Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
O Estado vitalmente cristão

 

 

 

 

 

Legionário, 21 de maio de 1944, N. 615, pag. 5

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Damos hoje aos nossos leitores a crítica e discussão das doutrinas esposadas pelos chamados “católicos” liberais no que diz respeito às relações entre o poder espiritual e o poder temporal, transcrevendo o que sobre este assunto se acha no “Dictionnaire Apologétique de la Foi Catholique” de A. D’Alés.

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“Precisemos o que entendemos por Liberalismo, isto é, qual o seu significado condenado e condenável. Consiste na negação mais ou menos acentuada da dependência do homem para com Deus, ou para com aqueles que participam de sua autoridade soberana; é a ruptura mais ou menos completa com a ordem desejada e estabelecida por Deus.

Na ordem social e política, o liberalismo tende à libertação da sociedade do império de Deus, de Jesus Cristo e de sua Igreja.

O liberalismo, que afirma a independência do Estado com relação a Deus, nunca foi professado, que eu saiba, por nenhum católico.

Deus é Senhor das sociedades como dos indivíduos e tanto os governantes quanto os governados estão sujeitos à lei moral e natural de que Deus é o autor. Os chefes dos povos estão sob sua dependência, assim como os seus súditos. A lei natural tem preceitos que ligam os príncipes e os súditos, não sendo permitido aos primeiros dar ordem injustas, como não é permitido aos segundos deixarem de se sujeitar às ordens justas de seus chefes. A razão mesma não é suficiente para demonstrar que o príncipe, não só como indivíduo, mas como príncipe está sujeito a Deus e às ordens que Ele lhe dá pela voz da natureza da qual é autor? Se assim não fosse, seria preciso dizer que um soberano pode em consciência, obrigar seus súditos a atos que estes, em consciêncla, não podem praticar.

Mas não existiam e não existem ainda católicos que afirmam justamente que o soberano temporal (um ou coletivo) está obrigado à lei natural nos seus atos, mas que, como soberano não está sujeito à lei cristã ou sobrenatural, com o pretexto de que o poder civil, sendo uma instituição de ordem puramente natural, está totalmente separado da ordem sobrenatural e é completamente independente dela? Ao Estado, dir-se-á, o domínio da razão e da natureza; à Igreja, o domínio da fé e da graça. Nenhum soberano, nos seus atos de soberano, é obrigado a levar em conta a Revelação. Ele pode legislar não somente sem ter os olhos sempre voltados para as leis sobrenaturais enunciadas pelo próprio Deus, como ainda, de modo contrário a essas leis que, se obrigam o soberano como indivíduo, não o obrigam em sua qualidade de soberano; de sorte que – coisa absurda – um príncipe não poderia legitimamente se subtrair individualmente a um preceito sobrenatural, mas teria o direito de promulgar uma lei em oposição com esse mesmo preceito.

No fundo, é essa a consequência que decorre dessa espécie de liberalismo muito bem definido pelo ilustre Cardeal Dechamps: “É, diz ele, a escola política que pretende assentar toda ordem social sobre a ”Declaração dos direitos do homem“ sem absolutamente cuidar em hipótese alguma, de saber se existe uma lei positiva para o gênero humano”. Ou melhor, “É a escola política dos que não reconhecem senão uma lei suprema para a ordem social: a razão”.

É suficiente expor uma tal teoria para fazer-lhe justiça. Como admitir que Deus, autor da lei natural e autor ao mesmo tempo de uma lei acrescentada à lei natural, não tenha desejado que essa segunda lei, suficientemente promulgada, não obrigue reis e povos, como a própria lei natural? Como não teria Deus ordenado à um príncipe de não obrigar seus súditos a alguma cousa contrária ao que lhes é proibido pela lei cristã, e de não lhes proibir o que essa mesma lei lhes exige? A própria lei natural não prescreve aos povos e a seus chefes, como aos indivíduos, a obrigação de se submeterem às ordens positivas dadas por Deus, se essas ordens são justas? É difícil compreender como poderiam certos católicos negar a dependência do poder civil para com Jesus Cristo e sua lei, como se essa dependência não estivesse fundada na coesão necessária estabelecida livremente por Deus entre a ordem natural e a ordem sobrenatural: “necessariam illam cohœrentiam quæ Dei voluntate intercedit inter utrumque ordinem qui tum in natura, tum supranaturam est” (Allocut. Pio IX, 9 de junho de 1862).

Afirmar que as nações não são obrigadas a professar, pela mesma razão que os particulares, os princípios da verdade cristã; que povos incorporados à Igreja desde que nasceram podem legitimamente, depois de uma profissão quatorze vezes secular de Cristianismo, abdicar o Batismo nacional; eliminar de seu seio todo elemento sobrenatural, e se colocar nas condições do que julgam ser o direito natural; enfim, que as gerações seguintes possam aceitar em todo ou em parte esta obra de descristianização legal e social, não como uma necessidade, mas como um progresso real dos tempos novos: eis uma doutrina contra a qual se levantam, tanto a tradição mais firme e mais seguida, quanto o bom senso como acabamos de ver, porque o Criador, que fez o homem essencialmente social, não pode querer que a sociedade humana seja independente dEle.

Santo Agostinho escrevia a um dignitário do Império Romano: “Sabendo que sois um homem sinceramente desejoso da prosperidade do Estado, eu vos peço que observeis como, pelo ensino das Sagradas Escrituras, é certo que as sociedades públicas participam do dever dos simples particulares e não podem encontrar a felicidade senão na mesma fonte... Diz o rei profeta: ‘Bem-aventurado o povo de que Deus é o Senhor’, ‘Beatus populus cujus Dominus Deus ejus’; eis o voto que devemos formar em nosso interesse e no interesse da sociedade de que somos os cidadãos; porque a Pátria não poderia ser feliz em outra condição que o cidadão individual, porque a cidade nada mais é que um certo número de homens reunidos sob uma mesma lei” (Epist. CLV, ad Macedonium, 7 e 9, P. L., XXXIII, 669-670).

Quando, depois de três séculos de perseguições, os príncipes e com eles os poderes públicos entraram na Igreja e logo se aplicaram em purificar a lei das imundícies pagãs, disse Santo Agostinho: “Assim como tinham feito a sua autoridade servir ao triunfo do erro, reconheceram que ela deveria ser daí por diante a auxiliar da verdade”.

Sem, dúvida, vários deles, muitos habituados aos processos do cesarismo pagão, desde o início mudaram em opressão a sua legítima proteção e algumas vezes (ordinariamente em favor da heresia e a pedido de bispos heréticos) procederam com um rigor que não é do espírito do Cristianismo; mas encontrou-se então na Igreja homens de fé e coragem, como os Hilários, os Martinhos, os Atanásios e os Ambrósios, para chamá-los ao espírito de mansidão cristã, para repudiar o apostolado da espada, para afirmar bem alto que a convicção religiosa não se impõe nunca pela força, para proclamar enfim que o Cristianismo, assim como se propagara apesar da perseguição dos príncipes, podia também viver sem o seu favor e não deveria se enfeudar em nenhuma tirania. Mas protestando contra os excessos e abusos, condenando medidas intempestivas e pouco inteligentes, algumas vezes mesmo, atentatórias às regras da disciplina sacerdotal, nunca nenhum desses grandes doutores duvidou que não fosse dever das nações e de seus chefes fazer profissão pública da verdade cristã, de conformar com ela seus atos e suas instituições e mesmo de proibir por leis, sejam preventivas, sejam repressivas, segundo o tempo e o estado dos espíritos, as falhas que revestiam um caráter de impiedade patente, ou que traziam a confusão e a desordem. no seio da sociedade civil e religiosa.

Escutemos o que Santo Agostinho dizia àqueles que reclamavam o regime puro e simples da liberdade: “Os reis, enquanto reis, obedecem ao preceito de servir a Deus, se mandam o bem e proíbem o mal nos seus Estados, não somente quanto às coisas da sociedade humana, mas ainda quanto às da religião divina. Em vão direis: que se nos deixe a nosso livre arbítrio. Por que não pedis a mesma licença com relação ao homicídio, o roubo e toda sorte de infâmias que são reprimidas por leis certamente justas e salutares?” (Contra Cresconiam, III, LC, 15E, P. L. XLIII, 527).

Em uma de suas cartas ao Conde Bonifácio, acrescenta: “Uma coisa é para o príncipe servir a Deus em sua qualidade de indivíduo, outra em sua qualidade de príncipe. Como homem, ele o serve vivendo fielmente, como rei promulgando leis religiosas e sancionando-as com vigor conveniente. Os reis servem ao Senhor enquanto reis quando fazem pela sua causa o que só os reis podem fazer” (Epist. CXXXV, ad comtem Bonifacium, 19, P.L. XXIII, 801). E ainda mais: “Chamamos felizes os Imperadores que põem seu poder principalmente ao serviço da majestade divina pelo acréscimo de seu reino e de seu culto” (De Civitate Dei, V, XXIV, P.L., XLI 171).

O Cardeal Pie fez justamente observar que os cânones dos Concílios, os decretos e as Cartas dos Papas, as capitulares dos príncipes continuaram a mesma linguagem. Nessa questão, é impossível estabelecer entre a doutrina primitiva e a disciplina posterior da Igreja outra divergência que a que resulta da aplicação segundo diversidade de circunstâncias. Nessa matéria, como em inúmeras outras a questão de conduta deve prudentemente se combinar com a questão de princípios. Mas o direito, os princípios do Estado cristão e do príncipe cristão, da lei cristã, nunca foi contestado até estes últimos tempos e nenhuma escola seriamente católica fez entrever na sua destruição um progresso e um aperfeiçoamento da sociedade humana. Em vão se alegaria em apoio dessa doutrina, certas passagens mal compreendidas ou mal interpretadas. Encontraremos uma explicação muito clara dessa dificuldade no “Tertuliano” de Mons. Freppel (Tomo 1, A liberdade de consciência) e que se pode resumir como a reivindicação do direito comum no seio de uma sociedade que permitisse a livre profissão de todos os cultos, mesmo os mais ridículos e perniciosos; afirmação do direito essencial à verdade, como resultante da divindade do Cristianismo; esse é o duplo modo de argumentação que Tertuliano emprega sucessivamente. Se afirma com razão que não se deve obrigar ninguém a praticar um ato religioso que repugna a sua consciência; se pretende que cada homem tem pela natureza e pelas leis o poder de regular sua crença, ele não entende essa proposição a ponto de excluir a repressão de erros perigosos. O Cristianismo tem direito a uma liberdade plena e completa porque é a verdade e a própria santidade.

Essa doutrina da lei socialmente cristã encarregada de, em certos casos, dar mão forte à Igreja, ensinada pelos mais ilustres Padres, encontramo-la novamente nos documentos eclesiásticos da tradição. Ver a esses propósitos: “As lutas presentes da Igreja”, por Yves de La Brière, 1ª. série, 1909-1912; 1ª. parte, cap. VII: “Ensinamentos pontifícios e liberalismo católico”.

Em 1179, o III Concílio de Latrão (XI ecumênico), fez preceder seu anátema contra os Albigenses da seguinte declaração: “Como disse o bem-aventurado Leão, a disciplina da Igreja contenta-se com o julgamento dado pelo Padre, e não conhece penalidades sangrentas. Entretanto, ela é ajudada pelas leis dos príncipes católicos de tal modo que, muitas vezes os homens vão procurar, o remédio salutar a suas almas quando temem o suplício de que está ameaçado o seu corpo” (Actes, c 27).

As Bulas pontifícias dessa época seguramente afirmam, qualquer que seja a interpretação a dar sobre a natureza das relações entre o poder espiritual e o poder temporal, o direito da Igreja em exigir o concurso do poder secular, o direito de requerer a força das leis humanas na medida em que o exigir o bem da religião e da salvação das almas. É suficiente lembrar os famosos considerandos da bula “Unam sanctam” de Bonifácio VIII, de 28 de novembro de 1302”.


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