Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
A Igreja livre no Estado livre

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 7 de maio de 1944 – N. 613, pag. 5

 

Continuamos hoje a transcrição do atualíssimo artigo de G. Pascoal sobre o liberalismo publicado no “Dictionnaire Apologétique de la Foi Catholique” de A. D'Alés. 

Segundo período do liberalismo “católico”

A segunda república e o segundo império

Nova condenação pontifícia do liberalismo

“Logo depois dos acontecimentos de 24 de fevereiro todo mundo se excedeu, e é preciso convir que muitos excessos foram cometidos de boa fé, o que, aliás, eram por isso mesmo desculpáveis.

A Encíclica “Mirari Vos parecia envelhecida e sepultada sob a poeira dos anos, chegando-se mesmo a dizer que o novo Papa a tinha abandonado. O Pe. Lacordaire pensa em ressuscitar o “Avenir”. Inicialmente quer denominar o novo jornal de “Ere chrétienne” mas como se lhe observasse que esse nome não significava nada de bem novo, pois a era cristã durava há 1848 anos, o ilustre dominicano deu-lhe o nome de “Ere nouvelle”. Esse novo jornal misturava seu liberalismo muito avançado e seu amor à democracia e à república com tendências sociais, então muito raras entre os católicos. Essa mesma orientação viremos a encontrar de novo, mais tarde nos livros e na pena de nossos democratas contemporâneos do “Sillon”. Com Lacordaire, cobriam com seu patrocínio esse novo “Avenir”, dois homens de mérito desigual: o Pe. Maret que, como se sabe, acabaria no galicanismo, e o piedoso e douto Ozanam. A “Ere nouvelle” teve de início um rápido sucesso, sendo combatida ardentemente por Montalembert e pelo “Univers” onde, ao lado de Louis Veuillot, vamos encontrar o sábio Melchior Dulac cuja ciência era tão clara e segura. Seu destino foi curto desaparecendo depois de pouco tempo. (1)

Depois do golpe de estado, as divisões que tinham começado a aparecer entre os católicos acentuaram-se cada vez mais. Não é do plano deste resumo histórico fazer a narrativa dessas dissenções. É suficiente dizer que houve na Igreja da França um partido nitidamente ultramontano e antiliberal e outro semi-galicano e liberal, de um liberalismo mais ou menos acentuado. Aquele possuía um jornal “L’Univers”, e este uma revista muito bem feita, o “Correspondant”. Em redor desta revista agrupavam-se Montalembert, de Fallonx, de Broglie, Augustin Cochin, vindo-lhes dar um poderoso auxílio dois homens eminentes no Clero: o Pe. Lacordaire retirado em Lorre e Mons. Dupanloup, o ativo e valente Bispo de Orléans, já conhecido pela brochura “A purificação religiosa”, que fizera muito sucesso. No outro campo, assinalamos em primeiro lugar Monsenhor Pie, que apesar de muito jovem tinha já um lugar de relevo entre os mais ilustres pontífices da Igreja de França, e o doutíssimo Abade de Solesmes, restaurador da Liturgia Romana entre nós.

As próprias comunidades religiosas não escaparam da cisão, havendo desfalecimentos e tergiversações até nos Institutos mais fielmente adeptos da tradição. Os dois partidos, antiliberal e liberal, progrediram através de vicissitudes diversas e sobressaltos de lutas que nunca se extinguiram de uma vez. Pio IX, a quem alguns desejaram criar uma reputação liberal devido ao início de seu reinado, não deixava de patentear suas preferências pela escola antiliberal, quer em alocuções, quer por meio de atos mais significativos. Era forçoso reconhecer e não era possível dissimular que o Papa, que tinha no início de seu reinado recebido as aclamações dos entusiastas da liberdade, continuava a tradição doutrinária do Papa da Encíclica “Mirari Vos” (Gregório XVI). Os liberais não se desencorajaram e expuseram suas idéias em um livro e em um discurso.

Chamava-se o livro “Os princípios de 89 e a doutrina católica”, escrito em 1861 pelo Pe. Godard, professor do Seminário Maior de Langres. Ele estudava a declaração dos direitos do homem redigida pela Constituinte, confrontando cada artigo sucessivamente com as opiniões dos três grandes teólogos clássicos: Santo Tomás, (São Roberto) Belarmino e Suarez. Ao autor o acordo parecia completo. Por exemplo, o artigo X sobre as opiniões religiosas é aceitável pelos católicos, pois, permitindo punir as manifestações perigosas, exclui a liberdade ilimitada que é a única condenada pela Encíclica “Mirari Vos”. Alguns católicos consideram boa em si mesma a liberdade de cultos. Outros, julgam-na má em princípio, mas aceitável no interesse da sociedade civil.

O comentário dos outros artigos mostra da mesma forma que os católicos podem aceitar a Declaração dos direitos. O que os Papas condenaram foram exclusivamente as interpretações abusivas dadas pelos revolucionários. O livro, muito elogiado por Augustin Cochin, foi posto no Index, mas, por intermédio de Mons. Dupanloup, o autor obtém permissão para lançar uma segunda edição muito expurgada, que na opinião de alguns, não o foi bastante.

O discurso, ou melhor, os discursos foram pronunciados a 20 e 21 de agosto de 1863 pelo Conde de Montalembert no grande Congresso Católico de Malines. Esses discursos, em que o grande orador não quis nada deixar ao acaso da improvisação, dão a fórmula mais completa e mais vigorosa do liberalismo “católico”, tal como o compreendeu essa geração.

A importância desses discursos nos leva a deles fazermos uma breve análise. Os católicos, diz Montalembert, são geralmente fracos e impotentes na vida pública. Por que? Porque até agora não conseguiram tirar partido da Revolução que gerou a nova sociedade. Ora, é fato evidente que a democracia cresce sempre; esse dilúvio aumenta sem cessar, e para que não seja funesta, torna-se necessário corrigi-la pela liberdade, conciliar o Catolicismo com a democracia. Eis o que devem fazer os católicos e, para o conseguir, eles devem renunciar a vã esperança de ver renascer um regime de privilégios ou uma monarquia absoluta favorável à Igreja; eles não devem dar pretexto algum às desconfianças populares. A democracia reclama antes de tudo duas coisas: a igualdade política e a liberdade religiosa; quando as tiver plenamente asseguradas, poderão os católicos ensiná-la a amar também a liberdade política. Esta é necessária à Igreja, e lhe é mais vantajosa que a proteção dos reis; o Catolicismo francês foi mais brilhante no tempo do Edito de Nantes do que depois da Revolução; a Religião, impopular no tempo de Carlos X, readquiriu seu prestigio sob Luiz Felipe. E foi isso que não compreenderam certos católicos franceses imprudentemente ligados ao Império. É certo que a democracia está ameaçada de grandes perigos, como sejam, o espírito revolucionário, a inveja de toda superioridade; os progressos de uma centralização abafadora, mas a Religião pode remediar a todos esses defeitos desde que os católicos inspirem plena confiança em sua sinceridade.

O segundo discurso de Montalembert é consagrado especialmente à liberdade religiosa, de que os católicos desconfiam sem razão. Eles supõem que ela seja de origem anticristã, mas foi a Igreja que a inaugurou no tempo dos Mártires. Eles a vêm invocada sobretudo pelos inimigos da Igreja, mas foram precisamente esses últimos que a violaram contra os católicos durante a Reforma e a Revolução. Eles creem que a Igreja perderá com o regime da liberdade, mas Ela nada tem a perder; pelo contrário, foi o regime de proteção dos governos absolutos da Espanha, Portugal e Piemonte que provocou furiosas reações contra a Igreja. Ela só tem a ganhar porque na maior parte dos países europeus, os católicos sofrem principalmente de falta de liberdade. Os testemunhos de numerosos Bispos provam que esse regime não tem nada de condenável. Será necessário dar a liberdade também à heresia e ao erro? Sim, pois a perseguição feita em nome da Igreja é tão odiosa quanto a dirigida contra Ela. Não imitemos a deslealdade de certos católicos infiéis à sua promessa. O direito comum é, na hora presente, o único asilo da liberdade religiosa. A Igreja hoje é tão forte e tão viva que nada tem a temer da liberdade dada a todos. Havia aqui uma paráfrase da célebre fórmula: “a Igreja livre no Estado Livre”.

Os discursos de Montalembert causaram um enorme sucesso. São Jerônimo teria podido dizer, como depois do Concilio de Rimini, que o mundo acordava espantado de ser liberal. Roma, menos accessível às surpresas do entusiasmo, se recolheu. Ela pratica com maestria as sabias contemporizações, e ninguém melhor que Ela conhece a arte de calar ou de falar quando é necessário. Pio IX se absteve de uma reprovação pública; contentou-se de fazer chegar o seu descontentamento a Montalembert por meio de uma carta confidencial do Cardeal Antonelli. O grande orador não compareceu ao segundo congresso de Malines em 1864; mas, como o liberalismo sob essa forma mais recente não estava ainda oficialmente condenado, Mons. Dupanloup e o próprio Pe. Felix foram à Bélgica sustentar idéias semelhantes às de seu amigo, o célebre pregador de Notre Dame, cujo espírito de medida era bem conhecido, afirma que a Igreja depois de ter resistido à perseguição como à proteção dos reis, saberia também se acomodar com a liberdade, e dava como exemplo a Grã-Bretanha “onde cada grau ascendente de liberdade pública mede o progresso crescente da vida católica”; e a América, “onde cinquenta novas Dioceses, fundadas em menos de cinquenta anos, mostram àqueles que sabem ver e compreender, como a liberdade nos mata”.

Pio IX respondeu aos liberais e a seus defensores três meses depois – 8 de dezembro de 1864 – pela Encíclica “Quanta Cura” e pelo “Syllabus” a ela anexado.

A promulgação da Encíclica “Quanta Cura” e do “Sylabus” fez entrar o liberalismo “católico” em uma terceira fase.

 

Terceiro período do liberalismo “católico”

Comentários da Encíclica e do Sylabus.

Mons. Dupanloup. Concílio do Vaticano. Pontificado de Leão XIII.

Como se poderia prever, a publicação dos documentos pontifícios causou uma grande emoção nas fileiras da escola liberal. Todas as frases eram dirigidas contra ela; era a condenação de suas idéias e tendências; era impossível não compreender.

Parece que Montalembert, Cochin e Broglie achavam que se devia renunciar à luta e deixar o “Correspondant”; era o mais sábio partido a tomar; Foisset, Meaux e Falloux pensaram diferentemente e Mons. Dupanloup julga como eles.

A ação do ilustre Bispo de Orléans torna-se preponderante; a influência considerável que ele exerce, servida por todos os recursos de uma natureza rica, era ainda mais realçada pelo esplendor dos serviços prestados por uma austeridade edificante de vida sacerdotal e por um devotamento que nada fazia desfalecer. Ele se pôs à obra, e com a rapidez fulminante que caracterizava seu modo de agir, fez aparecer a célebre brochura: “A convenção de 15 de setembro e a Encíclica de 8 de dezembro de 1864”. Quase todos os Bispos católicos do mundo receberam um exemplar. Seiscentos e trinta enviaram ao autor felicitações ou ao menos agradecimentos. Pio IX, a quem Mons. Dupanloup fez homenagem de sua brochura, respondeu por um Breve muito vago, no qual, para quem sabe ler, é fácil ver uma reserva discreta. Roma não condenava esta explicação “minimalista” da verdade; ela deixava passar, e a doutrina da Encíclica e do Syllabus, intérprete de seu pensamento oficial e público, continuava em sua sólida integridade. Fazia um ano – agosto de 1863 – que o sábio Bispo de Poitiers, Mons. Pie, falando sempre como doutor, tinha exposto em sua “Terceira instrução sinodal sobre os erros do tempo”, a plena e segura doutrina. Não conheço documento em que o erro liberal esteja tão claramente exposto e tão solidamente refutado como nessas páginas do ilustre sucessor de Santo Hilário.

Ainda que as mesmas tendências de fato persistissem habilmente atenuadas, a escola liberal foi, em teoria, mais prudente e menos acentuada.

Os espíritos refletidos e que não se deixam levar pela paixão, má conselheira, voltaram a uma mais sadia apreciação de coisas. Escutemos Mons. d’Hulot que, como ele confessa com uma bela simplicidade, era partidário da tese liberal; seu testemunho é de peso: “A Encíclica de 1864... foi para vários uma prova, mas uma prova salutar. Estava em Roma acabando meus estudos teológicos quando ela apareceu e não esquecerei nunca a emoção, a surpresa e a inquietação em que me atira a leitura desse documento doutrinário. Vi claramente que havia alguma coisa a mudar na minha concepção de sociedade. Passada o primeiro momento de espanto, reli a Encíclica “Mirari Vos”, tão profundamente esquecida há quinze anos; comparei-a com a de Pio IX, e não havia dúvida possível: a tradição católica era incompatível com a teoria implicada pelo liberalismo, e para ficar fiel à primeira era preciso reformar profundamente a segunda. Não poderei apagar de minha alma a lembrança dessa evolução interior. Começada na tristeza e na desordem, ela acabou na alegria e na paz. Mas desde então me foi impossível admitir que o erro liberal nunca tivesse existido, pois, eu tinha consciência de tê-la constatado em mim mesmo e de não a ter inventado” (O direito cristão e o direito moderno. Estudo sobre a Encíclica “Immortale Dei”; Prefácio, p. XIV e XV). O distinto Prelado acrescenta, e creio que seu otimismo teria passado por uma rude prova se ele tivesse vivido até nossos dias: “Na minha opinião, o que é verdade, é que o ano de 1864 viu acabar esse erro... sobreviveu às doutrinas, apenas as tendências”.

Essas tendências eram observadas um pouco em toda parte: nos discursos, nos artigos de jornal, nas brochuras, na maneira de compreender e interpretar certos fatos importantes da história da Igreja e, de um modo especial que, não quero expor nem julgar, se declararam durante o Concílio do Vaticano”.

(1)  – Esta apreciação de G. de Pascoal sobre o Pe. Lacordaire não nega as qualidades do grande orador dominicano.