Plinio Corrêa de Oliveira
Nova
et Vetera
Legionário, 25 de junho de 1944, N. 620, pag. 5 |
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“No estado de evolução e de consciência de si mesmas a que chegaram as sociedades modernas, uma discriminação social ou política em favor da Igreja, ou a outorga de privilégios temporais a seus ministros ou a seus fiéis, ou uma política de clericalismo, seriam precisamente de natureza a comprometer, e não a ajudar, essa missão espiritual”. Isso disse Maritain, o “Mestre”. Um outro “Mestre”, Blaise Pascal, levantou em seu tempo a questão do espírito geométrico e do “esprit de finesse”. Por uma coincidência interessante, Blaise Pascal era jansenista... E por uma coincidência não menos notável, a Igreja declarou, contra a opinião desses mesmos jansenistas, que o livro “Augustinus” de Jansênio (o “Mestre por excelência) devia ser interpretado segundo seu sentido natural e não segundo a possível intenção que o autor pudesse ter ao escreve-lo. E a Santa Sé foi mais longe: afirmou que o sentido natural era o que traduzia a intenção de Jansênius. E assim foi dado o golpe de misericórdia aos sofistas de Port Royal. * * * Ao trecho citado de Maritain, como aliás a tudo mais que diz a respeito das relações da Igreja e do Estado em seu livro “Direitos do homem”, além de toda a documentação que já publicamos, contrapomos hoje a Carta Apostólica dirigida pelo Santo Padre Pio X ao Episcopado da Bolívia, quando o governo desse país deixou de reconhecer oficialmente o Catolicismo como religião do povo boliviano, bem como extinguiu a imunidade eclesiástica judiciária, “privilégio concedido à hierarquia católica” pela sua antiga constituição. O documento faz também referência aos direitos da Igreja sobre o matrimônio, e repele o chamado “casamento civil”, assunto sobre o qual um jurista “católico” não há muito tempo dizia, entre nós, que o Santo Padre Leão XIII havia posto uma pedra em cima... * * * Longe de considerar as leis bolivianas de separação da Igreja e do Estado como a base ideal sobre a qual deve ser erigido agora uma “sociedade vitalmente cristã”, Pio X as classifica como “uma injúria para a Igreja, um entrave aos bons costumes, e à virtude e um recuo no verdadeiro e salutar progresso das nações dos povos”. Vejam bem: “Um recuo no verdadeiro e salutar progresso das nações e dos povos”. Ou terá a Igreja visto o assunto sem o necessário “esprit de finesse”? * * *
Passemos ao texto integral dessa Carta Apostólica: “A aflição que Nos causaram recentes amarguras Nos levou a Nos expandir junto de vós, na esperança de aliviar Nossas inquietudes e de achar consolo na vossa pátria, como em uma nação bem conhecida da religião. Pelo contrário somos informados que também nesse país, e com uma audácia que não cede a ninguém, os cidadãos que gerem a coisa pública e cujo dever é de também favorecer o bem espiritual, suscitam embaraços íntimos sem reserva nem medida e com isso agravam Nossas inquietudes. Essa nação que, em sua Constituição, reconhecia unicamente o culto católico como culto público, não hesita hoje em sancionar a liberdade dita dos cultos e com isso permitir a prática de religiões falsas, indo até a abrogar o capítulo que dizia respeito à religião do país. Ademais, justamente respeitosa até então do caráter sagrado, ela concedia aos clérigos imunidade eclesiástica judiciária; ao passo que agora, por uma lei apresentada às assembleias públicas, ela declara não mais desejar reconhecer esse privilégio concedido à hierarquia católica. Enfim, o casamento cristão, do qual ela honrava o caráter e a dignidade; o direito natural e próprio da Igreja sobre o matrimônio dos cristãos, que ela cercava de respeito, são objeto de iníquas tentativas pelas quais ela se esforça por usurpar à Igreja esse poder exclusivo, para conceder, impor mesmo, o casamento dito civil. Certamente, vós e vosso povo não deixais de ver como essas leis são uma injúria para a Igreja, um entrave aos bons costumes e à virtude, e um recuo no verdadeiro e salutar progresso das nações e dos povos. Temos a convicção de que não omitistes nenhuma providência para evitar esses males à pátria e à religião, e que presentemente, seja coletivamente seja individualmente, tendes protestado contra essas leis e esses projetos. O dever de Nosso cargo que é de reger todas as nações, também Nos obriga a velar com cuidado para que a comunidade cristã não sofra de maneira alguma com quaisquer dessas tentativas ou obras. Cabe-Nos, portanto, em primeiro lugar recordar os direitos santíssimos da Igreja, de os confirmar sem temor de qualquer potência que seja, de os recomendar e proteger. Como está em jogo o interesse supremo do público e dos particulares, e como por esse meio pode ser estancada a fonte de males gravíssimos para a sociedade, e para a família, cremos sobretudo dever expor a noção do matrimônio cristão, tanto mais que ela parece ser ignorada e tem sido substituída por erros falaciosos por parte dos que se acham encarregados do governo. Seria necessário, com efeito, que tivessem olvidado o caráter sagrado do matrimônio cristão e estivessem imbuídos de opiniões errôneas, aqueles que, propondo leis cheias de ciladas, se esforçam por ocupar como senhores o terreno reservado do casamento. É tido, com efeito, para o povo cristão, sem nenhuma dúvida possível, que o matrimônio, instituído por Deus como uma função da natureza, foi elevado à dignidade de Sacramento por Jesus, Salvador e Redentor do gênero humano; de sorte que o casamento propriamente dito dos cristãos não se separa da noção de Sacramento. Ora, a administração dos Sacramentos, o direito que os rege, como a toda outra coisa sagrada, se acham sob o poder da Igreja, verdade esta mais clara que o dia, e é porque as leis sobre o casamento, longe de ser da alçada do governo civil, são do domínio da Igreja e dela somente. Querer portanto legiferar sobre o casamento de cristãos, da parte daqueles que presidem os negócios civis, é de modo absoluto atacar o direito de outrem e praticar um ato viciado de nulidade. Por conseguinte, os cristãos que ousassem contratar o casamento civil não fariam senão um simulacro de casamento, não receberiam o sacramento, único e verdadeiro casamento, e obteriam injustamente os efeitos ditos civis, visto que seu princípio é nulo e de nulo valor. Nestas condições, em face dessa injustiça e desse sacrilégio, Nós não podemos deixar de Nos afligir, de deplorá-los, de reprová-los e de vindicar, quanto esteja em nosso alcance, os direitos santíssimos da Igreja, lesados por um governo que se dá o nome de católico. Não perdemos, entretanto, toda a esperança, confiando no apoio e no socorro de Deus, e queremos acreditar que o governo da Bolívia, inspirando-se em melhores conselhos, dará a cada um o que é seu: ao Estado o que é do domínio civil, a Nós e à Igreja o que é do domínio sagrado. Possa ele compreender e se persuadir que a prosperidade pública decorre da prática da justiça para com a religião, e que o respeito das leis santas é o mais seguro penhor do respeito das leis civis. Quanto a vós, Veneráveis Irmãos, que de modo imediato sois responsáveis pela nação, Nós vos recomendamos conservar o espírito atento tanto ao que lhe pode ser salutar quanto ao que lhe pode ser nocivo. O que lhe pode ser salutar, trabalhai por firmá-lo e desenvolvê-lo; o que lhe poderá ser nocivo, procurai energicamente afastá-lo, por vossa influência, vosso zelo e vossas orações. Como penhor de graças celestes e testemunho especial de Nossa benevolência por vós e pela república da Bolívia, Nós vos concedemos no Senhor e de todo o coração a benção apostólica. Dado em Roma, junto de São Pedro, a 24 de novembro de 1906, 4.º de Nosso Pontificado. PIO X, Papa |