Plinio Corrêa de Oliveira
Nova
et Vetera
Legionário, 4 de março de 1945, N. 656, pag. 5 |
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Uma vez reconhecido o reino de Deus, é impossível admitir em princípio a liberdade de o atacar. E como, no pensamento de nossos adversários, a liberdade de cultos apenas significa a liberdade de destruir por seus sofismas o reino de Jesus Cristo, parece-nos impossível concordar com aqueles que veem numa tal liberdade o estado normal da sociedade humana, pois é ela mero fruto da apostasia dos Estados modernos. E em vez de nos adaptarmos a essas “conquistas do espírito de 89” (ou seja, da Revolução Francesa, n.d.c.), será nosso dever apenas tolerar tal estado de coisas do mesmo modo que o agricultor da parábola evangélica tolerou o crescimento do joio junto do trigo. É a lição que tiramos do estudo que o Padre Ramière faz em seu livro “L'Eglise et la Civilisation Moderne” sobre a questão da liberdade de consciência. E essas páginas escritas em pleno século dezenove ainda se aplicam como uma luva, aos dias que correm, em que a demagogia liberal insiste em lançar de novo o mundo nos braços do mais nefando totalitarismo, pois que o abuso da liberdade, gerando a anarquia, é que forma o clima propício ao aparecimento dos tiranos. * * *
Padre Henri Marie Félix Ramière (1821-1884) Diremos, de início, que em princípio a Igreja não deve e não pode admitir a liberdade de combater a verdade. Para o provar nós nos apoiaremos menos sobre a autoridade soberana que a Igreja recebeu de Deus, do que sobre os direitos da consciência humana e sobre o interesse da sociedade. Sim, é antes de tudo a necessidade de salvaguardar a liberdade de consciência, em seu sentido mais verdadeiro, que não permite à Igreja admitir sem restrição essa liberdade no sentido que lhe emprestam seus adversários. O primeiro direito como a primeira necessidade da consciência humana é o conhecimento certo de seus deveres. Até que ela não tenha essa certeza, será incapaz de todo progresso moral. Privada de toda força, em lugar de ir para diante, ela hesita e gira sobre si mesma, como um viajante que perdeu seu caminho; em lugar de se manter firme, ela cambaleia e tomba como um corpo sem equilíbrio. Somente a certeza pode servir de escudo à consciência contra os ataques das paixões. Esse escudo, nós o sabemos, não é sempre bastante forte para a defender contra esses fogosos inimigos. A alma que se encontre mais convencida de seus direitos se deixa frequentemente levar pelo interesse ou pelo prazer, mas se a certeza lhe falta, sobre que se apoiará ela para lhes resistir? Seu único ponto de apoio será a areia movediça da dúvida, isto é, será vencida e rolará sobre uma rampa que a afastará rapidamente de sua perfeição moral. Concedei, portanto, ao homem a certeza ou renunciai a desenvolver o mais sublime de seus instintos, aquele pelo qual ele se eleva acima dos animais e mais se aproxima de Deus. Tanto mais manifesto se torna, porém, que a certeza moral é o supremo interesse e o primeiro direito da consciência humana, tanto mais se evidencia que a liberdade de consciência, entendida no sentido já citado, é incompatível com esse interesse e atentatória desse direito. Com efeito, será preciso desconhecer completamente as condições presentes da natureza humana para se persuadir que o homem esteja em estado de adquirir por si próprio a certeza na idade em que sua consciência deve formar-se. Se seu Criador o houvesse destinado a se formar sua própria crença, Ele teria disposto tudo de tal maneira que para realizar essa obra capital o homem teria à sua disposição poderosíssimos recursos, e teria que lutar contra obstáculos menores que os de períodos menos críticos de sua existência. Tal não se dá, entretanto. É na juventude, pelo contrário, é no momento solene em que o homem deve escolher seu caminho, formar sua crença e fixar seu futuro, e então que ele é mais violentamente assaltado pela tempestade das paixões e menos esclarecido pelos clarões incertos de uma razão recém saída das trevas da meninice. Que será feito dele em uma sociedade em que reina essa licença de negar todas as verdades religiosas que se denomina liberdade de consciência? Infelizmente o sabemos muito bem: acontecerá que ouvindo em torno de si, nesse momento solene, mil vozes que se contradizem, solicitado por mil doutrinas, das quais as mais funestas são aquelas que exibem roupagem externa mais brilhante, incapaz de rasgar os véus capciosos que encobrem a verdade, ele não poderá resistir à atração do erro, de acordo com o impulso interior da paixão. Ora, para a consciência, a atração do erro e da paixão é a pior das servidões; portanto a liberdade de consciência assim entendida é a servidão quase que inevitável da consciência. A Igreja não pode reconhecer a liberdade de atacar sua doutrina. Ela não pode, porque isto seria trair os direitos da consciência de que é guardiã. Ela não pode, porque isto seria comprometer o interesse supremo da sociedade de que é protetora. Ela não pode, porque isto seria desmentir-se a si própria ou antes, desmentir a seu Divino Fundador. Ela não pode, porque isto seria reconhecer que o erro e a verdade são coisas indiferentes. Ela não pode, porque isto seria colocar o ideal da ordem na legalização da desordem, em um estado de coisas em que as trevas do abismo terão plena liberdade de vir se interpor entre a inteligência e a luz do céu, em que o veneno do erro, temperado com todos os condimentos da paixão, vem se oferecer a todos os apetites em lugar do pão da verdade. Não, a Igreja não pode reconhecer esse ideal. Ela deseja a liberdade das almas, e é por isso que repele com todas as suas forças a liberdade de as reduzir à escravidão. Portanto quando a sociedade moderna, enganada por sofismas seculares, confunde esses conceitos, tão diferentes na realidade quanto o dia é diferente da noite, a Igreja é obrigada a agir com relação à sociedade como age uma mãe com relação a um filho que se engana; ela se vê constrangida a combater esse erro sob o risco mesmo de desagradá-lo, e de repelir, no próprio nome da verdadeira liberdade de consciência, a liberdade do erro que se reivindica sob esse nome. E não se diga que, se a Igreja se recusa a reconhecer em princípio a liberdade de consciência, ela fornece armas contra si própria, e justifica todas as perseguições que tem sofrido da parte de potências infiéis ou heréticas. Para que essa objeção tivesse qualquer valor, seria necessário de duas, uma: ou bem estabelecer em princípio que a verdade não tem mais direitos que o erro à adesão das inteligências; ou bem demonstrar que de fato a Igreja Católica não dá mais provas de sua divindade do que as seitas criadas pelos homens ou os cultos idolátricos. Que nos provem isso e nos confessaremos vencidos. Sim, verdadeiramente Nero teria direito de perseguir os cristãos, se lhe houvesse sido demonstrado que a honra da divindade e a dignidade da alma humana exigiam que ele tomasse contra o Evangelho a defesa do culto de Vênus, a deusa impudica, e de Mercúrio, o deus ladrão, mas quem ousará sustentar semelhante enormidade? Quanto aos poderes heréticos, teremos ainda uma outra resposta. O próprio princípio sobre o qual esses poderes se apoiam os coloca na impossibilidade de perseguir a Igreja sem cair na mais flagrante contradição. É, com efeito, por demais manifesto que eles não receberam de Deus nenhuma delegação especial para interpretar autenticamente sua lei. Toda a sua autoridade lhes vem apenas da interpretação do Evangelho pelo juízo particular. Mas se assim é, com que direito podem eles impedir ao católico de também interpretar o Evangelho à sua maneira? Será que sua interpretação por acaso é menos razoável que a do sociniano que nele vê a negação da Trindade, e do ariano que deduz do mesmo Evangelho que o Verbo de Deus é uma pura criatura? Como, portanto, se pode, sem a mais gritante injustiça, recusar ao católico, que compreende o Evangelho segundo a tradição recebida de autores inspirados, a liberdade que se concede aos dogmatizadores temerários que lhe alteram todos os ensinamentos ao sabor de seus caprichos? Em virtude de que lógica será a Igreja constrangida a admitir essa consequência, desde que ela se recusa a abdicar de sua missão divina? Da questão de princípio passemos à questão de aplicação. Se a Igreja não pode reconhecer o ideal da sociedade na liberdade concedida a todos os erros de atacar a veracidade de seus ensinamentos, não poderá ela, em certas circunstâncias, tolerar essa liberdade, e mesmo a preferir a uma proteção comprometedora? Para resolver esta segunda questão, devemos distinguir dois estados de sociedade completamente diferentes e aos quais devem ser aplicadas regras diferentes. Se se trata de uma nação no seio da qual a autoridade da Igreja é reconhecida, não somente pela universalidade dos cidadãos, mas ainda pela autoridade social; de uma nação constituída cristãmente e na qual a legislação esteja apoiada sobre a legislação católica como sobre seu fundamento, ninguém poderia contestar que semelhante sociedade deva repelir todos os ataques contra a Igreja, como todas as sociedades repelem os ataques dirigidos contra seu governante. Seria estranho que as diferentes formas sociais possam obter proteção contra as agressões de partidários de formas opostas; que a monarquia possa abafar as tentativas em favor da república, e a república reduzir ao silêncio os advogados da monarquia, e que somente a Igreja não possa reclamar um apoio semelhante no próprio seio dos povos que hajam mais unanimemente e mais livremente tomado sua autoridade por base de sua constituição. Para sustentar semelhante tese, ter-se-ia de provar que a autoridade da Igreja é incapaz de servir de base a uma constituição social. Como, porém, provar esse absurdo? Seria necessário condenar todas as nações que se gloriam de praticar a mais larga liberdade de cultos; porque todas se reservam o direito de excetuar dessa liberdade os princípios ou as práticas que lhes pareçam contrárias aos interesses sociais. A Inglaterra não tolera a violação do repouso dominical; a França não permite a seus cidadãos a prática da poligamia, sob pretexto de que o islamismo, que a autoriza, seja a seus olhos a melhor das religiões. Os próprios Estados Unidos da América do Norte, apesar da tolerância sem limites inscrita em sua constituição, declararam guerra aos mórmons de Utah para os constranger a modificar sua moral religiosa. Não se deve, portanto, recusar à sociedade o direito de cercar com sua proteção certas verdades que ela julgar necessárias à sua dignidade ou ao seu repouso. Basta isto para justificar a conduta passada da Igreja. Porque, se na Idade Média ela reclamava o apoio do poder, era pelo fato de ser cristão esse poder. Fundado por ela, achava ele nela seu mais firme apoio; era bem justo, portanto, que esse poder a apoiasse por sua vez. Ademais a sociedade inteira era cristã, bem como os indivíduos que a compunham. Jesus Cristo reinava através de sua Igreja sobre as almas, bem como sobre os povos. Como se espantar que a autoridade de suas leis fosse publicamente reconhecida e que o corpo social não tolerasse nenhum ataque contra sua divina realeza? Tal não se daria em uma sociedade constituída fora da Igreja, e cujos membros, em uma proporção mais ou menos considerável professem doutrinas contrárias à sua. Em um semelhante estado de coisas, poderia ser para ela não somente uma necessidade, mas ainda um dever de se contentar com a liberdade que jamais lhe pode ser recusada sem injustiça. O próprio Evangelho parece formular bem claramente essa doutrina. É conhecida a parábola do joio e da boa semente. Um agricultor havia semeado boa semente em seu campo; mas, enquanto dormia com seus operários, veio um inimigo e semeou joio no meio do trigo. O joio e a boa semente germinaram ao mesmo tempo e cobriram juntos a terra. “Então os servos disseram ao amo: Quereis que livremos vosso campo dessa erva daninha? Mas o amo lhes respondeu: não, para que não suceda que, arrancando o joio, arranqueis com ele também o trigo. Deixai crescer um e outro até à colheita; e no tempo da colheita direi aos ceifadores: colhei primeiro o joio e atai-o em molhos para o queimar; o trigo, porém, recolhei-o ao meu celeiro.” Vemos nessa parábola os diferentes estados de sociedade no seio dos quais a Igreja pode ser chamada a desempenhar sua missão divina. O campo em que se semeou a boa semente, é a sociedade constituída cristãmente, em que a doutrina da Igreja é universalmente reconhecida e não pode ser negada a não ser por má fé. Então será um dever, para todos aqueles que são prepostos à guarda do campo, impedir o homem inimigo de vir aí semear o joio e de recolher a má semente, se ele é surpreendido no momento em que começa a semeá-la. Mas se por negligência dos guardas ou pela infelicidade das circunstâncias o joio for semeado em todo o campo, se ele ali germina, se pela multiplicidade de relações sociais ele entrelaça suas raízes com as da boa semente, se o erro adquire uma existência de tal forma pública, então a verdade conserva sem dúvida todo os seus direitos, mas poderá ser um dever para seus defensores de não os fazer valer a não ser pela palavra. O apelo a todo outro gênero de proteção comprometendo a paz da sociedade, poderá lesar mais gravemente ainda os direitos da verdade e comprometerá seus interesses. Não é por nossa própria autoridade que interpretamos desse modo a parábola evangélica. Nós tiramos essa interpretação dos doutores mais autorizados, como São João Crisóstomo, Santo Agostinho, São Tomás. Todos três concordam em reconhecer que sob essa imagem o Salvador quis traçar aos chefes da sociedade a conduta que deviam ter com o correr dos tempos para com os corruptores de sua doutrina. Mas é nisso que parece se limitar o acordo entre esses ilustres doutores; porque, encarando os estados diferentes de sociedade, eles parecem também diferir inteiramente sobre a conclusão a tirar do ensinamento do Divino Mestre. São João Crisóstomo conclui que a Igreja não deve fazer uso da espada para reprimir os hereges. O Santo doutor (São Tomás), entretanto, não aprova de qualquer maneira a tolerância que deixará a verdade sem defesa contra os ataques do erro. Não se compreende, com efeito, por que nos Estados Católicos mais tolerantes, não se garanta à Igreja esse direito de repelir a calúnia, que não se nega ao último dos cidadãos. São Tomás apoiando-se sobre Santo Agostinho, nega que se possa deduzir do texto do Evangelho que toda repressão material seja interdita, visto que o perigo de comprometer os interesses da verdade nem sempre existe; mas essa própria razão sobre a qual ele apoia a legitimidade da repressão das heresias em certos estados de sociedade, mostra muito bem que, segundo ele, a tolerância desses mesmos erros pelo menos em uma certa medida, seria autorizada pelo próprio Evangelho, nas condições que Jesus Cristo nos descreveu sob a imagem do campo semeado de joio. Não estamos, portanto, muito afastados de concordar na questão prática com aqueles de nossos irmãos que vêm na liberdade o único paládio dos direitos da Igreja nas circunstâncias presentes. Seríamos, entretanto, forçados a nos separar deles se quisessem fazer dessa utilidade relativa uma necessidade absoluta. Concordamos de bom grado que a liberdade é a única proteção que em um grande número de Estados, a Igreja possa e deva reclamar hoje; mas não poderíamos concordar que ela jamais possa e jamais haja podido exigir outra coisa; porque não vemos como concordar com isto sem condenar todo o passado da Igreja e sem desmentir a seus mais claros e precisos ensinamentos. |