Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera

Liberalismo totalitário

 

 

 

 

 

Legionário, 24 de setembro de 1944, N. 633, pág. 6

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É na encíclica “Immortale Dei” que Leão XIII propõe como doutrina certa do ensinamento Católico o grave dever que têm e terão sempre os chefes da cidade temporal de reconhecer um privilégio social à única e verdadeira Igreja de Cristo, como tal e, por conseguinte, de lhe assegurar o concurso e a proteção das leis humanas.

A encíclica reprova, por outro lado, como um erro doutrinário a opinião segundo a qual o Estado poderia se abster de professar ele próprio qualquer culto ou conceder uma igual e comum liberdade a todos os cultos, à verdadeira Igreja assim como a todas as outras religiões que não perturbem a ordem pública.

Mesmo quando Leão XIII concede que as circunstâncias contemporâneas venham a obrigar um governo católico a tolerar a existência dos cultos dissidentes, emprega uma linguagem cheia de reservas, mostrando que tal é característica não de uma sã, mas de uma defeituosa sociedade política, uma verdadeira anomalia na vida dos povos. A confirmação desta verdade se acha, entre outros documentos emanados da Santa Sé, no protesto enviado ao Imperador Pedro II em 1889, quando o governo brasileiro promulgou a lei estabelecendo a igualdade e liberdade de cultos.

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Uma das mais importantes consequências do princípio liberal da igualdade de direitos dos vários credos religiosos vem a ser a subordinação da Igreja ao Estado, culminando no mais completo totalitarismo. É o que depreenderemos do seguinte trecho da “Immortale Dei”:

“Tempo houve em que a filosofia do Evangelho governava os Estados. Nessa época, a influência da sabedoria cristã e sua divina virtude penetravam as leis, as instituições, os costumes dos povos, todas as classes e todas as relações da sociedade civil. Então a religião, instituída por Jesus Cristo, solidamente firmada no grau de dignidade que lhe é devida, florescia por toda parte, graças ao favor dos príncipes, e à proteção legítima dos magistrados. Naquele tempo o sacerdócio e o império estavam ligados entre si por uma honrosa concórdia e pela troca amigável de bons ofícios.

“Organizada deste modo, a sociedade civil produziu frutos superiores a toda expectativa, cuja memória subsiste e subsistirá, consignada, como está, em inumeráveis documentos que nenhum artifício dos adversários poderá corromper ou obscurecer. Se a Europa cristã dominou as nações bárbaras e fê-las passar da ferocidade à mansidão, da superstição à verdade; se repeliu vitoriosamente as invasões muçulmanas; se guardou a supremacia da civilização e se em tudo quanto faz honra à humanidade, ela sempre e por toda a parte mostrou-se guia e mestra; se galardoou os povos com verdadeira liberdade sob suas diversas formas; se ela sabiamente fundou uma multidão de obras para conforto das misérias, é fora de dúvida que tudo isto em grande parte deve à religião, sob cuja inspiração e com auxílio da qual, empreendeu e realizou tão grandes coisas.

“Todos estes bens durariam ainda se o acordo dos dois poderes tivesse perseverado, e havia motivo para esperar ainda maiores, se a autoridade, o ensino e os conselhos da Igreja tivessem encontrado docilidade mais fiel e mais constante. Porque seria preciso ter como lei imprescritível o que Yvo de Chartres escreveu ao Papa Pascal II: ‘Quando o império e o sacerdócio vivem em boa harmonia, o mundo é bem governado, a Igreja floresce e torna-se fecunda. Se porém, a discórdia existe, não somente as pequenas coisas não prosperam, mas as grandes mesmo perecem miseravelmente’ (Epist. CCXXXVIII).

“Mas este pernicioso e deplorável gosto de novidades que o século XVI viu nascer, depois de ter revolvido a religião cristã, passou naturalmente à filosofia e da filosofia a todos os graus da sociedade civil.

“É a esta fonte que devem ser remontados estes princípios modernos de liberdade desenfreada, sonhados e promulgados no meio das grandes perturbações do último século, como os princípios e os fundamentos de um direito novo, desconhecido até ali, e em mais de um ponto em desacordo não só com o direito cristão, mas com o direito natural também.

“Eis o primeiro de todos estes princípios: todos os homens, desde que são da mesma raça e da mesma natureza, são semelhantes e, por esse mesmo fato, iguais entre si na prática da vida; cada qual alteia-se tanto por si mesmo, que em nada e de nenhum modo sujeita-se à autoridade de outrem, pode com plena  liberdade pensar sobre tudo como quiser e fazer o que lhe aprouver; ninguém tem o direito de mandar os outros. Numa sociedade fundada sobre tais princípios a autoridade pública não é senão a vontade do povo, o qual, não dependendo senão de si mesmo, é assim o único a governar-se a si próprio.

“Escolhe seus mandatários, mas de tal sorte que lhes delega menos o direito do que a função do poder, para exercê-lo em seu nome. A soberania de Deus é deixada em silêncio, como se Deus não existira, ou como se não se ocupasse coisa alguma da sociedade do gênero humano, ou melhor, como se os homens, em particular, como em sociedade, nada devessem a Deus, ou como se fora possível imaginar um poder qualquer, cuja causa, força e autoridade não residissem inteiramente em Deus mesmo.

“Vê-se que, de tal modo, o Estado outra coisa não é mais do que a multidão soberana, e governando-se a si mesma; e desde então o povo é considerado como a fonte de todo o direito e todo o poder; pelo que o Estado não se julga ligado, por nenhuma obrigação para com Deus, não professa oficialmente nenhuma religião, não se preocupa em indagar qual é a única verdadeira entre todas, nem de preferir uma às outras, nem de favorecer a uma principalmente; mas que deve atribuir a todas a igualdade de direito, com o fim único de impedi-las que perturbem a ordem pública.

“De conseguinte, cada um terá a liberdade  de constituir-se juiz em questões religiosas, cada qual terá a liberdade de adotar a religião que preferir ou a de não seguir nenhuma, se nenhuma lhe agradar. E daí decorrem, necessariamente, a liberdade livre de todo freio da consciência, a liberdade absoluta de adorar, ou de não adorar a Deus, a licença sem limites de pensar e de publicar seus pensamentos.

“Tendo considerado que o Estado repousa sobre estes princípios, que hoje gozam de grande favor, é oportuno ver em que lugar colocaram injustamente a Igreja. Com efeito, por toda a parte onde a prática pôs-se de acordo com tais doutrinas, a religião católica foi posta pelo Estado em pé de perfeita igualdade, ou mesmo de inferioridade com sociedades que lhe são adversas. Em nenhuma conta são tidas as leis eclesiásticas; a Igreja que recebeu de Jesus Cristo ordem e missão de ensinar todas as nações, vê-se interdita de qualquer ingerência na instrução pública. Nas matérias que são de direito misto, os chefes de Estado promulgam por si mesmos decretos arbitrários, e a este respeito tornam patente um soberbo desprezo das santas leis da Igreja.

“Assim é que fazem compreender nas suas jurisdições os casamentos dos cristãos; confeccionam leis sobre o laço conjugal, sua unidade e estabilidade; lançam mão sobre os bens dos clérigos e denegam à Igreja o direito de possuir. Em suma, eles tratam a Igreja como se não tivesse nem o caráter nem os direitos de uma sociedade perfeita como se fora simplesmente uma associação semelhante às outras que existem no Estado. E assim, tudo o que ela tem de direitos, de poder, legítimo de ação, fazem depender da concessão e do favor dos governos.

“Nos Estados em que a legislação civil deixa à Igreja a autonomia própria e em que há um acordo público entre os dois poderes, clama-se primeiro que é necessário separar a Igreja dos negócios do Estado, e isto com o fim de poder agir impunemente contra a fé jurada e fazer-se árbitro de tudo, afastando todos os obstáculos. Mas, como a Igreja não pode sofrer pacientemente, porque seria para ela abandonar os maiores e mais sagrados dos deveres, e porque ela reclama absolutamente o religioso cumprimento da fé, que lhe foi jurada, nascem muitas vezes entre o poder espiritual e o civil conflitos, cujo desenlace quase que inevitável é sujeitar aquela que dispõe de meios humanos menos poderosos, ao que dispõe de mais força.

“Assim, nesta situação política que hoje muitos favorecem, há uma tendência das ideias e das vontades para repelir completamente a Igreja da sociedade ou para conservá-la sujeita e acorrentada ao Estado. A maior parte das medidas tomadas pelos governos, inspiram-se neste desígnio.

“As leis, a administração pública e a educação sem religião, a espoliação e a destruição das Ordens religiosas, a supressão do poder temporal dos Pontífices Romanos, tudo tende a este fim: ferir no coração as instituições cristãs, reduzir a nada a liberdade da Igreja católica e a menos do que nada, ainda todos os seus direitos”.


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