Plinio Corrêa de Oliveira
Nova
et Vetera
Legionário, 14 de maio de 1944, N. 614, pag. 5 |
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Continuamos a transcrição do artigo “liberalismo” do “Dictionnaire Apologétique de la Foi Catholique” de D'Alès. *** Sobrevém o Pontificado de Leão XIII, tão fecundo em Encíclicas que iluminaram as diversas partes da doutrina: entre essas Encíclicas, seguramente uma das mais belas e mais fecundas em ensinamentos é a Encíclica “Immortale Dei” sobre a constituição cristã dos Estados, publicada a 1º. de novembro de 1885. No que toca ao Liberalismo, o Pontífice, que se pode chamar doutor e pacificador, mantém a doutrina com tanta firmeza quanto os seus predecessores. Ele cita e confirma a Encíclica “Mirari Vos”, a Encíclica “Quanta cura” e o “Syllabus”, que lhe é inseparável, cuidando, ao mesmo tempo, de dissipar os mal-entendidos, de explicar as atenuações práticas que os melhores intérpretes da Encíclica “Quanta cura” tinham logo formulado sob o nome de hipótese. Elas estão completamente nestas três frases da Encíclica “Immortale Dei”: “Ninguém tem justo motivo de acusar a Igreja, seja de se recusar às concessões e acomodamentos razoáveis, seja de ser inimiga de uma sã e legítima liberdade. Com efeito, se a Igreja julga que não é permitido colocar os diversos cultos sob o mesmo pé de legalidade que a verdadeira Religião, Ela não condena por isso os chefes de Estado que, à vista de um bem a atingir ou de um mal a evitar, tolerem na prática que esses diversos cultos tenham cada um o seu lugar no Estado. É enfim, costume da Igreja de velar com o maior cuidado a que ninguém seja forçado a abraçar a Fé católica contra a sua vontade, porque, como observa Santo Agostinho: “O homem não pode crer senão de bom grado”. Ninguém pode contestar, a não ser que tenha “parti pris” ou que tenha deliberadamente rompido com a tradição católica, que há nessas atenuações que deixam intacta a doutrina (a tese) e que tomam largamente em conta as dificuldades ou impossibilidades que encontra em certas circunstancias a aplicação integral da tese (é a hipótese), tudo o que é necessário para desarmar as prevenções dos espíritos sinceros. Assim, a despeito dos sobressaltos inevitáveis, mau grado a diferença de temperamentos e a diversidade das tendências, a tempestade se acalma e pouco a pouco a paz se estabelece. Esta era a época da máxima floração dessa obra dos “Círculos católicos de operários” recrutada entre os mais valentes fiéis e que declarava altamente na primeira plana de seu programa público que tinha por princípios as definições da Igreja sobre suas relações com a sociedade civil. O liberalismo “político-religioso” tinha desaparecido como doutrina, mas subsistia, seguramente, como tendência, e se traduzia por uma disposição a exagerar as exigências da hipótese e a reduzir além do necessário os direitos públicos da Igreja e os deveres do Estado; acusava-se também o antigo regime, seja por julgamentos pouco equitativos sobre um passado onde a tese era mais honrada, seja por uma predileção especial às instituições e formas de governo que se convencionou chamar de liberais. Costumava-se muito confundir as liberdades públicas com o parlamentarismo, confusão essa das mais lastimáveis porque as sãs e sólidas liberdades públicas podem ter outra base e outra garantia que uma constituição à moda inglesa, e porque o mecanismo parlamentar - do qual estamos tendo a dolorosa experiência – pode ser marcado de um modo tirânico. Sob o império dessas causas e de mil influências diversas, abandonou-se bastante, em várias circunstâncias, a pureza da doutrina supondo ganhar muito junto dos adversários, e sobretudo junto da massa indiferente, reclamando, sem fazer as necessárias reservas, as famosas liberdades modernas e reivindicando quase unicamente para a Igreja o direito comum. Sei que para muitos tudo não passava de uma questão de “nuance” (matiz), mas quem ignora que nos discursos e na conversação a “nuance” não é sem importância? Pouco a pouco apareceram entre os católicos divisões que tiveram início nos múltiplos conflitos intelectuais, religiosos, políticos e sociais. Forma-se uma atmosfera impregnada de modernismo e democratismo, muito favorável a uma nova eclosão do liberalismo. A Encíclica “Pascendi” e a carta magistral de Pio X aos Bispos da França, assinalando e condenando o modernismo social do “Sillon”, mostram que a chaga mal cicatrizada se reabrira toda sangrenta. Não quero me estender, mas é bom citar alguns trechos significativos. Assim, no “Bulletin de la Semaine”, de 12 de julho de 1911, um homem que desempenhou um papel importante no movimento da vida político-religiosa de nossa época, George Fonsegrine, propunha uma teoria que não parecia muito diferente dos primeiros liberais: “A Igreja não pode admitir nem a liberdade do erro, nem a indiferença, nem a neutralidade; Ela tem o dever de proclamar a verdade e de assinalar o erro, mas esse dever é completamente espiritual. Sua autoridade não poderia ter ação senão sobre seus filhos; não pede às potencias da carne senão que a deixem livre, livre para ensinar segundo seus fins próprios e segundo sua constituição, e de a proteger contra aqueles que quiserem lhe tirar essa liberdade de ensino, de pregação e de disciplina espiritual. O Estado deve proteger os cidadãos católicos como a todos os outros, lhes assegurar como a todos os outros as condições materiais de um desenvolvimento espiritual em que ele não entra e nem pode entrar”. Tudo isso não é bem novo: é a tese rebatida do direito comum. M. Fonsegrive observa, não sem melancolia, que essa teoria “tem o grande defeito de não ter sido sustentada por nenhum teólogo católico autorizado”. É um inconveniente grave, com efeito; mas o que é muito mais grave, é que a Igreja ensina e impõe uma doutrina completamente diferente. Um outro escritor católico, historiador de grande valor, membro do Instituto, Imbart de La Tour, formulou no “Bulletin de la Semaine” (2, 8 de agosto e 20 e 27 de dezembro de 1911, 10 e 17 de janeiro de 1912), a propósito de um livro do Pe. Laberthonnière, e numa resposta extensa às críticas feitas em Études, 5 de outubro de 1911, pelo Pe. Yves de La Brière, uma doutrina que nos conduz novamente para os dias em que o liberalismo religioso doutrinário se afirmava do modo mais nítido. Em seus diversos artigos, o sábio professor é adversário decidido da tese tradicional, sancionada diversas vezes pelo Magistério Infalível. Seu requisitório hábil e cortês não é isento de paixão, ainda que geralmente comedido, se pode surpreender em mais de um lugar um ardor que se enquadra mal com a gravidade requerida pelo historiador ou escritor que penetra no campo da Teologia. - M. Imbart de La Tour não é o primeiro; seu manifesto - posso também lhe dar esse nome -, é um acontecimento no mundo do pensamento católico, porque é a expressão eloquente, raciocinada e sábia de um grupo numeroso de moços que parecem ter esquecido muito e aprendido muito pouco. As velhas discussões suscitadas pelo “Avenir” são de novo travadas. Há alguns anos, elas readquirem vida e calor. Não acuso ninguém nesse particular, quer de desprezo, quer de indiferença pela palavra dos Soberanos Pontífices; mas não deixo de ter a firme convicção que doutrinas condenadas pela Encíclica “Mirari Vos”, de Gregório XVI, pela Encíclica “Quanta cura”, de Pio IX, pela Encíclica “Immortale Dei”, de Leão XIII, acham-se hoje renovadas nas publicações ou discursos feitos em nome e nos interesses da Religião. Temos, portanto, o dever imperioso de dizer a verdade e de expor em sua integridade, sem exagerá-la e sem diminuir, a doutrina tradicional e católica. É o que vamos fazer depois de ter consagrado algumas linhas ao que se pode chamar de Liberalismo econômico. Nota sobre o liberalismo economico A economia social é, bem tomada a coisa, “a ciência das leis que devem governar a atividade humana, na ordem dos interesses materiais da sociedade”. O socialismo inscreve no início de seu programa: propriedade coletiva e nacional dos instrumentos de trabalho, administração das forças econômicas exercida diretamente pelo Estado, representando a democracia. A escola católica e tradicional procura a solução da questão social na liberdade individual e corporativa, ajudada pelo Estado, inspirada pela Igreja, pela justiça e pela caridade cristã. A escola liberal tem divisa: liberdade individual absoluta na ordem econômica; abstenção do Estado. O liberalismo econômico aplica na ordem dos interesses materiais o postulado da liberdade, tão caro a todos os liberais. Todos os males, provém das restrições impostas à liberdade. A liberdade liberta de todos entraves é o único elemento de progresso de harmonia e de paz social. Os partidários dessa escola gostam de repetir que o interesse pessoal levará infalivelmente o indivíduo livre a agir para o maior bem do corpo social, e que a livre concorrência é uma lei providencial de harmonia entre as diversas classes sociais. O interesse pessoal, móvel único da atividade econômica, a livre concorrência, principio fecundo de prosperidade: leis naturais produzindo necessariamente a harmonia social, eis os dogmas fundamentais da jovem escola liberal. Os primeiros, “os fisiocratas”, no século XVIII, discípulos da filosofia da Enciclopédia, de acordo com a filosofia da época, ensinaram com Quesnay, Le Trosne, Turgoi, “que o sensualismo é a base da moral e da sociedade, que as leis fundamentais da vida social decorrem das necessidades físicas do homem, que a ação do governo deve tender unicamente a assegurar a liberdade das convenções pelas quais o homem dispõe de sua propriedade, que não é necessário pedir à lei senão uma coisa: permitir aos homens tomar como único guia seu interesse pessoal. E, em tudo que não fira a liberdade de outrem: laisser faire, laisser passer. Adam Smith, o chefe da escola inglesa, se inspirou nas idéias e trabalhos dos fisiocratas, para construir um sistema de economia política segundo uma ordem de liberdade natural na qual tudo se move sob a lei do interesse. Na fórmula que Lay dá do Estado, nenhuma salvaguarda é dada aos interesses superiores da moral pública, ou da proteção dos fracos. Na França, com J. B. Say, com Joseph Garnier e com De Molinari, o representante mais brilhante da escola liberal foi Bastiat. Para ele, o fim superior do homem é o prazer. Gosta de comparar a mecânica celeste e a mecânica social. Todas duas são chamadas por uma lei natural a produzir a ordem e a harmonia na sua esfera respectiva. Sob uma outra fórmula ele reproduziu a célebre fórmula dos fisiocratas: o mundo anda por si mesmo. Hoje, sob a pressão dos acontecimentos, esse liberalismo foi consideravelmente atenuado. Assim M. Leroy Beaulieu aderiu plenamente às medidas estabelecidas na Inglaterra para proteção do trabalho das mulheres e crianças. Em princípio, os economistas modernos admitem uma certa restrição à liberdade de trabalho no caso em que a higiene e a moral pública se achem gravemente comprometidas. De fato, eles rejeitam em muitos casos essa intervenção da lei. A essa facção moderada se pode ligar, em uma certa medida e com nuances muito variadas, um grupo de católicos, muito antiliberais em Religião e em política, e aos quais podemos chamar de semiliberais em economia social, que tomou o nome de Escola de Angers, e que gosta de interpretar, levando-os a um mínimo, os ensinamentos da Encíclica “Rerum Novarum”, em oposição com a Escola mais estrita, dita Escola de Liège. |