Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera

Democracia e totallitarismo

 

 

 

 

 

 

Legionário, 13 de Agosto de 1944, Nr 627, Pag. 5

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Como dizíamos em nosso último rodapé, cada dia mais se avoluma a facção dos que tentam acorrentar a Igreja ao carro da democracia, do mesmo modo que se tentou acorrentá-la ao carro do totalitarismo.

Trata-se de uma facção cujo catolicismo, conforme disse o Santo Padre Pio X na Carta Apostólica sobre Le Sillon, “só se acomoda com a forma democrática de governo, que julga ser a mais favorável à Igreja, e como que se confundindo com ela” e que, portanto, “enfeuda sua religião a um partido político”.

A Igreja sempre deixou às nações o cuidado de se darem o governo que consideram mais vantajoso para seus interesses. O que tanto Leão XIII quanto Pio X afirmam é que há erro e perigo em enfeudar, por princípio, o catolicismo a uma forma de governo, erro e perigo que são tanto maiores, diz Pio X, quando se sintetiza a religião com “um gênero de democracia cujas doutrinas são erradas.”

Desprezando o que afirma a Igreja quanto a não haver entre as várias formas de governo nenhuma que seja em si mesma repreensível, desde que nada contenha que repugne à doutrina católica (Encíclica Immortale Dei), querem esses inovadores modernistas que o que não for democracia, (e sabe Deus o que entendem por democracia) não passe de “tirania”, de “despotismo'”, de “absolutismo próprio do Estado farisaicamente cristão” ou de reacionarismo ou “obscurantismo medieval”. Por outras palavras, o que não for democracia será ou traste velho e imprestável ou pura e simplesmente totalitarismo.

* * *

Não pode ser maior a confusão de conceitos, pois vemos no totalitarismo a corrupção em alto grau das três principais formas de governo, isto é, da monarquia, da aristocracia e da democracia. Com efeito, há no totalitarismo a tirania de um Hitler, a oligarquia das “cliques” do Palácio de Veneza ou do Kremlin, e a demagogia da Cervejaria de Munich ou do governo de soldados, marinheiros e camponeses. Não esconde o totalitarismo suas pretensões socialistas e igualitárias.

Julgamos, portanto muito oportuno, continuando nosso esforço em favor do esclarecimento das ideias, num mundo em que elas se acham em constante delírio, transcrever hoje o que a respeito das formas de governo se acha no livro “Du Pouvoirdo Padre Raboisson:

 

Estamos em presença das diferentes formas que podem revestir o Poder: quais são elas? Quais as divisões lógicas que delas se podem fazer? Haverá uma preferível às outras e qual será?

É em torno dessas diversas questões que vamos estudar as doutrinas dos filósofos e dos políticos.

Montesquieu distingue três espécies de governos:

“Há três espécies de governos, diz ele: o republicano, o monárquico, o despótico”.

“Suponho três definições ou antes três fatos: um, que o governo republicano é aquele em que o povo em corpo, ou somente uma parte do povo, tem o poder soberano; o monárquico, aquele em que um só governa, mas por leis fixas e estabelecidas; ao passo que no despótico, um só sem lei e sem regra, arrasta tudo por sua vontade e por seus caprichos” (Esprit des lois, liv, II, cap. I).

De Bonald acha “mais metódica” a divisão “em dois gêneros”, monárquico e republicano, subdivididos, “cada um em duas espécies”.

Eis aqui, entretanto, a divisão de Aristóteles:

“Sendo coisas idênticas o governo e a constituição e sendo o governo o mestre supremo da cidade, torna-se necessário absolutamente que esse mestre seja ou um único indivíduo, ou uma minoria, ou enfim a multidão dos cidadãos. Quando o mestre único, ou a minoria, ou a maioria governam no interesse geral, a constituição é pura necessariamente; quando eles governam em seu próprio interesse, seja no interesse de um só, seja no interesse da minoria, seja no interesse da multidão, a constituição é corrompida, porque de duas coisas uma, ou os membros da associação não são verdadeiramente cidadãos, ou se eles o são, devem ter sua parte na vantagem comum.

Quando a monarquia ou governo de um só tem por objeto o interesse geral, dá-se-lhe vulgarmente o nome de realeza. Com a mesma condição, o governo da minoria, uma vez que ela não seja reduzida a um só indivíduo, vem a ser a aristocracia, assim chamada (...) porque o poder se acha nas mãos de gente de bem, seja porque o poder não tem outro objeto senão o maior bem do Estado e dos associados. Enfim, quando a maioria governa no sentido do interesse geral, o governo recebe, como denominação especial a denominação genérica de todos os governos, e se chama república.

“Essas diferentes denominações são bastante justas. Uma virtude superior pode ser o quinhão de um indivíduo, de uma minoria; mas uma maioria não pode ser designada por nenhuma virtude especial, excetuada entretanto a virtude guerreira, que se manifesta sobretudo nas massas: a prova é que no governo da maioria, a parte mais poderosa do Estado é a parte guerreira e todos aqueles que tem armas são cidadãos. (...)

“As corrupções desses governos são: a tirania, para a realeza; a oligarquia, para a aristocracia; a demagogia, para a república. A tirania é uma monarquia que tem por objeto unicamente o interesse pessoal do monarca; a oligarquia tem por objeto apenas o interesse particular dos ricos; a demagogia, o interesse particular dos pobres. Nenhum desses governos visa o interesse geral” (Política, Aristóteles, liv. III, cap. V 1, 2, 3, 4).

Já vimos o mau humor cômico de Barthélemy Saint-Hilaire, evidentemente vexado com o fato do mestre citar a monarquia entre os governos puros, vimo-lo esforçar-se por destruir a distinção tão real de Aristóteles entre a monarquia e a tirania, e por isso pedir socorro a Hobbes – sim, a Hobbes, o apóstolo da tirania - a fim de estabelecer a identidade da tirania e da monarquia; enfim, ao cabo de onze anos apanhar em Voltaire uma pilhéria e dela fazer uma arma. Será fácil inverter sua observação pueril, e mostrar-lhe que sendo a distinção e a razão as mesmas para as três espécies de governo enumerados por Aristóteles, segue-se que a república e a demagogia não tem distinção real, que estas são também duas irmãs, segundo a palavra de Voltaire, citada por Saint-Hilaire, tão semelhantes uma a outra que é difícil distingui-las.

Fora dessa observação ab irato do tradutor de Aristóteles, nada li que tenda a infirmar a divisão desse filósofo. É fácil, aliás, ver que ela se acha fundada sobre os fatos e na razão; enfim, ela nos parece absolutamente científica e certa e a conservamos.

Quanto às formas mistas, delas não falaremos; não podemos prejulgar aqui o estudo que faremos mais tarde; notemos apenas que todos os desvios, alterações, corrupções, como se quiser denominá-los, das formas puras do poder, são formas absolutas, que excluem inteiramente elementos outros aquele que se tornou despótico. A tirania exclui os elementos aristocráticos ou democráticos, a oligarquia exclui o elemento democrático, e a demagogia exclui o elemento aristocrático. As formas boas, pelo contrário, monarquia, aristocracia ou democracia, admitem com justiça todos os elementos da nação a participar, em uma certa medida, das funções do Poder.

Mas eis aqui a questão mais importante e talvez a mais difícil.

Qual a melhor forma de governo?

Barthélemy Saint-Hilaire, que é republicano e tradutor de Aristóteles, em seu desejo de unir em seu coração dois objetos de seu amor, tenta fazer de Aristóteles um partidário exclusivo da república. Citemos o mestre e o tradutor:

“Atribuir a soberania, diz Aristóteles, à multidão em vez de aos homens notáveis, que se acham sempre em minoria, pode parecer uma solução equitativa e verdadeira da questão, posto que não afaste ainda todas as dificuldades. Pode-se admitir, com efeito, que a maioria, da qual cada membro, tomado à parte, não é um homem notável, se acha entretanto abaixo dos homens superiores, senão individualmente, pelo menos em massa.”

A esta altura Barthélemy Saint-Hilaire exclama: “Aristóteles expos aqui os direitos racionais da maioria tão bem quanto o poderia fazer um democrata de nossos dias (?). Montesquieu acha o povo inteiramente incapaz de tomar resoluções ativas, se bem que ele disponha de pleno discernimento; e é esse o motivo que faz Montesquieu preferir o governo representativo.”

Parece-nos que Aristóteles é bem menos afirmativo do que afeta dizer Saint-Hilaire; que, ademais ele não fala dos direitos, mas das capacidades da minoria; que enfim sempre se esquece que para Aristóteles, como para todos os pagãos, a democracia não passava de uma aristocracia, pois que entre eles os escravos, bem mais numerosos, não eram contados no número dos homens.

“Quem nos livrará dos gregos e dos romanos!” (...)

Vamos pedir ao Sr. Laboulaye que se encarregue da missão, para acabar com todos os sofismas tirados dos exemplos da antiguidade.

Em política, como nas artes, diz ele, será sempre útil estudar a antiguidade, será sempre pueril e perigoso imitá-la.

“Entre os gregos (Aristóteles considerava os demais povos como bárbaros), a sociedade se dividia em homens livres e em escravos. Estes últimos não eram mais que instrumentos vivos, que animais domésticos. A lei não os conhecia. (...)

“O artesão, para Aristóteles, não passava de um escravo sob um outro nome; servia o público; jamais em uma República perfeita far-se-á um cidadão de um operário (Aristóteles, liv. III, passim). As pessoas de lazer, os proprietários que vivem de sua renda e do trabalho de seus escravos, eis o elemento ativo da cidade. O resto é feito para obedecer. A mais democrática das repúblicas gregas não passa de uma estreita aristocracia.

“Tal é a concepção geral das repúblicas gregas; a mesma ideia reina em Roma... Cícero (em sua República) nada faz senão copiar Políbio e misturar Aristóteles com Platão. Os romanos são bem maiores administradores que os gregos... mas sua noção da liberdade é a mesma. A teoria não dá um passo adiante.

Entre os gregos e os romanos, o Estado se assemelha apenas em aparência aos nossos governos modernos. Há um abismo entre as duas sociedades.

“É pouco necessário julgar essas antigas constituições, elas representam para nós somente um interesse de curiosidade; temos outras necessidades e outras idéias...

A imitação da antiguidade só servirá, portanto, para nos perder; nossos pais disso fizeram rude experiência quando certos legisladores inábeis tentaram fantasiá-los ora em espartanos, ora em romanos; mas talvez nos reste desse antigo fermento mais do que comporta nossa sociedade.”

Portanto os exemplos da antiguidade, tanto quanto a escolha de Aristóteles, se é que ele a fez, nada provam absolutamente. (...)

São Tomás, em seu opúsculo De regimine principum, consagra quatro capítulos de seu primeiro livro a demonstrar que a monarquia é preferível às outras formas; é verdade que não estranha que acrescentou a esse opúsculo um quarto livro, quase todo ele cheio da apologia das repúblicas (provavelmente Tolomeu de Lucques; outros o atribuem a Egídio Colona, geral dos Agostinianos, que escreveu, ele próprio um livro De regimine principum para Felipe o Belo, seu antigo aluno).

Notemos apenas um dos argumentos de São Tomás, que parece ter certo valor; ele enche todo o capítulo V desse primeiro livro e demonstra que a tirania é bem mais frequente e mais perigosa nos governos de muitos que no governo de um só, e que este é, por conseguinte, preferível.

Bossuet em sua “Política da Sagrada Escritura”, de Maistre em seu “Ensaio sobre o princípio gerador das sociedades modernas”, e de Bonald em sua “Teoria do Poder”, se empenharam em demonstrar também que a monarquia é preferível.

Quanto a nós, de acordo com o que já dissemos, apoiando-nos, aliás, sobre uma passagem do próprio Montesquieu, acreditamos que uma resposta particular não pode ser dada a uma questão tão geral. Nada temos nem em São Tomás, nem em Bossuet, nem no conde de Maistre, nem no visconde de Bonald que estabeleça a superioridade absoluta da monarquia; como nada encontramos nem em Aristóteles, nem em Cícero que prove a excelência exclusiva da república ou da aristocracia.

Portanto, a questão deve ser formulada de um modo particular se se deseja uma resposta particular; e então ela se reduzirá em saber se, dadas tais e tais circunstâncias, uma forma de governo é certamente preferível, e qual será ela.

Se se deseja uma resposta geral, ela não pode ser senão esta: em si, a monarquia, a aristocracia, a república nada tem que seja oposto à noção de sã moral e racional do governo; essas três formas são portanto todas boas; mas, na espécie, o caráter do povo, as influências de raça, de clima, de solo, seu temperamento, sua constituição resultante dos fatos de sua história, tornam tal ou tal forma ou certamente preferível ou a única boa.

Note-se bem que não pretendemos invalidar o que disseram São Tomás, Bossuet, de Maistre e de Bonald sobre a excelência da monarquia; acreditamos simplesmente que essa excelência não é absoluta, e que seria necessário que ela o fosse para que se pudesse dar suas opiniões como resposta geral à questão aqui estudada; não lhes é possível afirmar senão uma superioridade relativa, que se pode tornar uma inferioridade verdadeira na espécie, por causa dos numerosos elementos que vem concorrer à solução e mudar as relações.

De resto a legitimidade dessa resposta resulta do que havíamos dito precedentemente, e que será supérfluo demonstrar de novo.

Mas a essa questão da melhor forma de governo se liga uma outra: é aquela da imperfeição necessária de todo governo. Achar-se-ão sempre com facilidade as queixas e as acusações a serem formuladas contra os melhores governos, porque são estes sempre instituições humanas, necessariamente defeituosas em algum ponto.

“A harmonia social se acha sujeita à lei do temperamento, diz de Maistre, como a harmonia propriamente dita na clave geral. Executai rigorosamente as quintas e as oitavas desafinarão, e reciprocamente. Sendo inevitável a dissonância, em lugar de a escorraçar, o que é impossível, necessário se torna temperá-la, distribuindo-a. Assim, de um lado e de outro o defeito é um elemento da perfeição possível”.

Quando, portanto, nos perguntam qual é a melhor forma de governo, será apenas necessário dizer que não se trata de achar um governo sem defeito e sem abuso possível; e a questão deveria ser antes formulada do modo seguinte:  achar a forma que for menos defeituosa. O importante é, aliás, que esses defeitos não sejam tais que destruam o que constitui a noção essencial do bom governo, isto é, do governo apto a conduzir a sociedade ao seu fim. E é de acordo com este princípio que estabelecemos nossa síntese.”

Nota deste site: Consulte-se a respeito do assunto a última obra escrita pelo Prof. Plinio "Nobreza e elites tradicionais análogas" (1993), Parte II, Apêndice III - As formas de governo à luz da Doutrina Social da Igreja: em tese - in concreto


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