Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
A Igreja e a liberdade de consciência

 

 

 

 

 

 

Legionário, 25 de fevereiro de 1945, N. 655, pag. 5

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Eis um velho tema que se renova. E apesar de toda a caudal de tinta gasta em torno dele, ainda perduram a seu respeito as mesmas dúvidas e as mesmas confusões do tempo em que a opinião católica sofria o primeiro embate das idéias liberais.

Já em meados do século dezenove, o conhecido teólogo e publicista que foi o Padre Ramière publicava um livro, “L'Église et la Civilisation Moderne”, em que procurava desfazer todos os mal-entendidos e prevenções daqueles então tempos modernos em relação à Igreja. Depois disso, a questão foi cada vez mais esclarecida, principalmente através de documentos emanados da Santa Sé infalível. Não deixam, porém, de ter seu sabor e de ser muito aplicáveis aos tempos atuais as considerações do conhecido pensador jesuíta sobre o problema da liberdade de consciência. Depois de tratar da liberdade moral, da liberdade civil e da liberdade política, passa ele a estudar a liberdade de consciência. E diz:

* * *

Padre Henri Marie Félix Ramière (1821-1884)

Chegamos enfim ao ponto mais complicado de toda esta controvérsia: à questão da liberdade de consciência, sobre a qual os homens mais sinceros disputam há muito tempo sem chegar a um acordo. Esta questão encerra a da liberdade de imprensa. Pelo menos a Igreja não teria nenhum motivo para se opor a esta última liberdade, assim como à liberdade de consciência, se o exercício de tais liberdades não comprometesse a salvação das almas que Deus lhe confiou.

Mas será real esse perigo? E não poderá a Igreja, sem faltar à sua missão, sancionar essas liberdades que a maioria dos governos modernos fez entrar no direito público?

Se fosse seguir um certo número de seus devotados filhos, a Igreja não hesitaria um instante. Segundo esses católicos, bem longe de a liberdade de consciência se achar em relação com a doutrina evangélica, ela, pelo contrário, decorre dessa doutrina. E se a ação da Igreja não foi sempre regulada por esse princípio, se Ela chegou mesmo, algumas vezes, na pessoa de seus Pontífices, a proclamar princípios por completo contrários, atribuem eles essa conduta seja às circunstancias particulares dos tempos, seja à falibilidade pessoal que acompanha a infalibilidade dos primeiros Pastores; mas eles recusam admitir que a Igreja, enquanto Igreja, pudesse jamais condenar esse princípio, visto que ele seria verdadeiro e que o estado de coisas ao qual ele serve de base seria não somente o melhor em si, mas o mais favorável à independência e ao triunfo de Jesus Cristo.

Outros católicos, igualmente devotados, encaram a questão de modo diferente. Segundo eles, é raciocinar muito mal o decidir a priori que, sendo verdadeiro esse pretendido princípio, a Igreja não pudesse jamais condená-lo. Falar assim, seria inverter a ordem estabelecida por Deus, e se atribuir praticamente o direito de dirigir a autoridade instituída por Jesus Cristo para dirigir soberanamente as almas é cair no erro que o Cardeal Pacca, escrevendo em nome de Gregório XVI, reprovava os redatores do jornal L'Avenir, e dar lições aos pastores encarregados por Jesus Cristo do ensino dos povos e dos soberanos. A única conduta digna de um filho da Igreja é a de consultá-la, de escutar sem espírito preconcebido suas respostas e de ter por verdadeiro o que Ela aprova e por falso o que ela condena.

Ora, acrescentam esses mesmos católicos, se se interrogar assim a Igreja, não haverá a menor dúvida quanto ao seu pensamento; porque em todos os tempos e pela boca de todos seus Doutores e de todos os seus Pontífices, de Santo Agostinho a Suarez, e de São Gregório I a Gregório XVI, a Igreja constantemente proclamou uma doutrina contrária à liberdade de consciência e se atribuiu direitos dos quais essa liberdade é a negação; e esses direitos Ela os tem reivindicado, não como emanados de circunstâncias e da concessão dos príncipes, mas como seu apanágio essencial; Ela tem ensinado essa doutrina, como ensina todos os outros dogmas, salvo talvez que Ela não tornou tal doutrina objeto de uma definição explícita. Não se trata aqui da falibilidade pessoal dos Ministros da Igreja; se eles se enganaram, foi sua autoridade doutrinária que esteve em jogo, senão em definições autênticas, pelo menos em uma longa série de atos solenes. Donde se conclui que, se não se deseja condenar a Igreja sob pretexto de a defender e lhe arrebatar sua coroa para, conciliá-la com a sociedade moderna, torna-se necessário, a qualquer custo, repelir esse pretenso princípio e não aceitar o novo regime a não ser como se aceita, ou melhor, como se suporta, uma desordem que não se pode reformar.

Se aqueles que assim raciocinam dizem a verdade, devemos, parece-nos, reconhecer que há pelo menos um ponto sobre o qual é impossível acordo entre a Igreja e a sociedade moderna, e que, por conseguinte, nós nos enganamos ao procurar nas tendências dessa sociedade um sinal de sua reconciliação com a Igreja.

Não nos apressemos em admitir essa conclusão. Vejamos se, nessa questão como nas outras, o desacordo não se origina em mal-entendidos e se para concordar não será suficiente a prévia compreensão.

É indispensável de início precisar o sentido que emprestamos a essas palavras liberdade de consciência porque essas palavras apresentam ao espírito daqueles que as pronunciam, idéias por completo diferentes. Como será possível um acordo se, desde o ponto de partida, se começa a não dar aos termos seu verdadeiro valor?

Que se entende por liberdade de consciência? Será a completa independência da razão humana com relação ao próprio Deus, o poder de aderir indiferentemente à verdade e ao erro e de mudar cada dia de crenças religiosas segundo os caprichos da paixão ou dos cálculos interesseiros? Temos razões suficientes para pensar que um certo número daqueles que se mostram tão ardorosos em reclamar contra a Igreja a liberdade de consciência, a compreendam desse modo. Mas a esses temos apenas uma coisa a dizer: é que essa pretensa liberdade de consciência na realidade é a negação da consciência. Com efeito, ou a consciência nada é, ou é o poder de discernir o justo do injusto, o que é obrigatório do que é proibido. Mas se não há acima do homem nenhuma autoridade a quem o homem deva prestar conta de seus atos, nada pode ser para ele obrigatório ou ilícito; tudo que ele deseja é justo, e nada existe de injusto a não ser o que lhe apraz declarar como tal. A consciência, portanto, não tem razão de ser. E ela é destruída por quem a deseja libertar.

A esses adversários, nós poderíamos ainda perguntar se para eles existe uma verdade, e se essa verdade difere do erro. Se negam a existência da verdade, nada mais lhes temos a dizer. Para que serve a discussão, senão para demonstrar a verdade, e como demonstrar a verdade a pessoas para as quais a verdade de nada vale? Mas se a verdade é alguma coisa e se difere do erro, ela evidentemente tem direito ao assentimento das inteligências, e as inteligências, sem lhe negar sua natureza e sem ultrajar seu autor, não podem reclamar como um privilégio o direito de permanecer indiferentes entre o erro e a verdade.

Não é portanto da independência consciência em relação a Deus de que se trata aqui.

Trata-se de sua independência em relação à sociedade.

Mas, ainda sob esse segundo aspecto, a liberdade de consciência pode oferecer sentidos muito diferentes: ela pode significar a liberdade de aderir à verdade, ou a liberdade de combater essa mesma verdade.

O primeiro sentido é evidentemente o mais verdadeiro. Se a consciência é dada ao homem para que ele possa discernir a verdade do erro, o justo do injusto, é claro que o que importa sobretudo é que na procura da justiça e da verdade ela não encontre nenhum obstáculo.

Ora, a liberdade de consciência entendida nesse sentido é tão pouco oposta à doutrina da Igreja, que se pode dizer que ela é, pelo contrário, fruto dessa mesma doutrina.

Antes que a Igreja viesse revelar aos homens a dignidade de sua alma, eles não pareciam sequer desconfiar que tinham uma consciência; e será em vão que mesmo agora se procura, entre os povos que não foram educados pela Igreja, esse cuidado zeloso pela independência espiritual que caracteriza os povos cristãos. Já vistes em alguma parte que os rebanhos de escravos amontoados nas masmorras dos palácios da Roma pagã jamais sonhassem em alinhar ao lado de seus infortúnios a necessidade de adorar os deuses imundos que seus donos adoravam?

A Igreja deseja, portanto, a liberdade de consciência entendida em seu sentido verdadeiro. Ela a defende com toda sua energia, e suas lutas contra os poderosos deste mundo têm tido sobretudo por fim impedir que essa liberdade morra sufocada nas garras da tirania.

Mas nossos adversários não querem admitir essa definição da liberdade de consciência. Demonstram por ventura que ela é falsa? Não. E como a demonstrariam eles então, visto que essa definição decorre da própria ideia da consciência? Por que a rejeitam? Porque eles bem compreendem que, se a admitissem, toda a questão da liberdade sairia das obscuridades de que eles fazem um tema tão fecundo para declamações.

Restaria então apenas essa simples questão de fato: possuirá a Igreja a verdade e dará Ela provas bem certas da divindade de sua missão? Questão que se teima soberanamente em não abordar.

Para nossos adversários, portanto, a liberdade de consciência consiste mais no poder de combater a verdade e aderir ao erro, do que no poder de fugir ao erro e de aderir à verdade.

Poderá ou não a Igreja permitir que a sociedade conceda a seus membros esse poder de atacar a verdade por todos os meios que não perturbem a ordem material? Eis, ao que nos parece, o verdadeiro ponto da dificuldade e a verdadeira questão em litígio entre os adversários da Igreja e seus defensores.

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Em nosso próximo número mostraremos como o famoso teólogo resolve essa questão de princípio e sua aplicação na prática.