Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera

Catolicismo e socialismo

 

 

 

 

 

 

Legionário, 10 de Setembro de 1944, N. 631, pág. 5

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Não é raro encontrarmos hoje em dia quem tenta ensaiar a defesa do regime soviético sob a alegação de que na Rússia o comunismo cru dos dias sangrentos da revolução bolchevista teria sido substituído por um socialismo evoluído e expurgado de erros, a tal ponto que, sem prejuízo dos princípios cristãos, pode ser admitido e até aprovado.

Ora, segundo o Santo Padre Pio XI, o socialismo, quer considerado como doutrina, quer considerado como fato histórico, quer como “ação”, se permanecer verdadeiramente socialismo, não pode conciliar-se com os ensinamentos da Igreja Católica, visto que seu conceito sobre a sociedade é de todo contrário à verdade cristã.

Não é nova aliás esta tentativa de conciliação do socialismo com o catolicismo, como veremos pela refutação que o Pontífice da Ação Católica deu na Encíclica “Quadragesimo Anno” aos que, na conversão dos socialistas, procuram fazer concessões aos seus erros, em vez de professar abertamente e com sinceridade plena e integralmente a doutrina da Igreja, em que se acha a única taboa de salvação para a humanidade extraviada.

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Falando sobre as transformações pelas quais passou o mundo desde a época em que Leão XIII publicou a “Rerum Novarum”, diz Pio XI:

Os dois partidos do socialismo

“Não menos profunda que a da organização econômica é a transformação por que do tempo de Leão XIII passou o socialismo, com o qual lutou, especialmente o nosso Antecessor. Naquele tempo podia dizer-se de fato que era um só e propugnador de princípios doutrinais bem definidos e unidos num sistema; agora, ao contrário, vai dividido em dois partidos principais, que discordam o mais das vezes entre si e são, contudo, inimigos de tal natureza que nenhum dos dois se afasta do próprio fundamento de todo o socialismo, e contrário à fé cristã.

Comunismo

“Com efeito, um partido do socialismo foi sujeito à transformação mesma que acima explicamos, a respeito da economia capitalista, e se precipitou no comunismo; o qual ensina e persegue dois pontos, não já por vias ocultas ou por rodeios, mas abertamente, e com todos os meios, mesmo os mais violentos: uma luta de classe a mais encarniçada e a abolição absoluta da propriedade particular. E perseguindo os dois intentos, não há coisa que ele não tente e nada que lhe mereça respeito; e, onde chegou a se apoderar do governo, mostra-se tão cruel e selvagem, que parece coisa inacreditável e monstruosa. Disto dão prova as carnificinas espantosas e as ruínas que tem acumulado sobre vastíssimos países da Europa oriental e da Ásia. Quanto na verdade seja inimigo declarado da Santa Igreja e do mesmo Deus, é coisa por demais demonstrada pela experiência e por todos sabida. Por isto, não julgamos necessário premunir os filhos bons e fiéis da Igreja contra a natureza injusta e ímpia do comunismo; todavia não podemos, sem mágoa profunda, ver a incúria e o indiferentismo daqueles que mostram não dar importância aos perigos iminentes, e com tal passiva fraqueza deixam que se propaguem por toda a parte aqueles erros, pelos quais será levada a morte a toda sociedade, com as carnificinas e a violência. Mas, sobretudo, merecem ser condenados os que descuidam de suprimir ou transformar aquelas condições de coisas, que exasperam os ânimos dos povos e preparam com isto o caminho à revolução e à ruina da sociedade.

O socialismo hodierno

“Mais moderado é o outro partido que conservou o nome de socialismo; posto que não só professa repelir toda e qualquer violência, mas, embora não repudie a luta de classe e a abolição da propriedade particular, abranda-a ao menos com atenuações e medidas. Dir-se-ia, portanto, que, assustado diante de seus próprios princípios e as consequências deduzidas pelo comunismo, o socialismo se dobre de algum modo e se aproxime daquelas verdades que a tradição cristã sempre e solenemente ensinou; visto que, não se pode negar que as suas reivindicações se aproximem, por vezes e muito de perto, das que, com muita razão, propõem os reformadores cristãos da sociedade.

“Com efeito a luta de classe, quando se abstém dos atos de inimizade, ódio mútuo, transforma-se paulatinamente em honesta discussão, baseada na pesquisa da justiça: discussão que, decerto, não é aquela feliz paz social que todos nós almejamos, mas que pode e deve ser o ponto de partida para chegar à mútua cooperação das classes. Destarte também a guerra declarada à propriedade particular vai cada vez mais se apaziguando e restringindo a ponto de, afinal, não ficar mais combatida a propriedade dos meios de produção, mas uma certa hegemonia social, que a propriedade, contra todo o direito, a si atribuiu e usurpou. E de fato tal supremacia não deve pertencer aos simples patrões, mas ao poder público. Com isto se pode chegar insensivelmente ao ponto de as máximas do socialismo não mais discordarem das aspirações e das reivindicações daqueles que, baseados sobre princípios cristãos, envidam esforços para reformar a sociedade humana. E, na verdade, com toda a razão, pode-se sustentar haver duas categorias de bens que devem ser reservados exclusivamente para os públicos poderes, quando trazem consigo tal preponderância econômica a qual não pode ser entregue às mãos de cidadãos particulares, sem perigo do bem comum.

“Tão justas reivindicações e desejos nada mais têm que repugne à verdade católica e muito menos são reivindicações próprias do socialismo. Os que só isto têm por alvo, não têm razões para se inscrever no socialismo.

“Nem por isso se deverá crer que aqueles partidos ou grupos de socialistas, que não são comunistas, hajam todos mudado de opinião ou realmente, ou no seu programa, a tal respeito. Não, porque o mais das vezes eles não rejeitam nem a luta de classe nem a abolição da propriedade particular, mas querem só que esta seja de algum modo mitigada.

“Além disso, tendo seus falsos princípios chegado a esta brandura e de algum modo desaparecido, surge daí, ou melhor, vem levantada por alguém a dúvida: por acaso não poderão também os princípios da verdade cristã ser mitigados ou suavizados de algum modo para destarte ir ao encontro do socialismo e se chegar a um acordo quase por uma via média? E há ainda alguns que acalentam a vã esperança de atrair para nós, desta maneira os socialistas.

Esperança vã

“Esperança vã, afirmamos! Com efeito, os que querem se tornar apóstolos entre os socialistas, devem professar abertamente e com sinceridade, plena e integralmente, a verdade cristã, e de modo algum ter conivência com os erros. E se deveras querem ser pregoeiros do Evangelho, devem cuidar, antes de tudo, de mostrar aos socialistas, que as suas reivindicações, se forem justas, podem com muito mais eficiência, ser defendidas com os princípios da fé cristã e muito mais eficazmente promovidas com as forças da caridade cristã.

“Quer dizer, porém, no caso em que concerne à luta de classe ou à propriedade particular o socialismo se haja realmente moderado e emendado, a ponto de não haver mais nada que se lhe possa exprobar sobre estes pontos? Porventura renunciou com isto a seus princípios, à sua natureza contrária à religião cristã? Aí está a questão que mantem suspensas muitas almas. E, não poucos são os católicos que, bem conhecendo como os princípios cristãos não podem ser nem abandonados nem apagados, parecem dirigir os olhares para esta Sé Apostólica e pedir ansiosamente que decidamos se este socialismo haja emendado seus erros a tal ponto, que sem prejuízo de algum princípio cristão possa ser admitido e de alguma maneira aprovado. Ora, para satisfazer, de conformidade com a Nossa solicitude paternal, estes desejos, proclamemos que o socialismo, quer considerado como doutrina, quer considerado como fato histórico, quer como “ação”, se permanecer verdadeiramente socialismo, mesmo depois ele ter cedido lugar à verdade e à justiça sobre estes pontos de que falamos, não pode conciliar-se  com os ensinamentos da Igreja Católica, visto como seu conceito sobre a sociedade é de todo contrário à verdade cristã.

“Com efeito, segundo a doutrina cristã, o fim para o qual o homem, dotado duma natureza sociável, se acha sobre esta terra, é que, vivendo na sociedade e sob uma autoridade social ordenada por Deus, cultive e desenvolva plenamente todas as suas faculdades, para louvor e glória do Criador e cumprindo fielmente os deveres de sua profissão ou vocação, qualquer que seja, chegue à posse da felicidade temporal e também eterna. O socialismo, ao contrário, ignorando ou descuidando-se completamente deste seu fim tão sublime, quer do homem, como da sociedade, supõe que à sociedade humana não tenha sido instituída senão para o exclusivo bem estar.

"De fato, porque uma divisão conveniente do trabalho, mais eficazmente do que o esforço dividido dos indivíduos, garante a produção, os socialistas deduzem que a atividade econômica, em que consideram somente o fim material, deve por necessidade ser conduzida socialmente. E de tal necessidade, no entender deles, provem que os homens são obrigados, pelo que diz respeito à produção, a se submeter inteiramente à sociedade; antes o possuir uma maior abundância de riquezas que possa servir às comodidades da vida é tido em tanta consideração que se lhe devem postergar os bens mais elevados do homem, especialmente a liberdade, sacrificando-os todos às exigências duma produção mais eficaz. Este prejuízo da organização “socializada” da produção, sofrido pela dignidade humana, julgam eles ficar largamente recompensado pela abundância dos bens, que os indivíduos auferirão a fim de poder aplica-los às comodidades e às conveniências à vida, de conformidade com seus gostos. A sociedade, pois, como é imaginada pelo socialismo não pode existir nem se conceber desunida de um constrangimento verdadeiramente excessivo, e por outro lado fica entregue a uma não menos falsa licença, por lhe faltar uma verdadeira autoridade social, visto que esta não pode fundar-se sobre as vantagens materiais e temporais, mas só pode vir de Deus, Criador e fim de todas as coisas.

Termos contraditórios

“Porém, embora o socialismo admita, como todos os erros, algo de verdade (o que de resto os Sumos Pontífices nunca negaram) todavia funda-se numa doutrina sobre a sociedade humana, toda especial que discorda do cristianismo. Socialismo religioso e socialismo cristão, pois, são termos contraditórios: ninguém pode ser católico e ao mesmo tempo verdadeiro socialista”.


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