Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
A luz que as trevas não compreendem

 

 

 

 

 

 

Legionário, 7 de janeiro de 1945, N. 648, pág. 5

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Ainda sob o troar dos canhões nos campos de batalha, movimentam-se as chancelarias para cuidar dos problemas da paz. O assunto absorve os comentaristas políticos, espraiando-se das colunas dos jornais para a praça pública através de comícios e de movimentos de opinião, que por todos os lados surgem para debater a grande questão. E reiteradamente se afirma que vai ser mais difícil ganhar a “batalha” da paz que o mais encarniçado embate da atual conflagração armada.

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Que experiência ganhou a humanidade com o exemplo da primeira grande guerra? E até que ponto os seus problemas se assemelham aos atuais?

Depostas as armas após o armistício de 1918, permaneceu o ódio nos corações. E a quadra de após guerra não foi menos fértil em batalhas econômicas, financeiras, comerciais, de conquista de mercados e de demais meios que o homem pode empregar num regime de paz armada para prejudicar seu adversário.

Era preciso desarmar os espíritos carregados de ódio dos vencidos e dos vencedores. E na antevéspera do Natal de 1922 o Santo Padre Pio XI apresenta ao mundo sua admirável Encíclica sobre a “Paz de Cristo no Reino de Cristo”.

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Prevenia o soberano Pontífice a humanidade contra o perigo de um retorno ao paganismo pelo abandono das verdades eternas. O mundo, porém, preferiu prosseguir em seu caminho de filho pródigo que insiste em não voltar à casa paterna. E que os males apontados pelo Pontífice da Ação Católica eram os mesmos que hoje dividem e infelicitam os homens, nós veremos pela enumeração contida naquela Encíclica no trecho que a seguir transcrevemos:

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Os males presentes

Admiravelmente quadram em nossa época aquelas palavras dos Profetas: - “Esperamos a paz, e este bem não veio; o tempo da cura, e aqui está o terror (Jer. 8, 15); o tempo de restaurar-nos e aqui estamos todos turbados (Jer. 14,19). Esperamos a luz e temos as trevas... e a justiça, e ela não vem; a saúde e ela se afastou de nós” (Is. 59 ,9-11).

Pois apesar de terem sido depostas as armas na Europa há tempos, sem embargo sabeis como no vizinho Oriente se levantam perigos de novas guerras, e ali mesmo, em uma região imensa como já dissemos anteriormente, tudo está cheio de horrores e misérias, e todos os dias uma grande multidão de infelizes, sobretudo de velhos, de mulheres e de meninos, morrem de fome, de peste e vítimas de pilhagens; e onde quer que tenha havido guerra, não estão ainda apagadas as velhas rivalidades, que se dão a conhecer ou com dissimulações nos assuntos políticos, ou de um modo encoberto na variedade das trocas monetárias, ou sem rebuços nas páginas dos diários e periódicos; e até invadem os confins daquelas coisas que por sua natureza devem permanecer estranhas à toda luta acerba, como são os estudos das artes e das letras.

Falta a paz internacional

Daí o fato de que os ódios e as mútuas ofensas entre os diversos Estados não deem tréguas aos povos, nem perdurem somente as inimizades entre vencidos e vencedores, mas também nas próprias nações vencedoras, visto que as menores se queixam de serem oprimidas e exploradas pelas maiores, e as maiores se dizem alvo dos ódios e das insídias das menores. E todos os Estados, sem exceção, experimentam os tristes efeitos da guerra passada; mais certamente os vencidos, e de modo sensível os próprios países que não tomaram parte na guerra. E os ditos males vão cada dia se agravando, por retardar o remédio; tanto mais que as diversas propostas e as repetidas tentativas dos homens de Estado para remediar tão tristes condições de coisas têm sido inúteis, se é que não as pioraram. Por tudo isso, crescendo cada dia o temor de novas e mais espantosas guerras, todos os Estados se vêm quase na necessidade de viver preparados para a guerra, e com isso ficam esgotados os erários, perde-se o vigor da raça e sofrem grande menoscabo os estudos e a vida religiosa e moral dos povos.

Falta a paz social e política

E, o que é mais deplorável, às inimizades externas dos povos se juntam as discórdias intestinas que põem em perigo não somente a ordem social, mas também o próprio travejamento da sociedade.

Deve-se contar em primeiro lugar a “luta de classes” que, já inveterada como chaga mortal no próprio seio das nações, infecciona todas as obras, as artes, o comércio, em uma palavra, tudo o que contribui para a prosperidade pública e privada. E este mal se faz cada vez mais pernicioso pela cobiça de bens materiais de um lado e de outro lado pela tenacidade em conservá-los, e em ambos pela ânsia de riquezas e de mando. Daí as frequentes greves, voluntárias e forçadas; daí os tumultos públicos e as consequentes repressões, com descontentamento e prejuízo para todos.

Acrescentem-se as lutas de partido para o governo da coisa pública, nas quais as partes contendoras costumam de ordinário hostilizar-se visando, sem sinceridade, segundo as opiniões correntes, não o bem público, mas o proveito próprio, com prejuízo do bem comum. E assim vemos como vão aumentando as conjurações, como se originam insídias, atentados contra os cidadãos e contra os próprios ministros da autoridade; como se despertam o terror, as ameaças, as rebeliões e outras desordens semelhantes, tanto mais prejudiciais quanto maior é a parte que o povo tem no governo, como sucede nas modernas formas representativas, as quais formas de governo, se bem não estejam condenadas pela doutrina da Igreja (como não está condenada forma alguma de regime justo e razoável), sem embargo é conhecido de todos quão facilmente se prestam à maldade das facções.

Falta a paz doméstica

E é verdadeiramente doloroso ver como um mal tão pernicioso penetrou até às próprias raízes da sociedade, isto é, até na família, cuja desagregação faz tempo iniciada tem sido mais do que nunca favorecida pelo terrível flagelo da guerra, mercê do afastamento do teto doméstico dos pais e dos filhos, e mercê da licença dos costumes, em muitos modos aumentada. Assim se vê muitas vezes esquecida a honra em que deve ser mantida a autoridade paterna; desatendidos os vínculos de sangue; os amos e criados se olham como adversários; viola-se com muita frequência a própria fé conjugal, e são conculcados os deveres que o matrimônio impõe diante de Deus e da sociedade.

Daí que assim como o mal que afeta a um organismo ou a uma de suas partes principais faz que também os outros membros, mesmo os menores, sofram, assim também é natural que os males que verificamos afligir a sociedade e a família alcancem também a cada um dos indivíduos. Vemos, com efeito, quão extensa se faz entre os homens de toda idade e condição uma grande inquietação de espírito que os faz exigentes e díscolos, e como já se estabeleceu como costume o desprezo da obediência e a impaciência no trabalho. Observamos também como tem ultrapassado os limites do pudor a leviandade das mulheres e das meninas, especialmente no vestir e no dançar, com tanto luxo e refinamento que exacerba as iras dos zelosos. Vemos, enfim, como aumenta o número dos que se vêm reduzidos à miséria, entre os quais se recrutam aos bandos os que sem cessar vão engrossando o exército dos perturbadores da ordem.

Em vez, portanto, da confiança e da segurança, reina a incerteza e o temor; em vez do trabalho e da atividade, a inércia e a desídia; em vez da tranquilidade da ordem, em que consiste a paz, a perturbação e confusão em tudo. Daí a prostração das empresas industriais, a languidez do comércio, a decadência no estudo das letras e das artes; daí também, o que é mais para lamentar, o que se nota de menos em muitas partes da conduta de vida verdadeiramente cristã, de modo que não somente a sociedade não parece progredir no caminho da verdadeira civilização de que costumam gloriar-se os homens, mas aparenta querer voltar à barbárie.

Falta a paz religiosa

E todos estes males aqui enumerados vêm culminar com aqueles que, certamente, “não percebe o homem animal” (I Cor. 2, 14), mas que são, entretanto, os mais graves de nossa época. Queremos nos referir aos prejuízos causados em tudo o que diz respeito aos interesses espirituais e sobrenaturais, dos quais tão intimamente depende a vida das almas; e tais prejuízos, como facilmente se compreende, são tanto mais de chorar que as perdas de bens terrenos, quanto o espírito se avantaja sobre a matéria. Porque fora do tão extenso olvido dos deveres cristãos, acima recordado, grande pena nos causa, Veneráveis Irmãos, do mesmo modo que a vós o ver que de tantas Igrejas destinadas pela guerra a usos profanos, não poucas estão ainda sem abrir-se ao culto divino; que muitos Seminários, fechados então, e tão necessários para a formação dos mestres e guias dos povos, não possam ainda ser abertos; que em todas as partes haja diminuído tanto o número de Sacerdotes – arrebatados uns pela guerra quando se ocupavam do ministério sagrado, extraviados outros de sua santa vocação pela extraordinária gravidade dos perigos – e que do mesmo modo em muitos lugares se veja reduzida ao silêncio a pregação da palavra divina, tão necessária “para a edificação do Corpo Místico de Cristo” (Eph. 4, 12).

E que dizer ao recordar como desde os confins da terra e do próprio centro das regiões em que reina a barbárie nossos missionários, chamados frequentemente à pátria para ajudar nas fadigas da guerra, tiveram que abandonar os campos fertilíssimos, onde com tanto fruto veriam seus suores pela causa da Religião e da civilização, e quão poucos deles puderam voltar incólumes? É certo que estes prejuízos são compensados em alguns lugares por excelentes frutos, porque aparecem então no coração do Clero o amor da pátria e a consciência de todos seus deveres, de modo que muitas almas, nas portas da morte, admirando no trato diário os formosos exemplos da magnanimidade e de trabalho do Clero, se acercaram de novo do Sacerdócio e da Igreja. Mas nisto temos que admirar a bondade e a sabedoria de Deus, que até do mal sabe tirar o bem.

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Veremos, em nosso próximo número, como o Pontífice da Ação católica explica a causa desses males e quais os remédios que lhes devemos aplicar, remédios que somente a Igreja poderá fornecer.