Plinio Corrêa de Oliveira
U.R.S.S., estufa de ódio
Legionário, 26 de março de 1944, N. 607, pag. 2 |
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O "Estado de São Paulo" de 23 p.p. publicou um extraordinário telegrama de Londres. Formickencko, "General I" do Exército Vermelho, concedera a um jornal russo que se publica na capital britânica uma entrevista em que, exaltando o valor moral das tropas soviéticas, explicava a mola espiritual profunda que os tinha atirado com tanto ímpeto à conquista da vitória. Em 1914, diz Formickencko, os homens não sabiam matar convenientemente, e desperdiçavam numerosas munições. Infelizmente, a notícia telegráfica das declarações do "General I" é algum tanto resumida. Mas, ao que parece, a causa disto estava em que, combatendo-se embora, os homens não se odiavam de parte a parte convenientemente. Matavam-se sem verdadeira vontade de se matar, feriam-se sem vontade de se ferirem a fundo. Faltava-lhes ódio, gana, furor. A Rússia bolchevista, mais sábia, procurou aproveitar a experiência de 1914 e obteve ótimos resultados: "o soldado russo tem sido educado sistematicamente para odiar o inimigo, e essa educação converteu-se na sua melhor e mais poderosa arma". Assim, para o militar soviético, nem as granadas nem os canhões, nem os aviões ou tanques têm tido nesta guerra a eficácia da arma psicológica que é o ódio. "O equipamento material e técnico do Exército Vermelho é apenas um aspecto do seu poderio combativo. As suas outras armas mais eficientes são o moral elevado e inquebrantável, a resistência, o auto-sacrifício, o desprezo pela morte, o desejo inflexível de derrotar o inimigo". E o “General I” prossegue: "Não é fácil, entretanto, adquirir a capacidade de odiar, mesmo testemunhando os assassínios em massa de nosso povo, e a violação e humilhação das nossas mulheres. A repugnância ao inimigo não deve ser um fogo de artifício. Deve dominar o soldado todo até converter-se na base do seu temperamento e caráter". E acrescenta: "O soldado que odeia o inimigo aprende a atacá-lo de maneira que nem um único cartucho, nem uma só bala ou mina é desperdiçada. Na primeira guerra mundial era necessária uma média de 46 granadas para matar um único soldado, a média de cartuchos era de 2.100, para um único homem. Nesta ainda não se fez cálculo idêntico, mas aqui estão alguns dados interessantes, colhidos na frente russa: um atirador matou 125 alemães com 126 cartuchos. Isto significa, em relação à outra guerra, que se teriam economizado 5.750 balas de canhão e 16.374 de fuzil. Outro matou 304 inimigos com 304 cartuchos. Economizou, portanto, 633.096 balas de fuzil e 14.104 de canhão. No campo de batalha, a fidelidade à pátria e o ódio ao inimigo estão numa perfeita interdependência. Eis, pois, a força que dá aos homens do Exército Vermelho o pleno domínio da técnica de combate, na campanha que se desenvolve em toda a extensão da frente oriental, na Europa". * * * Esse documento mereceria a mais ampla divulgação. Até aqui, as escolas filosóficas que, à moda de Nietzsche, pregavam o ódio como força vital do universo, só encontravam em nosso ambiente um acolhimento céptico. As afirmações do pensador alemão e de seus discípulos eram tidas como boutades de homens de gabinete, curiosas e brilhantes extravagâncias de letrados, que jamais passariam do âmbito limitado dos campos de investigação filosófica. É que a nós batizados, o ódio parece algo de tão fundamentalmente antinatural, que se nos afiguraria impossível que toda a massa humana de uma nação inteira pudesse elevá-lo à categoria de um princípio ou até de um ídolo, e de formar segundo ele toda a vida social. Veio depois o nazismo. A evidência dos fatos dilatou um pouco os acanhados horizontes de nossa perspicácia. Começamos a verificar que essas divagações filosóficas não eram tão estéreis nem tão abstratas quanto se poderia pensar de início. Aí estava, de armas na mão, pronta para investir contra o mundo, uma das maiores nações contemporâneas, inteiramente empolgada pela pregação dos adeptos do ódio. Hitler é Nietzsche em ação, como Robespierre é Voltaire em ação. Mas, ainda assim, nossa miopia ou nosso comodismo arranjou meios de não ver a verdade inteira. Preferimos entender que a Alemanha se tinha deixado dominar pela mentalidade nietzschiana, simplesmente porque era esse um pendor peculiar e característico do espírito germânico. Racistas a nosso modo, atiramos sobre a raça toda a responsabilidade que, no fundo, só cabia à doutrina. Entendemos que o nazismo era um fenômeno puramente alemão e que essas pregações de ódio não poderiam expandir-se no Ocidente, transpondo o oceano ou simplesmente o Reno, porque sua capacidade de expansão cessava nas plagas banhadas pelo sol da cultura latina. E nem poderiam expandir-se no Oriente, porque entre a longínqua Ásia sonolenta e a inquieta Alemanha se levantava a intransponível barreira da União Soviética, imenso amortecedor das influências ocidentais que expiram invariavelmente aos pés dos montes Urais. As doutrinas de força nunca se propagariam, pois, para além das fronteiras da Alemanha. Essa ideia sofreu um duplo desmentido. Em primeiro lugar, a Alemanha dilatou suas próprias fronteiras, e com elas as fronteiras do reino do ódio. Por outro lado, o egoísmo vem dominando cada vez mais os povos contemporâneos, em todos os quadrantes. Ora, o egoísmo é o contrário do amor, e o ódio também é o contrário do amor. Não é preciso ser grande moralista para perceber com que espontaneidade o egoísmo gera o ódio e extingue a caridade cristã. Assim, ao passo que se tornava egoísta, o mundo contemporâneo se transformava em fácil sementeira para as idéias de ódio. Um duplo fenômeno portanto: enquanto a Alemanha aumentava sua influência, crescia a permeabilidade espiritual do mundo, à doutrinação nazista. E é curioso notar que esse ódio tipicamente nietzschiano, marcante e inconfundivelmente nazista, teve sua primeira repercussão oficial, teve sua mais solene afirmação precisamente no país que, de armas na mão, parece guerrear com mais afinco o nazismo. O comunismo se apresentara até aqui como uma doutrina de amor, se não em seus métodos pelo menos em suas idéias. Pregava a pena dos pobres, a compaixão dos desamparados, a doçura para com os revoltados. Por mais abusiva que fosse a interpretação bolchevista dessas idéias, elas representavam, no fundo, uma deformação de um ideal de solidariedade humana que fora introduzido no mundo pelo Evangelho. Caricatura, caricatura monstruosa, blasfema, do ideal cristão, o comunismo conservava sob algum aspecto uma vaga tintura desse ideal, como toda a caricatura, por mais monstruosa e satânica, se parece em algum ponto com o original. A acusação que o comunismo fazia à Igreja era precisamente de que Ela não era coerente com os ideais de caridade que pregava, que em lugar de servir inteiramente à causa da pobreza e da compaixão, servia também a causa da desigualdade social. “Qui fait l'ange, fait la bête”, dizia Pascal. Quem quer ser em qualquer sentido ou ponto de vista mais católico do que a Igreja, cai em alguma monstruosidade. Os comunistas pretenderam levar mais longe que a Igreja o espírito de caridade. Em vão a Igreja lhe pregou o bom senso neste caminho, mostrando que a desigualdade das classes sociais não viola nem a justiça nem a caridade, e que as diferenças de fortuna, inerentes à ordem natural instituída pelo próprio Deus, foram indelevelmente proclamadas pelos Mandamentos que proíbem o furto e a cobiça dos bens alheios. Nada adiantou. Agora esses antigos apóstolos do amor, depois de terem por "amor" cometido os maiores crimes em sua própria pátria, proclamam oficialmente o ódio como princípio de organização social. Nós que temos pela graça de Deus um coração católico, e que não nos esquecemos do preceito de amor aos nosso inimigos que nos foi ensinado por Nosso Senhor Jesus Cristo, não podemos deixar de pensar com indignação e horror nessas sombrias escolas de ódio, com que os sovietes, dignos êmulos e sucessores dos bandidos nazistas, procuram educar os soldados russos. Formickencko foi explícito: "A repugnância ao inimigo não deve ser um fogo de artifício. Deve dominar todo o soldado, até converter-se na base do seu temperamento e caráter". Homens fundamentalmente cheios de ódio, são estes os soldados soviéticos ideais! E note-se que nenhum equívoco é possível a este respeito. A Rússia formou seus soldados com anos de antecedência sobre a guerra. Eles nem sabiam a quem deveriam guerrear. Portanto, não foram educados para odiar só o atual inimigo alemão. E, com efeito, a máquina de guerra russa, baseada no ódio, seria muito frágil se só pudesse funcionar contra um inimigo determinado. Os soldados russos já eram educados para o ódio quando prestavam continência a Stalin e Ribbentropp reunidos para sujar as mãos no pacto em que sacrificaram a Polônia. Nessa hora, apareceram nazistas e comunistas como bons amigos aos olhos do mundo e das tropas soviéticas postas em linha de parada. Os soldados russos, quando aprenderam que deveriam odiar o inimigo, certamente são sabiam, pois, que inimigo iriam odiar. Aprenderam o ódio anônimo, em tese, o ódio em princípio contra tudo quanto não fosse conveniente aos seus interesses nacionais. Em outros termos, aprenderam a odiar em potência toda a humanidade, desde que em qualquer coisa ela não fosse joguete da diplomacia e do imperialismo soviético. Em dado momento, a máquina deflagrou contra a Alemanha. Poderia ter deflagrado também contra outros povos. E poderá ainda deflagrar contra outros de futuro... É evidente que esse ódio não é privativo dos soldados. Numa época de guerra total, em que todo cidadão combate no fronte interno ou externo, esse ódio pregado nas casernas há de ser pregado também nas escolas e pela imprensa. A URSS se gloria, pela boca de Fomickencko, de vencer a Alemanha, praticando precisamente o princípio mais genuíno do nazismo: o ódio. Cai a Alemanha, não cai Nietzsche. Morre o III Reich, mas antes mesmo de tombar ele exangue em terra, a Rússia reivindica para si, recolhe em suas mãos, desfralda ufano e cobre de louros o estandarte do ódio que era o emblema espiritual do nazismo. E que argumentos para justificar esse ódio! O argumento econômico! Ensinar um homem a odiar outro, a fim de economizar mais munições! Assim, não se trata nem um pouco de saber se esse ódio é justo, razoável, proporcionado às suas causas. É econômico: isto basta para incrustar a martelo esse sentimento na mente humana. O que há de mais degradante para nossa pobre espécie já tão degradada? * * * Alguns leitores sorrirão: O LEGIONÁRIO sempre irredutível em sua intransigência! Como podemos não perceber que o ódio é o único meio de se ganhar a guerra? É certamente muito bonito, que Nosso Senhor nos tenha mandado amar os inimigos, mas, positivamente, não é sensato que se pense que com amor se ganham batalhas. O que quer o Legionário? Que os soldados russos vão de encontro aos germânicos com pequenos bouquets de rosas e jasmins? Que lhes cantem modinhas para deter seu avanço? Que se imolem, portanto, estupidamente? Onde está o bom senso? Positivamente, pretender que essa ou qualquer guerra se faça com amor é rematada tolice. Guerrear é brigar. Brigar há de ser com força. Força para brigar só se encontra no ódio. Logo, sem ódio ninguém vence. Ora a Rússia quer e precisa vencer. Logo, tem de odiar. Mais tarde, voltaremos a pensar na romântica pregação de Nosso Senhor no Evangelho. Mas é preciso reconhecer que no momento a pregação evangélica está inteiramente deslocada!... * * * Maritain - que às vezes ainda acerta, e antigamente acertou muitas vezes de modo admirável -, Maritain fez recentemente uma conferência nos Estados Unidos sobre Machiavel, em que mostrou que uma das causas do maquiavelismo é o medo tolo e literal por que muitos católicos interpretam o dever de simplicidade e inocência, que lhes é imposto pelos Santos Evangelhos. Por vezes, entende-se o dever da candura evangélica com tal falta de precisão hermenêutica, que praticamente essa admirável virtude se equipararia à mais indiscutível imbecilidade. Os homens que não querem ser imbecis reputam, pois, toda a lealdade inteiramente inexequível. E atiram-se aos braços do maquiavelismo. O mesmo se dá com o dever do amor ao próximo, inclusive do amor ao inimigo. A doutrina católica condena do modo mais formal, que se pregue o ódio ao adversário. Ela ensina que o devemos amar, ainda mesmo quando o combatemos. Isto não quer dizer que sejamos uma corja de imbecis. Obrigados a combater, combatamos com valentia; não, porém, por ódio ao adversário, mas por amor à justiça. É o que ensina São Tomás de Aquino, hoje tão frequentemente citado e tão poucas vezes lido. Na [Suma Teológica] I, II, q. 105, art. III, o Santo Doutor tratando das disposições da Lei Antiga sobre as relações dos judeus com as nações que guerreavam, dá implicitamente as obrigações de uma nação cristã em guerra. Ver-se-á nesse texto o mais alto amor ao próximo aliado a uma larga, sensata e inteligente concepção dos deveres da posição de uma nação em guerra: "Do mesmo modo, quanto às relações bélicas com os povos estrangeiros, a Lei (Antiga) impôs preceitos convenientes. Em primeiro lugar, proibiu as guerras injustas: manda o Deuteronômio XX que, como as tropas hebraicas chegassem a uma cidade para a guerrear, antes lhe oferecessem a paz; em segundo lugar, manda-lhes conduzir com vigor a guerra encetada, confiantes no auxílio divino; e para que melhor se observasse esse dever instituiu que, antes da batalha, os sacerdotes confortassem os judeus prometendo-lhes o auxílio de Deus; em terceiro lugar lhes ordenou que removessem os obstáculos à guerra, desfazendo-se dos soldados que lhes pudessem servir de obstáculo por qualquer razão". Como se vê, não há aí nem melúrias, nem sentimentalismo, nem ódio. Amar o próximo consiste em lhe querer bem. Querer bem de alguém é querer para ele o seu bem. Os judeus deveriam amar os estrangeiros, não movendo contra eles guerra injusta e, mesmo depois de agredidos por seus adversários, deveriam evitar até o último de lhes retribuir a agressão. A guerra deveria ser, portanto, somente defensiva, e encetada sem ódio e a contragosto. Mas, se inevitável a guerra, pela obstinação do adversário, tornava-se um dever conduzi-la com vigor. Vigor sem ódio, porém, de sorte que, feita a paz, as condições dos vencedores fossem tão benignas quanto a prudência pudesse permitir. Foi essa a atitude dos diplomatas e guerreiros cristãos em todos os tempos. Eles nunca precisaram de escolas de ódio, para obter contra seus adversários os mais insignes triunfos. Bastava-lhes a serena consciência do dever a cumprir. O mundo muçulmano combatia os cruzados cheio de ódio. Os cruzados combateram cheios de amor. O fato é que os muçulmanos foram expulsos de quase toda a Europa pelos guerreiros medievais. A moleza não é o amor, o amor não é tolice. Como a coragem não é ódio. Não baralhemos os conceitos, e condenemos claramente a abominável formação que recebem as tropas soviéticas. * * * De tudo quanto dissemos se depreendem dois ensinamentos muito diversos mas muito práticos. Anda por aí uma certa orientação sentimental em matéria de catolicismo, que reduz tudo a flores e sorrisos. Toda mutilação da doutrina católica é um mal, e prepara terríveis surpresas. Se não vemos com bom senso a doutrina de amor pregada pela Igreja é ou não é verdade que estaremos dando alguma razão aos partidários do ódio? Outro ensinamento se diz numa frase só: nenhum povo da Terra deve fiar na amizade de outro que organiza de tal maneira o ódio. O ódio é o contrário das relações internacionais pacíficas, e o governo brasileiro anda muitíssimo bem em não reconhecer até agora a Rússia, estimando embora que ela esmague quanto antes a abominável hidra nazista, inimigo n.º 1 da Igreja em nossos dias. |