Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
Liberalismo “católico”

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 30 de abril de 1944 – N. 612, pag. 5 

 

O século XIX que se iniciara com a consolidação da Revolução Francesa por Napoleão, via, com espanto, reflorescer ao lado das grandes vitórias revolucionárias, o Catolicismo, para cuja morte definitiva a Maçonaria suscitara os horrores da Revolução.

O Catolicismo saía das perseguições mais pujante e mais forte, aprestando suas forças para combater com energia os erros sem número que a anarquia suscitara. Mas, ao lado dessa grande renovação da Fé, alguns católicos, desejosos de se tornarem benquistos aos olhos do mundo, lançavam o liberalismo “católico”, que procurava não mais converter o mundo, mas adaptar a religião às novas concepções revolucionárias.

Foi necessária a divisão de campos. De um lado, os “católicos” liberais punham ao serviço de suas doutrinas errôneas os mais brilhantes recursos naturais. De outro, os católicos ultramontanos, se bem que contando com grandes inteligências, como por exemplo Louis Veuillot, combatiam principalmente com a certeza da verdade e o grande ardor da Fé.

Toda a história do século XIX se pode resumir nessa luta gigantesca. Condenados repetidas vezes pela Santa Sé, foram os liberais pouco a pouco amortecendo a crueza de seus princípios até que o Concílio do Vaticano com a proclamação do dogma da infalibilidade acabou definitivamente com os debates em torno do assunto. Porém, seria um erro pensar que o Liberalismo “Católico” morreu. Como veremos, ele se transformou em perigosas tendências que formaram um campo fértil para a propagação do Modernismo, vigorosamente combatido e condenado por Pio X, que o chamou de heresia das heresias.

Hoje, estamos num momento semelhante ao do início do século XIX. Depois dos horrores do nazismo e do comunismo ressurgirá o Catolicismo dos escombros das perseguições vermelhas e pardas.

Mas, hoje como ontem, aparecem católicos desejosos de conciliar Nosso Senhor Jesus Cristo com o mundo, ressuscitando todos os erros rançosos do liberalismo “católico”, já tantas e tantas vezes condenados pelos Sumos Pontífices. É curioso notar que essa nova disseminação do liberalismo se apresenta em sua forma mais contundente que corresponde ao primeiro modo com que ele foi apresentado pelos “católicos” liberais.

A fim de prevenir os nossos leitores contra esses erros perniciosos, julgamos oportuno traduzir o artigo de G. de Pascoal sobre Liberalismo publicado no “Dictionnaire apologétique de la Foi Catholique” de A. D’Alis, prof. do Instituto Católico de Paris. Verão os leitores como eles estão abundantemente condenados e como estão voltando novamente à tona.

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Liberalismo – I – Posição da questão e definições – II – História do Liberalismo –III – Crítica. Conclusões. Bibliografia.

I. Posição da questão: Inicialmente, vamos circunscrever nosso campo de estudo e precisar o ponto de vista em que nos colocamos.

O Liberalismo, enquanto prega a independência da razão com relação à Revelação e a separação – não a distinção, que é verdadeira – da ordem natural e da ordem sobrenatural, reivindicando para aquela o direito de se constituir, de se desenvolver e de agir sem tomar esta em consideração, merece mais propriamente os nomes de livre pensamento, racionalismo e naturalismo.

O naturalismo de um certo número de homens reveste-se de um outro caráter. Sem discutir a possibilidade ou a existência da ordem sobrenatural e revelada e os direitos dessa ordem sobrenatural na esfera da consciência privada, eles acham que o Estado, pois que a questão da religião positiva é um assunto puramente individual, embora assegurando aos cidadãos que pertencem a um culto qualquer a liberdade de segui-lo, pode e deve exercer o sacerdócio da ordem natural e colocar a educação nacional, a legislação e toda organização social sobre um fundamento neutro, ou melhor, sobre um fundamento comum, e resolver assim o problema da vida social e do governo público prescindindo de todo elemento revelado.

Esse sistema, como se compreende facilmente, sofre uma infinidade de nuances e modificações.

Tomemo-lo sob sua forma mais atenuada e escutemos um verdadeiro mestre nesta questão delicada, o Cardeal Pie, expô-lo com grande exatidão: “Há cristãos que parecem pensar que as nações não eram obrigadas, do mesmo modo que os particulares, a assimilar e confessar os princípios da verdade cristã; que povos incorporados à Igreja desde o dia de seu nascimento podiam, depois de uma profissão de Fé doze ou quatorze vezes seculares, abdicar legitimamente o Batismo nacional, eliminando de seu seio todo elemento sobrenatural e, por uma declaração solene e sonora, colocarem-se nas condições que supõem ser o direito natural; enfim que a geração herdeira da que fizera, em todo ou em parte, essa obra de descristianização legal e social, podia e devia aceitá-la não só como uma necessidade, mas também como um progresso dos tempos novos ou ainda mais como um benefício mesmo do Cristianismo, que depois de ter conduzido os povos a um certo grau de civilização devia se prestar voluntariamente ao seu ato de emancipação, despojando-se docemente de suas instituições e leis, assim como a ama se afasta da casa quando cresce a criança. Ao mesmo tempo declararam que o direito essencial do Cristianismo não ia além de uma parte relativa na liberdade comum e na igual proteção devida a todas as doutrinas. Chegaram mesmo a pedir à Igreja que descesse aos refolhos de sua consciência e examinasse se, no passado tinha sido sempre bastante justa com a liberdade, e, em todo caso, que Ela compreendesse, que se hoje se beneficia da facilidade deixada a seus defensores, não pode, sem ingratidão e deslealdade, recusar-se a sancionar para o futuro, em toda parte e sempre, esse sistema de liberalismo pelo qual podia ainda atualmente defender a causa” (Troisième Instruction synodale sur les principales erreurs du temps présent ; Œuvres, t. v, pag. 172).

Depois disso, parece-me que poderemos definir esse liberalismo como um sistema de vida política e social, segundo o qual o elemento civil e social não provém senão da ordem humana e pode – alguns mais ousados diriam, deve – constituir-se e agir sem nenhuma relação obrigatória de dependência para com a ordem sobrenatural; é esta forma especial de naturalismo que constitui o liberalismo que esteve particularmente disseminado entre os católicos, razão pela qual se chama ordinariamente Liberalismo Católico ou Catolicismo Liberal. É ele que desejamos expor, estudar e discutir neste artigo.

O Pe. Jules Morel deu, em algum lugar, esta definição humorística do católico liberal, que não deixa de ser justa e picante: “O católico liberal é aquele que, para salvaguardar a Igreja, prefere o direito comum ao direito canônico”.

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II. História do Liberalismo — Primeiro período: “Avenir” e a condenação de Lamennais.

O catolicismo liberal nasceu da revolução de 1830 e do gênio perturbado de um grande homem, Lamennais, descontente com todos os governos em geral e com o da França em particular, se perguntará se o vaso da Igreja não aceleraria de muito sua marcha jogando ao mar os embaraços incessantes com que a sobrecarregava sua união com o Estado. Levado por um ardor que conhecia muito pouco a medida, ele se responderá pela afirmativa e junto ao novo poder, apelava somente para a liberdade: liberdade em tudo e para todos. Nada de concordatas, nada de cargos ministeriais, nada de departamento de cultos. O sacrifício poderia parecer grande, mas o que era isso em face da liberdade? Sem dúvida, haveria rudes provas a sustentar, dias penosos a atravessar; mas que alegria ser livres, nos colocarmos como defensores da liberdade pura! Que esplendor até então desconhecido receberia a religião desse pleno desprendimento terrestre! Por pouco que se tenha entreaberto a história, percebe-se bastante o entrave que o Estado impõe a Igreja. Esse regime envelhecido, decrépito, ia acabar pois uma nova era se abria. A ordem nova daria, graças à liberdade, uma potência considerável ao Catolicismo. Desde o século XVI o progresso religioso foi retardado por duas causas, a cisão entre a ciência e a Fé, e a servidão da Igreja para com o poder público; além disso, o espírito humano progrediu sem a Igreja. A união da ciência e da Fé não pode se refazer a não ser pela liberdade. Em toda parte onde se estabelece a liberdade de pensar e de escrever, manifesta-se uma tendência visível da Fé para a ciência e da ciência para a Fé; enquanto que nos outros lugares elas se separam cada vez mais. A servidão para com o poder desaparece graças às revoluções que preparam assim as vitórias futuras da Igreja.

Quanto mais a liberdade for completa, tanto mais o Catolicismo crescerá, porque possui a potência da verdade e do amor, a própria potência de Deus. O sistema antigo, tão regular e às vezes tão brilhante na aparência, foi a fonte de guerras contínuas entre os dois poderes. No sistema futuro, o povo, voltando livremente à Fé, terá um governo desprovido de todo poder sobre as idéias, e obedecerá nas coisas espirituais, exclusivamente à Igreja e a seu Chefe. A liberdade será de tal modo aliada dessa alta soberania que serão o fundamento e a condição uma da outra, e não poderão existir, nem mesmo serem concebidas separadamente. A Igreja e o Estado, portanto, não tinham mais nada a fazer a não ser darem-se adeus, reconhecendo que a união fora uma preparação evangélica, uma tutela do gênero humano, mas a minoridade estando terminada, a plenitude dos tempos ia começar.

Essas idéias, desenvolvidas por Lamennais com convicção ardente e força eloquente, entusiasmavam o grupo de espíritos de elite e de corações generosos reunidos em torno dele em “La Chênaie”. Elas inspiraram o “Avenir”, onde a idade madura do mestre era secundada pela juventude ousada, inteligente e valente de um Lacordaire, de um Montalembert. Elas não deixavam de deixar apreensivo e mesmo de espantar os antigos do santuário, mas os mais jovens, debaixo do encantamento, acompanhavam as palavras do mestre.

A decepção veio logo. Roma, para a qual se apelara, e que de certo modo fora forçada a se pronunciar, ergueu a sua voz. A Encíclica “Mirari Vos” de Gregório XVI, de 15 de agosto de 1832, foi uma bomba, mas trazia luz, porque a não ser a Encíclica “Quanta cura” de Pio IX nada era mais claro do que ela revelando o que havia no fundo dos corações. Com raras exceções, os jovens discípulos do grande homem se inclinaram e, diz uma testemunha desse tempo, no ano seguinte a escola estava dissolvida e os alunos, ao voltarem para as suas respectivas dioceses, assinavam com um espírito perfeito de Fé o ato de submissão à Encíclica exigido pelos Bispos; Lamennais fica só em “La Chênaie” abandonada.

Assim termina o primeiro período do liberalismo “católico”. E, até 1848, os católicos militantes, querendo forçar o regime de 1830 a cumprir sua promessa, dirigiram contra o monopólio universitário e em favor de uma séria liberdade de ensino, uma campanha bem concebida, que Deus deveria acabar por abençoar os esforços. Nas “Melanges” de Louis Veuillot; nas obras do Conde de Montalembert, nos discursos do Pe. Lacordaire, nos trabalhos simples, claros, de uma lógica irrefutável do grande Bispo de Langres, Mons. Parisis, pode-se ler tudo que essa defesa dos direitos da família inspirou de páginas inflamadas pela paixão sobrenatural e realçadas pelo esplendor de uma forma magnifica. É impossível negar que, no fogo e na poeira da batalha, algumas vezes houve um pouco de esquecimento dos princípios da Encíclica e que no tumulto da polêmica diária os católicos não se conservaram estritamente no terreno legal, na hipótese, como se dirá mais tarde, desviando-se para o terreno do absoluto. Foi o que confessou o mais sábio de todos, o mais firmemente teólogo, Mons. Parisis, retirando do comércio, anos depois a primeira edição de seus famosos “Cas de conscience politiques”, dando lhes uma nova edição bem diferente da antiga.

Por esse tempo, arrebenta a revolução de 1848: estamos no início do segundo período do liberalismo “católico”. (Continua)