Plinio Corrêa de Oliveira

 

"Dans leur bateau"

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 19 de março de 1944, N. 606

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Talvez nenhuma das profecias de Nosso Senhor Jesus Cristo a respeito de sua Igreja tenha sido uma realização mais palpável do que aquela que levou a Cristandade a chamar a Igreja, no presente século, de "militante".

Todas as profecias do Divino Salvador realizaram-se ao pé da letra; não fora Ele Deus! Mas nenhuma talvez de maneira tão gritante como esta que obriga os fiéis a estar sempre vigilantes na defesa da Fé e dos bons costumes, contra os perseguidores que, em todos os tempos, se tem levantado contra a Santa Igreja.

A maneira do ataque varia segundo as circunstâncias aconselham aos inimigos da Cruz de Cristo, a conveniência de um combate de viseira erguida - e é a época das grandes perseguições sangrentas - ou de um trabalho velado de sabotagem - e é a ocasião em que a Igreja precisa precaver-se contra as infecções que tentam minar o seu organismo.

Podemos dizer que a luta que a Igreja enfrenta hoje é desta última espécie. Pessoas que nunca foram católicas, e que provavelmente jamais o serão, se arvoram em paladinos da verdade católica, e tentam dessa maneira uma espécie de "grilagem" da mesma, isto é, vender sua mercadoria como se fosse a autêntica da qual tomam umas aparências, ao menos na roupagem literária com que a vestem.

Ninguém talvez tenha caracterizado melhor essas épocas da História da Igreja - que são as mais graves, pois a elas devemos todas as amputações que foram necessárias no Corpo Místico de Jesus Cristo - do que o grande publicista católico espanhol, Sardá y Salvany. Compara o ardoroso paladino do catolicismo na Espanha estes momentos da História da Igreja ao crepúsculo, cujo lusco-fusco é uma mistura indefinível de claridade e trevas, em que não se vê bem, e nada se consegue distinguir com precisão. Não é preciso acrescentar que nenhum ambiente oferece maiores probabilidades de êxito para os inimigos da Igreja, ao menos para os que percebem que uma vitória sobre a mesma será tanto mais eficaz, quanto mais se dessorar a autenticidade da Fé tradicional. Como bons pescadores preferem as águas turvas. Nelas, sem serem percebidos, podem infiltrar seus erros, difundi-los e abalar a Fé dos incautos sob aparência e protestos do mais lídimo cristianismo.

Estas são as épocas mais difíceis para a Igreja. Sob a capa do catolicismo, envoltas em fórmulas atraentes, que fazem o ponto vulnerável da psicologia humana, apelando sempre para a liberdade e largueza de espírito, difundem estes falsos profetas doutrinas diluídas de tal maneira que, primeiro, seja difícil apontar-lhes os erros, depois, os fiéis embalados por ela se inclinem no sentido de formarem em si mesmos um espírito de falso cristianismo.

Foi assim com o Arianismo que lançou talvez a maior confusão no mundo cristão; foi assim com o Jansenismo que infestou especialmente a França; foi assim com o Modernismo, que ainda hoje procura aluir a Rocha de Pedro.

Nenhuma obra é tão benemérita para a Igreja como a dos apologetas que dão o brado de alarme, e denunciam o inimigo que já se instalou sorrateiramente nos campos internos, e aí se esforça por ser tido como companheiro autêntico da mesma jornada. Eis porque a Igreja é devedora do grande diácono Atanásio, e de todos os paladinos da Fé suscitados por Deus Nosso Senhor para oporem uma barreira à falsificação do depósito tradicional da Revelação Divina.

Nos nossos dias a recente polêmica suscitada pelo livro do Sr. Maritain, "Les droits de l'homme et la loi naturelle", deu-nos oportunidade de apalpar a tática que hoje aplica contra a Igreja os inimigos.

No que concerne às relações entre a Igreja e o Estado, ao conceito de uma sociedade cristã, um estado cristão, a Doutrina Revelada foi já muitas vezes declarada, e é ponto que passou em julgado: não são mais possíveis dúvidas ou discussões a respeito dos princípios que todo católico deve admitir. Poder-se-á estudar a melhor maneira de estabelecer uma situação de fato. Neste particular poderá haver até divergências que se justifiquem quanto à apreciação dos fatos. O que não pode ser posto em dúvida, onde não há lugar para divergências, é o princípio: em tese, qual a sociedade que se pode dizer realmente católica quando o Estado será católico.

Ora, foi precisamente esta possibilidade de divergências em questões de situação prática que deu base a que se insinuasse uma evolução doutrinária, mesmo do princípio, de maneira que hoje já não se pudesse sustentar o princípio estabelecido por S. S. Pio IX no "Syllabus" no que respeita às relações entre a Igreja e o Estado.

De maneira que, envolto em exemplificações históricas mais próprias para perturbar a sequência natural e clara do raciocínio, pretendeu-se inculcar que a Doutrina da Igreja quanto à sociedade católica não passa de um mero interconfessionalismo, no qual a verdade e o erro caminhariam de mãos dadas para se conseguir o "bem comum" (sic!). Tudo isto não dito assim com essas palavras e sim com outras mais sonoras, mais atraentes, mais sensíveis, mais psicológicas. Falava-se numa sociedade "real e vitalmente cristã" em oposição a uma sociedade "hipocritamente cristã". Como se vê as expressões são de molde a impressionar e, no meio de toda uma argumentação sibilina, capazes de iludir incautos.

Por isso, pelo amor à verdade e à Igreja, resolveu o R. Pe. Arlindo Vieira, hoje já uma glória no Clero nacional, denunciar o engano, e precaver os católicos. Em bem fundamentado artigo mostrou como o livro do Sr. Maritain, "Les droits de l'homme et la loi naturelle", defendia pontos de vista no que concerne a uma sociedade cristã, em oposição ao que os Santos Padres haviam tradicional e ininterruptamente ensinado, especialmente nestes últimos anos, dos fins do século passado a esta data.

A maneira como agiram um ou outro dos amigos do filósofo francês deu-nos a ideia de pessoas que sentiram uma mão indiscreta levantar-lhes o véu que encobria sua misteriosa face. Entre injúrias que extremavam nas acusações de ignorante e caluniador, pretenderam demonstrar que o R. Pe. Arlindo Vieira não compreendera ou falsificara o pensamento do Sr. Maritain.

Era necessário que a doutrina de Maritain prevalecesse e por isso a primeira tentativa foi de estrangular um adversário importuno. Como esta tática não tivesse surtido efeito, pois o Pe. Arlindo Vieira, e o LEGIONÁRIO que modestamente o secundou, patentearam vitoriosamente que, na realidade, o Sr. Maritain na obra citada e em carta posterior sustenta teses que se opõem ao pensamento da Santa Sé; tentam agora os novos corifeus do pancristianismo outra dialética no sentido de conservarem o ambiente de confusão que julgam ter criado.

O R. Pe. Arlindo Vieira já não é mais acusado de falsificar ou não entender o pensamento de Maritain. Ele o entendeu e entendeu muito bem. Agora que o Pe. Arlindo Vieira não entendeu é a Doutrina da Igreja. Não teria percebido o ilustre jesuíta que a Igreja teria evoluído nesta questão dos princípios sobre suas relações com o Estado, de maneira que já não se poderia mais sustentar o princípio estabelecido por S. S. Pio IX, pois que Leão XIII teria dado nova orientação aos fiéis católicos. O erro da argumentação do Pe. Vieira proviria precisamente disto: quer ele aplicar, nos tempos que correm, princípios que só valiam no século passado.

Como se vê, a dialética é especiosa. Amplia o raio da confusão. Já não são católicos, considerados legítimos representantes do pensamento católico, que acham natural e necessário que, na sociedade, a verdade e o erro tenham os mesmos direitos. Seria o próprio Papa, que ajustando-se ao seu século, abriria mão dos princípios eternos que hão de regular sempre as relações das criaturas de Deus, especialmente as que as obrigam com relação a Ele, Deus.

É, porém, tão pueril, que a católicos basta lembrá-la para que ela se desfaça. A Santa Sé jamais há de mudar seus princípios ainda que seja por todo o sangue de todos os católicos. Ao tempo do Arianismo, a situação da Igreja foi tão crítica que de São Jerônimo diz-se que "gemeu em sua gruta de Belém, quando viu todo o orbe ariano". E a Igreja não transigiu. Também agora não transigirá. Nem é aos escritores adventícios que havemos de perguntar o pensamento da Igreja, mas ao próprio Santo Padre, cuja linguagem neste ponto não deixa a menor dúvida.

Uma outra prova de que realmente o Sr. Maritain hoje edifica do "outro lado do muro" temos na confissão, talvez, inconsciente com que uma dessas pessoas inesperadamente arvoradas em paladinos do catolicismo condimenta sua defesa de Maritain. Num artigo em que diz - só afirma - que o Sr. Maritain, numa admirável largueza de espírito, e sábia tolerância, se enquadra rigidamente na doutrina social católica estabelecida segundo os ensinamentos tomísticos e as encíclicas papais, aparece por descuido esta frase: "Se fossem cabíveis protestos, deveriam partir menos dos católicos que dos democratas".

"Habemus confitentem reum". Esta frase contém duas afirmações:

1) o Sr. Maritain, pretendendo uma democracia cristã, intenciona desvirtuar a democracia, ou antes, certa concepção de democracia - só assim se explicaria que certos democratas poder-se-iam sentir visados pela obra de Maritain;

2) A democracia - para este Sr. - de si, na sua pureza, não é católica. O que quer dizer que estes democratas não se sentem mal com a campanha de Maritain porque as idéias de Maritain, em absoluto não incomodam suas intenções e são precisamente aqueles democratas que acham que a democracia para ser verdadeira não deve ser inteiramente católica, ou, em outras palavras, para estes democratas só serve uma sociedade pancristã. Bem afirmava D. Jamet num artigo do qual o LEGIONÁRIO transcreveu parte em seu número de domingo passado. Estes democratas que entendem assim a democracia, isto é, não a querem católica como a quer o Papa, não protestam contra o Sr. Maritain, exclusivamente porque este senhor "est dans leur bateau" [está no barco deles].

Finalizamos recordando aos nossos leitores a doutrina tradicional da Santa Igreja, na palavra de S. S. Pio X, de santa memória. Contem-se na condenação do "Le Sillon" cuja doutrina assim expõe o Santo Padre:

"Houve um tempo que o Sillon, como tal, era formalmente católico. Em matéria de força moral, ele só conhecia uma, a força católica, e ia proclamando que a democracia havia de ser católica, ou não seria democracia. Em dado momento, entretanto, ele mudou de parecer. Deixou a cada um sua religião ou sua filosofia. Ele próprio deixou de se qualificar de "católico", e a fórmula "a democracia há de ser católica", substituiu-a por esta outra "a democracia não há de ser anticatólica", tanto quanto, aliás, antijudaica ou antibudista. Foi a época do “maior Sillon”. Todos os operários de todas as religiões, e de todas as seitas foram convocados para a construção da cidade futura. Outra coisa se lhes pediu a não ser que abraçassem o mesmo ideal social, que respeitassem todas as crenças e que trouxessem um mínimo de forças morais. Certamente, proclamava-se, "os chefes do "Sillon" põem sua fé religiosa acima de tudo. Mas podem recusar aos outros o direito de haurir sua energia moral, lá onde podem? Em troca, eles querem que os outros respeitem seu direito, deles, de hauri-la na fé católica. Eles pedem, pois, a todos aqueles que querem transformar a sociedade presente no sentido da democracia, que não se repilam mutuamente por causa de convicções filosóficas ou religiosas que os possam separar, mas que marchem de mãos dadas, não denunciando sua convicção, mas experimentando fazer, sob o terreno das realidades práticas, a prova da excelência de suas convicções pessoais. Talvez que neste terreno de emulação entre almas ligadas a diferentes convicções religiosas ou filosóficas a união se possa realizar" (Marc Sangnier, Discurso de Rouen, 1907). E ao mesmo tempo se declarou (de que modo isto se poderia realizar?) que o pequeno "Sillon" católico seria a alma do grande "Sillon" cosmopolita.

“Recentemente, desapareceu o nome do "maior Sillon", e houve a intervenção de uma nova organização, que em nada modificou, bem pelo contrário, o espírito e o fundo das coisas "para pôr ordem no trabalho, e organizar as diversas forças de atividade. O Sillon continua sempre a ser uma alma, um espírito, que se misturará aos grupos e inspirará sua atividade". E a todos os novos agrupamentos, tornados autônomos na aparência: católicos, protestantes, livres-pensadores, se pede que se ponham a trabalhar. "Os camaradas católicos se esforçarão entre si próprios, numa organização especial, por se instruir e se educar. Os democratas protestantes e livres-pensadores farão o mesmo de seu lado. Todos católicos, protestantes e livres-pensadores terão em mira armar a juventude, não para uma luta fratricida, mas para uma generosa emulação no terreno das virtudes sociais e cívicas" (Marc Sangnier, Paris, Maio de 1910).

“Estas declarações e esta nova organização da ação sillonista provocam bem graves reflexões.

“Eis uma associação interconfessional, fundada por católicos, para trabalhar na reforma da civilização, obra eminentemente religiosa, porque não há civilização verdadeira sem civilização moral, e não há verdadeira civilização moral sem a verdadeira religião; é uma verdade demonstrada, é um fato histórico. E os novos sillonistas não poderão protestar que eles só trabalharão "no terreno das realidades práticas" onde a diversidade das crenças não importa. Seu chefe tão bem percebe esta influência das convicções do espírito sobre o resultado da ação, que ele os convida, qualquer que seja a religião a que pertençam, a "fazer no terreno das realidades práticas a prova da excelência de suas convicções pessoais".

“E com razão, porque as realizações práticas revestem o caráter das convicções religiosas, como os membros de um corpo, até às últimas extremidades recebem sua forma do princípio vital que o anima.

“Isto posto, que se deve pensar da promiscuidade em que se acharão agrupados os jovens católicos com heterodoxos e incrédulos de toda a espécie, numa obra desta natureza? Esta não será mil vezes mais perigosa para eles do que uma associação neutra? Que se deve pensar deste apelo a todos os heterodoxos e a todos os incrédulos para virem provar a excelência de suas convicções sobre o terreno social, numa espécie de concurso apologético, como se este discurso já não durasse há 19 séculos, em condições menos perigosas para a fé dos fiéis e sempre favorável à Igreja Católica? Que se deve pensar deste respeito por todos os erros e de estranho convite, feito por um católico a todos os dissidentes, a fortificarem suas convicções pelo estudo e delas fazer as fontes sempre mais abundantes de novas forças? Que se deve pensar de uma associação em que todas as religiões, e mesmo o livre-pensamento podem manifestar-se altamente à vontade? Porque os sillonistas que, nas conferências públicas e em outras ocasiões proclamam altivamente sua fé individual, não pretendem certamente fechar a boca aos outros e impedir que o protestante afirme seu protestantismo e o céptico, seu ceticismo. Que pensar enfim, de um católico que, ao entrar em seu círculo de estudos, deixa na porta seu catolicismo, para não assustar seus camaradas que, "sonhando com uma ação social desinteressada, têm repugnância de a fazer servir ao triunfo de interesses de facções, ou mesmo de convicções, quaisquer que sejam?"


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