Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera

A letra e o espírito dos tratados de paz

 

 

 

 

Legionário, 14 de janeiro de 1945, N. 649, pag. 5

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Antes da atual conflagração (II Guerra Mundial), por mais de uma vez a voz da Igreja se fez ouvir para apontar aos homens o verdadeiro caminho que deve ser trilhado para ser alcançada a almejada paz entre os povos.

Já tivemos ocasião de citar as palavras do Santo Padre Bento XV, proferidas logo após a assinatura do famigerado tratado de Versalhes cujas injustiças seriam mais tarde exploradas pelos líderes nazistas para arrastar a Alemanha a uma segunda guerra mundial.

Hoje continuaremos a transcrição da Encíclica sobre a “Paz de Cristo no Reino de Cristo”, em que Pio XI, seguindo a luminosa esteira de seu santo predecessor, insistia sobre a necessidade de um retorno à Igreja e à sua doutrina para que a verdadeira paz voltasse a imperar entre os homens.

Vimos em nosso último número quais os males que assolavam a humanidade após a primeira grande guerra. Hoje veremos quais as origens desses males, que ainda são os mesmos a impedir a verdadeira concórdia entre os homens.

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Até aqui falamos dos males destes tempos. Indaguemos agora suas causas mais detidamente, se bem que, sem poder evitá-lo, já tenhamos indicado algo neste sentido.

E, antes de tudo, parace-nos ouvir de novo o Divino consolador e Médico das enfermidades humanas ao repetir aquelas palavras: “Todos estes males procedem do interior” (Mc. 7,23).

O olvido da caridade

Foi firmada solenemente a paz entre os beligerantes, mas ficou apenas escrita nos documentos públicos, mas não gravada nos corações; está vivo, porém, nestes o espírito belicoso e dele brotam cada dia maiores danos para a sociedade. Porque o direito da força andou muito tempo triunfante por toda parte, e pouco a pouco foi apagando nos homens os sentimentos de benevolência e compaixão que, recebidos da natureza, são aperfeiçoados pela lei cristã, e até agora não voltaram a renascer nem com a reconciliação de uma paz feita mais na aparência que na realidade. Daí o ódio, a que se habituaram os homens por longo tempo, ter se tornado em muitos uma segunda natureza, e o predomínio daquela lei cega que o Apóstolo lamentava sentir em seus membros, guerreando contra a lei do espírito. E assim sucede com frequência que o homem não mais parece, como deveria considerar-se segundo o mandamento de Cristo, irmão dos demais, senão estranho e inimigo; que perdido o sentimento da dignidade pessoal e da própria natureza humana, somente se conta com a força e com o número, e que procurem uns oprimir os outros e com o único fim de gozar quanto possam dos bens desta vida.

Ânsia imoderada dos bens terrenos

Nada mais ordinário entre os homens desdenhar os bens eternos que Jesus propõe a todos continuamente por meio de sua Igreja, e apetecer insaciáveis a consecução dos bens terrenos e caducos. Pois bem: os bens materiais, por sua própria natureza, são de tais condições, que em buscá-los desordenadamente se acha a raiz de todos os males, e especialmente do descontentamento e da degradação moral, das lutas e das discórdias.

Com efeito, de um lado esses bens, vis e finitos como são, não podem saciar as nobres aspirações do coração humano que, criado por Deus e para Deus, fica necessariamente inquieto, enquanto não descanse em Deus. Por outro lado, como os bens do espirito, comunicados a outros, a todos enriquecem, sem padecer falta, assim, pelo contrário, os bens materiais, limitados como são, quanto mais se repartem tanto menos tocam a cada um. De onde resulta que os bens terrenos, incapazes de contentar a todos por igual, nem de saciar plenamente a qualquer um, são causas de divisões e de tristeza, verdadeira “vaidade das vaidades e aflição do espirito” (Ecl. 1, 2,14), como os chamou o sábio Salomão, depois de bem experimentado. E isto que acontece aos indivíduos, também se dá com a sociedade. “De onde nascem as guerras e contendas entre nós?”, pergunta São Tiago Apóstolo. “Não é verdade que de vossas paixões?” (4, 1).

As três concupiscências

Porque a concupiscência da carne, ou seja o desejo de prazeres, é a peste mais funesta em que se possa pensar para perturbar as famílias e a própria sociedade:  da concupiscência dos olhos, ou seja da cobiça de possuir, nascem as desapiedadas lutas de classes sociais, atenta cada qual, em demasia, aos seus próprios interesses; e a soberba da vida, isto é, a ânsia de mandar nos demais, levou os partidos políticos a contendas tão encarniçadas, que não se detêm sequer diante da rebelião, nem diante do crime de lesa majestade, nem diante do próprio parricídio da pátria.

E a esta intemperança das paixões, quando se cobre com o especioso manto do bem público e do amor à pátria, é que se devem atribuir as inimizades internacionais. Pois este amor pátrio, que em si é forte estímulo para muitas obras de virtude e de heroísmo quando dirigido pela lei cristã, é também fonte de muitas injustiças quando, passados os justos limites, se converte em amor pátrio exagerado. Os que por este amor se deixam levar olvidam não somente que os povos todos estão unidos entre si pelos vínculos fraternos, como membros que são da grande família humana, e que as outras nações têm direito a viver e a prosperar, mas também que não é lícito nem conveniente separar o útil do honesto. Porque “a justiça eleva os povos e o pecado os faz miseráveis” (Prov. 14, 34). E se o obter vantagens para a própria família, cidade ou nação, com prejuízo para os demais, pode parecer aos homens uma obra gloriosa e magnífica, não se deve olvidar, como nos adverte Santo Agostinho, que nem será duradoura, nem ficará livre do temor da ruína.

O olvido de Deus

Mas o que se acha ausente da paz, e se faz notar depois de se haverem remediado tantos males, tem que exigir causa mais profunda que as que até agora enumeramos. Porque já muito antes de estalar a guerra europeia, vinha se preparando por culpa dos homens e das sociedades a principal causa engendradora de tantas calamidades, causa que devia ter desaparecido com a mesma espantosa grandeza do conflito se os homens houvessem entendido o significado de tão grandes acontecimentos. Quem não sabe o que diz a Escritura? ”Os que abandonaram o Senhor serão consumidos” (Is. 1, 28); nem são menos conhecidas aquelas gravíssimas palavras do Redentor e Mestre dos homens, Jesus Cristo: “Sem Mim nada podeis fazer” (Jo. 15, 5), e aquelas outras: “Quem não colhe comigo, desperdiça” (Lc. 11. 23).

Sentenças estas de Deus que em todos os tempos se verificaram; e agora sobretudo as vemos realizar-se diante de nossos olhos. Afastando-se de Deus e de Jesus Cristo em má hora, os homens por isso precisamente se afastaram daquele estado feliz e vieram cair neste torvelinho de males, e por essa mesma razão ficaram frustradas e sem efeito a maior parte das vezes as tentativas para reparar os danos e para conservar o que se havia salvo de tanta ruína. E assim, afastado Deus e Jesus Cristo das leis e do governo, fazendo derivar a autoridade, não de Deus, mas dos homens, sucedeu que, além de tirar das leis verdadeiras e sólidas sanções e os primeiros princípios da justiça, que até os próprios filósofos pagãos, como Cícero, compreenderam que não podiam ter apoio senão na lei eterna de Deus, foram arrancados os próprios fundamentos da autoridade, uma vez desaparecida a razão principal de que uns têm o direito de mandar e outros a obrigação de obedecer. E daí as violentas agitações de toda a sociedade, a falta de todo apoio e defesa, enquanto os partidos lutam por alcançar o poder, atentos aos próprios interesses e não nos da pátria”.

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E depois de aludir à exclusão de Deus da família e da educação da juventude, passa Pio XI a tratar dos remédios aptos a sanar todos esses males. Veremos em nosso próximo número, como somente a Igreja poderá fornecer as bases para a paz mundial e custodiar a santidade do direito das gentes, como instituição que se estende a todas as nações e que paira acima de todas elas, portadora de mandato divino para conduzir os indivíduos e a sociedade para o único porto de salvação que é Nosso Senhor Jesus Cristo, fora do qual somente encontramos misérias e ruínas.