter do anarquismo místico. Segundo Wiclef, o poder não passa de uma comunicação feita por Deus ao homem de seu poder supremo; ora, como Deus somente se comunica com aqueles que se acham em estado de graça, quem quer que esteja em estado de pecado mortal não poderá entrar em comunicação com Deus e, por conseguinte, não poderá exercer uma autoridade legitima. Será, portanto, usurpador quem quer que, em virtude das pretensas leis de sucessão, do consentimento popular, da própria posse, pretender governar sem a graça de Deus! Será um dever para todo fiel se lançar contra ele e destruir uma tirania tornada ainda mais odiosa por atacar ao próprio Deus.

Sem dúvida os teólogos da teocracia haviam pregado nos séculos da Idade Média uma doutrina que pode ser, por um certo lado, comparada à de Wiclef. Segundo eles, a mais rigorosa ortodoxia devia ser exigida de todo detentor de poder e o príncipe que se pusesse em oposição aberta com a Igreja, estaria, por esse próprio fato, privado de toda autoridade. A queda do príncipe seria a consequência lógica e imediata de sua excomunhão e assim, segundo Wiclef, não podia haver autoridade legítima sem estado de graça, segundo Gregório VII não devia haver poder sem ortodoxia.

A semelhança entre essas duas doutrinas é, porém, completamente superficial. O que as distingue profundamente é que a doutrina teocrática designa o tribunal que julgará os detentores da autoridade, inquinados de heresia e, por isso, passíveis de deposição, como também designa o processo que precisará o crime, cuja punição será a queda do soberano.

Pode-se achar excessiva essa pretensão, mas como longe de destruir a autoridade, ela se contenta de a substituir centralizando-a nas mãos do Papa, não se pode acusá-la de anarquismo.

Na teoria de Wiclef, pelo contrário, o vício que destrói a autoridade não é evidente, porque o pecado mortal não é um ato tão característico quanto uma rebelião aberta contra a Igreja. O príncipe pode cometê-los em sua vida privada, em segredo, no próprio seio de sua consciência; sua falta será conhecida seja por ele sozinho, seja por seus familiares mais íntimos, seja por um certo número de seus súditos; ela terá assim, uma publicidade muito variável.

Quem poderá, porém, dizer de modo certo se o pecado é mortal? A intenção agrava uma falta na aparência ligeira, ou atenua um pecado na aparência mortal. Que homem poderá escrutar as consciências ao ponto de poder adivinhar com certeza o pecado mortal cometido pelo príncipe, que deve ser acompanhado da retirada de obediência? Em toda lógica, somente Deus poderá fazê-lo, e Wiclef reconhece este direito a todos! Será a revolta a todo propósito, o sinal de revolta dado por qualquer um a propósito de qualquer ato, o que Wiclef endossa nas proposições extraídas de suas obras. Se ele não nega a existência teórica da autoridade, na prática torna impossível o seu exercício, e o anarquismo será a consequência necessária de seus erros teológicos.

João Wiclef (1331-1384)

O comunismo também decorre desses erros com uma lógica não menos forte. Podem ser resumidas em duas proposições as idéias de Wiclef sobre a propriedade: 1º. sem o estado de graça, a propriedade é um roubo; 2º. o estado de graça dá direito à propriedade. Ora, essas duas proposições justificam todas as cobiças e todas as espoliações. A uma denúncia interessada que lhe fora feita contra um funcionário acusado de carlismo - isto é, partidário da restauração de Carlos X (da França) - Louis Philippe respondeu com finura que funcionário carlista era aquele do qual um outro cobiçava o lugar.

Não se poderia dizer, com ainda mais razão, que o dia em que o sistema de Wiclef tivesse força de lei, os proprietários dos quais se cobiçassem os bens - isto é, todos - seriam imediatamente reputados em estado de pecado mortal? seria a anarquia na propriedade. E que significa esse direito de propriedade conferido pela graça senão o direito de cada um à propriedade? Porque, enfim, se as consciências são mais fortemente inclinadas ao mal que ao bem, não será entretanto interdito a ninguém de esperar, por um tempo mais ou menos longo, o estado de graça, isto é, o direito à propriedade, e para estabelecer para cada um o acesso à propriedade, no dia em que a pureza de sua consciência lhe permitisse, não haveria senão um meio, o estabelecimento do comunismo.

Wiclef não recuou diante dessas conclusões e em seu tratado sobre o poder civil (De Civili Dominio), formulou este teorema coletivista: “Todos os bens de Deus devem ser comuns e assim o provo: todo homem deve andar em estado de graça e, se assim se manter, será o senhor da terra e de tudo o que ela contém. Ora, isto não pode concordar com a multiplicidade da raça humana se os bens não se tornarem comuns; portanto eles devem ser”.

Enfim, a ideia de pátria era rejeitada por Wiclef e por seus discípulos; porque recomendar uma atitude sempre passiva diante dos ataques do inimigo, condenar o defensor de seu país, ver nele um culpado, não será tornar impossível a existência de toda pátria? Não será negar os deveres que a pátria nos impõe? não será mesmo transformá-los em crimes? E eis que encontramos na alma desse pregador inglês do século XIV as idéias utópicas e antipatrióticas de um Tolstoi, propagadas pelos socialistas e pelos anarquistas modernos. E assim anarquista, comunista, “sem pátria” apareceu o sistema de Wiclef ao Concílio de Constança, que o condenou, e à Inquisição, que perseguiu seus propagadores.

Essas doutrinas saíram da especulação pura e deram origem a graves perturbações sociais. Na Inglaterra, os lobardos se sublevaram, saquearam os condados de Essex, de Kent, de Suffolk e de Norfolk, abriram as portas das prisões, massacraram sacerdotes, religiosos, magistrados e proprietários. A 13 de Junho de 1381, dia da festa do Corpo de Deus, entraram em Londres e mataram o Arcebispo de Cantuária e o Prior de São João de Jerusalém, cujas cabeças foram levadas por toda a cidade, na ponta de lanças. Que Wiclef tenha sido o instigador direto dessas atrocidades ou pelo menos o inspirador daqueles que as cometeram, é coisa difícil de negar. Os lobardos e em particular seus chefes Wat Tyler e John Bull se diziam seus discípulos; em seguida, a opinião pública fez remontar às suas pregações a responsabilidade dessas violências. Enfim, é impossível não reconhecer uma estreita relação entre suas declarações contra a Igreja, sua riqueza e sua autoridade temporal e esses excessos contra os clérigos, os prelados, os ricos e os magistrados.

João Huss (1371 ca. - 1415)

João Huss foi sempre apresentado como discípulo de Wiclef e seu continuador; seus contemporâneos não estabeleceram diferença entre eles e foi juntos que eles se viram condenados pelo Concilio de Constança. Essa estreita solidariedade desses dois hereges foi claramente afirmada pelo historiador francês que melhor estudou João Huss e os hussitas: Ernest Denis.

Como as de Wiclef, as doutrinas de João Huss deviam desencadear a desordem e a guerra civil. Condenando-as diante do Concilio de Constança, a Universidade de Paris havia predito que essa “heresia perniciosa, fecunda em lamentáveis crimes, não podia senão arrastar os povos à insubmissão e à revolta e acabaria por atrair sobre o país a maldição de Cham (Cam, Cã ou Cão, um dos filhos de Noé, n.d.c.)”.

Essa predição se cumpriu ao pé da letra, visto que, durante uma grande parte do século XV, a Boêmia foi devastada pela guerra dos hussitas. Segundo historiadores anticatólicos, essa guerra havia sido acesa pela fogueira que, em Constança, consumiu João Huss e Jerônimo de Praga, apesar do salvo-conduto que lhes havia dado o rei dos romanos, Segismundo. Outros atribuem, com mais razão, uma causa política a essas lutas: vêm nelas as aspirações eslavas identificadas com a heresia, contra o germanismo católico. Mas é preciso não esquecer tudo o que havia de socialista e de comunista nas reivindicações hussitas; e, deste ponto de vista, o movimento revolucionário da Boêmia no século XV, procedeu diretamente das doutrinas de João Huss e de Wiclef, sincretismo de tudo o que havia de antissocial nos sistemas dos Espirituais, dos Begardos, dos Valdenses e dos Cátaros.

Legado na Boêmia, o Cardeal Branda insistia em 1424, sobre o caráter anti-social das aspirações hussitas: “A maior parte desses hereges, dizia ele, deseja a comunidade dos bens e sustenta que não se deve às autoridades nem tributo, nem obediência. Ora, por estes princípios toda civilização é destruída. Os hussitas consideram nulos os direitos divinos e humanos e apenas sonham deles desembaraçar-se pela violência. As coisas irão tão longe que nem reis nem príncipes, em seus reinos e principados, nem burgueses em suas cidades, nem particulares em suas próprias casas, estarão em segurança; porque essa abominável seita não ataca apenas a Fé e a Igreja; dirigida por Satanás, ela declara guerra à humanidade toda inteira, cujos direitos ataca e subverte”. E conclui o Cardeal Branda dizendo que a salvação da sociedade humana, conservatio societatis humana, estava tão interessada quanto a Igreja na derrota dos hussitas.