Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et vetera
 
O poder temporal dos Papas

 

 

 

 

 

Legionário, 26 de março de 1944, N. 607, pag. 5

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Para certos autores modernos o Estado vitalmente cristão seria aquele em que, por uma diferenciação da esfera própria dos poderes, prevalecesse o regime da completa separação da Igreja e do Estado. Não mais conviria ao mundo uma “política de clericalismo”, isto é, os Estados não mais teriam o dever de ser católicos e a Igreja, para se adaptar aos novos tempos, teria que acertar o passo com as “conquistas” da Revolução Francesa. Que tais escritores sustentam essa opinião errônea pelo fato de que “nunca souberam ler” a história, veremos pelas linhas seguintes extraídas da magistral obra “Du Pape”, do ultramontano Joseph De Maistre:

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“Tendo a barbárie e as guerras intermináveis destruído todos os princípios, reduzido a soberania da Europa a um certo estado de flutuação como nunca se viu, e criado por toda a parte desertos, era vantajoso que uma potência superior tivesse certa influência sobre esta soberania; e como os Papas eram superiores em ciência e prudência, e além disso mandavam sobre todos os homens cultos que existiam naquele tempo (todo mundo sabe que a ciência estava então concentrada no Clero) a força das coisas os investiu por si mesma, e sem contradição, daquela superioridade de que então não podia dispensar-se a Europa.

O princípio veracíssimo de que a soberania vem de Deus dava além disso nova força a estas idéias antigas, e enfim se formou uma opinião quase universal, que atribuiu aos Papas certa competência sobre as questões de soberania. Esta ideia era muito sábia e valia mais do que todos os nossos sofismas. Os Papas não se envolviam com os príncipes prudentes no exercício de suas funções, e muito menos procuravam perturbar a ordem das sucessões soberanas, enquanto as coisas iam segundo as regras ordinárias e conhecidas. E só quando havia um grande abuso, um grande crime, ou uma grande dúvida, interpunha o Sumo Pontífice a sua autoridade.

Ora, nós que olhamos agora nossos antepassados com certo ar de compaixão, como saímos da dificuldade em casos semelhantes? Pela revolta, pelas guerras civis e por todos os males que resultam delas. Na verdade que não temos nisto de que nos louvar. Se o Papa tivesse decidido o processo entre Henrique IV e os da Liga, teria adjudicado o reino da França a este grande príncipe, com a obrigação de ir à Missa; teria julgado como a Providência julgou; porém as preliminares seriam um tanto diferentes.

O bom senso dos séculos que chamamos bárbaros, sabia disto mais do que o nosso orgulho crê comumente. Não é de estranhar que os povos novos que, por assim dizer, obedecem só ao instinto, tenham adotado idéias tão simples e tão plausíveis; porém é muito importante observar como estas idéias, que em outro tempo levaram após si os povos bárbaros, puderam reunir nos últimos séculos o assentimento de homens tais como Belarmino e Leibnitz.

E pouco importa aqui que o Papa tenha tido este primado de direito divino ou de direito humano, contanto que seja constante que, durante muitos séculos, exerceu no Ocidente, com consentimento e aplausos universais, um poder seguramente muito extenso. Ainda entre os protestantes há muitos homens célebres que julgaram que se podia deixar este direito ao Papa, e que seria útil à Igreja se se lhe cerceassem alguns abusos” (Pensamentos de Leibnitz, Tom. II, pag. 401).

Só a teoria seria, pois, inabalável, mas que poderá responder-se aos fatos que são tudo nas questões de política e governo?

Ninguém duvida, nem ainda mesmo os soberanos, deste poder dos Papas. E Leibnitz observa com muita verdade e com a delicadeza que lhe é própria, que quando o Imperador Frederico dizia ao Papa Alexandre II: não a vós, porém a Pedro, – confessava o poder dos Pontífices sobre os reis, e não desaprovava senão os abusos.

Esta observação pode generalizar-se. Os príncipes anatematizados pelos Papas, não contestavam senão a justiça dos anátemas, de modo que estavam constantemente prontos a servir-se deles contra os seus inimigos, o que não podiam fazer sem confessar manifestamente a legitimidade do poder.

Voltaire, depois de haver referido, a seu modo a excomunhão de Roberto de França, observa que o Imperador Otto III assistiu pessoalmente ao concílio em que se pronunciou a excomunhão. Logo, o Imperador confessava a autoridade do Papa; e é coisa muito singular que os críticos modernos não queiram conhecer a contradição manifesta em que incorrem, quando observam, todos de comum acordo, que o mais deplorável que havia nestes grandes julgamentos era a cegueira dos príncipes, que não lhes contestavam a legitimidade, e ainda eles mesmos os invocaram muitas vezes.

Porém se os príncipes estavam de acordo nisto, todo o mundo o estava também, e só deverá tratar-se dos abusos que se encontram em toda a parte.

Filipe Augusto, a quem o Papa acabava de transferir o reino da Inglaterra em herança perpétua... não publicou então “que não pertencia ao Papa dar as coroas... Ele mesmo havia sido excomungado alguns anos antes... porque tinha querido mudar de mulher. Então, havia declarado que as censuras de Roma eram insolentes e abusivas... Pensou muito diferentemente quando se viu executor de uma bula que lhe dava a Inglaterra” (Voltaire, Ensaio sobre os costumes, II, cap, I).

Quer dizer que a autoridade dos Papas sobre os reis não era contestada senão por aquele a quem castigava. Não houve, pois, nunca autoridade mais legítima, bem como nunca a houve menos contestada.

Tendo a dieta de Forchheim deposto em 1077 o Imperador Henrique IV, e nomeado em seu lugar Rodolfo, duque de Suábia, o Papa congregou um concílio em Roma para julgar as pretensões dos dois rivais; os quais juraram pelos seus embaixadores, que estariam pela decisão dos legados, e a eleição de Rodolfo foi confirmada. Então apareceu no diadema de Rodolfo aquele verso célebre: Petra dedit Petro, Petrus diadema Rodolpho.

Henrique V, depois da sua coroação como rei da Itália, fez em 1110 um tratado com o Papa, pelo qual o Imperador renunciava às suas pretensões sobre as investiduras, com a condição de que o Papa, da sua parte, lhe cederia os ducados, condados, marquesados, as terras e os direitos de justiça, de moeda e outros que os bispos da Alemanha estavam possuindo.

Em 1209, tendo-se lançado Otto de Saxônia sobre as terras da Santa Sé, contra todas as leis mais sagradas da justiça, e até mesmo contra as promessas mais solenes, foi excomungado.

O rei de França e toda a Alemanha declararam-se contra ele, sendo deposto em 1211 pelos eleitores, que nomearam Frederico II em seu lugar.

E este mesmo Frederico II, tendo sido deposto em 1228, São Luiz fez representar ao Papa que “se o imperador tinha merecido ser deposto, não o deveria ter sido senão em um concílio geral”, isto é, em outros termos, pelo Papa melhor informado.

Em 1245, Frederico II foi excomungado e deposto no concílio geral de Lyon.

Em 1335, o imperador Luiz da Baviera, que havia sido excomungado pelo Papa, enviou embaixadores a Roma para solicitar a sua absolvição e ali voltaram para o mesmo fim em 1338, acompanhados pelos do rei de França.

Em 1346, o Papa excomungou de novo Luiz de Baviera e, de concerto com o rei de França, fez nomear Carlos de Moravia, etc.

Voltaire escreveu um longo capítulo para estabelecer que os Papas deram todos os reinos da Europa com o consentimento dos reis e dos povos. E cita um rei da Dinamarca que em 1329 dizia ao Papa: “Santíssimo Padre, o reino da Dinamarca, como vós sabeis, não depende senão da Igreja romana, à qual paga tributo, e não do império”.

Voltaire continua estes seus pormenores no capítulo seguinte, e depois escreve à margem com uma erudição assombrosa: Grande prova de que os Papas davam os reinos.

Ele mesmo cita ainda em outra parte o poderoso Carlos V pedindo ao Papa uma dispensa para poder unir o título de rei de Nápoles ao de imperador.

A origem divina da soberania e a legitimidade individual conferida e declarada pelo Vigário de Cristo, eram idéias tão arraigadas em todos os espíritos, que Livon, rei da Armênia menor, enviou a prestar homenagem ao Imperador e ao Papa em 1242, e foi coroado em Mogúncia pelo Arcebispo daquela cidade.

No princípio do mesmo século, Ioanita, rei dos Búlgaros, submeteu-se à Igreja romana, e enviou embaixadores a Inocêncio III para lhe prestar obediência filial e pedir-lhe a coroa real, como seus predecessores a haviam recebido em outro tempo da Santa Sé.

Em 1275, Demétrio, expulso do trono da Rússia, apelou para o Papa como para o juiz de todos os cristãos.

E para terminar com alguma coisa talvez mais notável, recordaremos que ainda no século XVI, Henrique VII, rei de Inglaterra, príncipe bastante instruído em seus direitos, pedia, contudo, a confirmação de seu título ao Papa Inocêncio VII, que lha concedeu por uma bula citada por Bacon.

Não há nada tão chistoso como ver os Papas justificados por seus mesmos acusadores, sem que o presumam. Escutemos ainda Voltaire: “Todo o príncipe, diz ele, que queria usurpar ou recobrar um domínio dirigia-se ao Papa como a seu senhor... Nenhum príncipe novo se atrevia a chamar-se soberano, nem podia ser reconhecido pelos demais sem permissão do Papa; e o fundamento de toda a história da Idade Média é sempre que os Papas se julgavam senhores suseranos de todos os estados, sem excetuar nenhum” (Voltaire, “Ensaio sobre os costumes”, tom. III, cap. LXIV),

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Não precisamos de mais: a legitimidade do poder está demonstrada. O autor das Lettres sur l'histoire (Augustin Thierry) talvez ainda mais inflamado contra os Papas do que o próprio Voltaire, cujo ódio era, por assim dizer, todo superficial, viu-se conduzido ao mesmo resultado, isto é, a justificar completamente os Papas, julgando que os acusava.

“Por desgraça, diz ele, quase todos os soberanos, por uma cegueira inconcebível, trabalhavam eles mesmos em acreditar na opinião pública uma arma que não podia ter força senão por esta opinião. Quando ela atacava algum de seus rivais ou de seus inimigos, não só aprovavam, senão que algumas vezes provocavam a excomunhão; e encarregando-se de executar a sentença que despojava um soberano de seus estados, submetiam os seus a esta jurisdição usurpada”.

Em outra parte, cita um grande exemplo deste direito público e atacando-o, acaba de o justificar. “Parecia reservado, diz ele, a este funesto tratado (a liga de Cambray) encerrar todos os vícios. O direito de excomungar em matérias temporais foi ali reconhecido por dois soberanos; e se estipulou que Júlio fulminaria um interdito contra Veneza, se dentro de quarenta dias não restituísse as suas usurpações”. (Lettres sur l'histoire, tomo III, pag. 233).

“Eis aqui, diria Montesquieu, a esponja que se deve passar sobre todas as objeções feitas contra as antigas excomunhões”. Quanto cega a preocupação ainda aos homens mais perspicazes! Talvez seja esta a primeira vez que se argumenta da universalidade de um uso contra a sua legitimidade. E que haverá, pois, seguro entre os homens, se o costume, sobretudo não contradito, não é a fonte da legitimidade? O maior de todos os sofismas é o de transportar um sistema moderno aos tempos passados, e julgar por esta regra as coisas e os homens daquelas épocas mais ou menos remotas. Com este princípio podia destruir-se o universo, porque não há instituição alguma estabelecida que não possa destruir-se pelo mesmo meio, julgando-a por uma teoria abstrata. Desde que os povos e os reis estiveram de acordo sobre a autoridade dos Papas, nenhuma força devem ter todos os raciocínios modernos, tanto mais que a teoria mais certa vem em apoio dos usos antigos.

Lançando um olhar de filósofo ao poder exercido em outro tempo pelos Papas, pode perguntar-se por que se desenvolveu tão tarde no mundo? De dois modos pode responder-se a esta pergunta.

Em primeiro lugar, o poder pontifício, em razão de seu caráter e importância, estava sujeito mais do que qualquer outro à lei universal do desenvolvimento. E se se refletir que devia durar tanto quanto a mesma religião, não se encontrará que a sua madureza se tenha retardado. A planta é uma imagem natural dos poderes legítimos. Considerai uma árvore: a duração de seu crescimento é sempre proporcional à sua força e duração total. Todo o poder constituído imediatamente em toda a plenitude de suas forças e atributos é por isso mesmo falso, efêmero e ridículo. Isto equivaleria a imaginar um homem que nascesse já adulto.

Em segundo lugar, era preciso que a explosão, por assim dizer, do poder pontifício coincidisse com a juventude das soberanias europeias que devia cristianizar.

Recapitulemos. Nenhuma soberania é ilimitada em todo o vigor da palavra, e nem ainda o pode ser. Sempre e em toda a parte tem sido limitada de algum modo. A mais natural e menos perigosa, especialmente entre as nações novas e ferozes, era sem dúvida uma intervenção qualquer do poder espiritual. A hipótese de todas as soberanias cristãs, reunidas pela fraternidade religiosa em uma espécie de república universal, debaixo da supremacia moderada do poder espiritual supremo; esta hipótese, digo-o eu, nada tinha de repugnante, e podia mesmo apresentar-se à razão, como superior à instituição dos Anfictiões [liga religiosa reunindo diversos Estados gregos, formando um conselho, n.d.c.]. Não vejo que nos tempos modernos se tenha inventado nada melhor nem ainda tão bom. Quem sabe o que teria sucedido se a teocracia, a política e a ciência se houvessem podido colocar tranquilamente em equilíbrio, como sucede sempre quando os elementos são abandonados a si mesmos e se deixa agir o tempo? As mais horrorosas calamidades, as guerras de religião a revolução francesa etc. não teriam sido possíveis nesta ordem de coisas. O poder pontifício, assim mesmo como pode desenvolver-se, e apesar da terrível liga dos erros, vícios e paixões que assolaram a humanidade em épocas deploráveis, não tem deixado de fazer os mais assinalados serviços à humanidade.

Os inumeráveis escritores que não acharam estas verdades na história, sabiam sem dúvida escrever, porque o provaram em demasia, porém é igualmente certo que nunca souberam ler”.


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