Plinio Corrêa de Oliveira
Nova
et Vetera
Legionário, 12 de março de 1944, N. 605, pag. 5 |
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A sede dos bens deste mundo, com exceção de qualquer freio moral que venha temperar seu gozo ou privação, o egoísmo, eis o fundo, a essência do individualismo e do socialismo. É um mesmo estado moral, que difere apenas pela situação de seus sujeitos: é o egoísmo que possui ou o egoísmo que deseja possuir. Tanto isto é verdade que, para fazer de um individualista um socialista, basta empobrecê-lo e reciprocamente, a menos que se trate de mera atitude literária. Não é privilégio do Estado totalitário moderno a exploração dessa fraqueza própria de uma sociedade decaída e materializada. Mesmo porque totalitarismo e socialismo não são novidades no mundo. O paganismo antigo os conheceu. E o processo de sedução e escravização das massas era semelhante. Neste sentido, damos hoje aos nossos leitores algumas páginas do livro “Escravos Cristãos” do historiador Paul Allard, obra que ao ser publicada foi elogiada pela Santa Sé, através de carta enviada ao autor, durante o pontificado de Pio IX. * * * “No primeiro século de nossa era, a sociedade romana compreendia duas classes de homens bem distintas: os senhores e os escravos. Os primeiros possuíam a riqueza, o poder, as honras; os segundos não podiam, tomados em massa, alimentar qualquer esperança de consegui-lo. Os escravos não vendiam seu trabalho, mas eram constrangidos a dá-lo gratuitamente. Fazendo que os outros adquirissem, não adquiriam para si próprios; eram comprados, mantidos, mas não eram pagos; eram mais instrumentos de trabalho, do que trabalhadores. Varrone lhes dá o nome de máquinas com voz humana, instrumenti genus vocale (De re rustica I, 17). Tinham, com efeito, na indústria antiga uma parte semelhante àquela da máquina na indústria moderna. Simples instrumentos, criavam a riqueza sem poder reter porção alguma para seu proveito. Esta condição, perturbadora de todas as leis econômicas, representava, no início de nossa era, a condição de cerca de metade da população da Europa civilizada. A população romana compreendia um terceiro elemento, que, poderoso por séculos, havia, sob o Império, perdido toda influência social, política, econômica; vivia, não do que obtinha por seu próprio esforço, mas do que lhe era dado; sem nada possuir, consumia sem produzir; pode-se dizer que era nutrida gratuitamente pelos ricos e pelo Estado. Era o que chamamos em nossa linguagem moderna o povo, e que a linguagem jurídica de Roma chamava os humildes, os pequenos (humiles, humiliores, tenuiores, tenuissimi). Esses plebeus pobres, que não devemos confundir com os indivíduos desprovidos de qualquer recurso, egentes, representavam cerca de uma quarta parte da população de Roma; viviam quase unicamente da liberalidade pública e privada, publicis atque privatis largitionibus (Sallustio, Catilina, 37), trabalhavam pouco, restringindo-se seu campo de trabalho cada vez mais, à medida que a onda crescente da escravatura o dominava. Assim um povo de ricos, que fazia trabalhar um povo de escravos, que trabalhava para aqueles e não para si próprios, e um povo de mendigos que não podia trabalhar, eram, fazendo abstração de casos particulares, os três elementos cuja existência formava a população romana propriamente dita, e a população de todas as grandes cidades das províncias nos primeiros três séculos do império. Um tal estado de coisas conduzia naturalmente ao socialismo, que, impossível nos lugares em que o trabalho é livre, reinava soberano em uma sociedade em que o trabalho era imposto a uns, recusado a outros, e em que aqueles trabalhavam constrangidos, estes permaneciam ociosos à força. Entre nós, o operário, unicamente com seus braços e sua inteligência, já é rico, é dono do seu futuro; o produto de seu trabalho lhe pertence; vê abrir-se diante de seus esforços inumeráveis estradas. Virtuoso, laborioso ecônomo, poderá viver, poderá fazer viver os seus, adquirir o necessário, conquistar o supérfluo, pois que em todos os lugares há trabalho para ele e, por conseguinte, também pão. Sob o Império não havia lugar em Roma para o operário livre. Com a ajuda do escravo, acorrentado ao trabalho que o absorvia quase inteiramente, a classe patronal bastava às suas necessidades pessoais, tinha o monopólio da indústria e contribuía consideravelmente para a manutenção do comércio. Quem não era nem rico nem escravo, ficava quase necessariamente a cargo do Estado”. * * * “A escravatura exercia sobre o comércio e sobre toda profissão lucrativa a mesma influência que sobre a indústria. Não apenas o grande comércio se tornara monopólio dos ricos possuidores de escravos, mas o pequeno comércio, o comércio de miudeza, o comércio de gêneros alimentícios era, por uma considerável parte, dominado por esses”. Depois de mostrar a concorrência feita pelo trabalho escravo ao trabalho livre, diz o autor: “O senhor e o escravo, eis as duas extremidades, entre as quais, como em uma prensa, havia terminado por achar-se reduzida toda atividade individual e comercial. Ora bem, Roma, no Império, contava com um milhão e meio de habitantes. Entre estes havia trezentos a quatrocentos mil proletários. Como viviam eles?” A plebe fornecia os empregados inferiores do tesouro público, das instituições alimentares, das administrações financeiras; como, por exemplo, os que trabalhavam nos ofícios de publicanos, guardas aduaneiros, exatores encarregados de recolher em Roma e nas províncias as taxas sobre sucessões, sobre renda de escravos, sobre o aforramento destes”. Mas, mesmo nestes empregos, a plebe lutava com a concorrência dos escravos. E acrescenta o autor: “Por mais numerosos que fossem os empregos da administração romana, um número relativamente pequeno de gente do povo neles podia achar colocação. Para se tornar litor, pregoeiro público, escriba etc., era necessário dispender uma certa quantia, decuriam emere (Cicero, II Verr., III, 79). Para entrar nos cargos de qualquer administração, era preciso (pelo menos durante os primeiros três séculos do Império) lutar contra a concorrência invasora da escravatura. Que era feito daqueles que não possuíam nem bastante dinheiro, nem bastante crédito para satisfazer a uma ou a outra dessas condições e dos quais o trabalho fugia em toda parte? “Os mais industriosos, os mais adaptáveis, certamente os menos honestos, em meio de tantos empregos aos quais a escravatura lhes fechava o acesso, conseguiam criar outros, de contrabando, de dúbia moralidade, equívocos e frequentemente inconfessáveis, semelhantes às aguas que em seu curso se vêm represadas por um obstáculo e conseguem, valendo-se de pequeníssimas fissuras, escavar leitos subterrâneos, criar passagens ocultas, abrir canais inesperados, com risco de danificar o solo que atravessam. Champagny soube pintar muito bem, assinalando sua verdadeira causa, a multiplicação ao infinito, na sociedade romana “dessa condição social intermédia, que não é nem o trabalho nem tão pouco a riqueza... Tornavam-se histriões, sacerdotes de Isis, sacerdotisas de Adonis, adivinhos, astrólogos, gladiadores, cocheiros, ou palafreneiros de circo, dançarinos, bufões, como se tornavam leno, lena, scortum, tudo isto em vez de dar-se ao trabalho; homens, mulheres, jovens, se entregavam com prazer a estes misteres lucrativos e então mais bem vistos que o trabalho. Não faltava quem se fizesse mendigo, apesar da mendicância não ser tão bem vista e um pouco menos lucrativa. Não faltavam sobretudo os parasitas; e o parasitismo era em Roma uma profissão quase oficialmente constituida”. Em uma palavra, a maior parte das profissões uteis se achavam fechadas aos homens livres, e estes se precipitavam sobre essa multidão de posições inúteis ou imorais, que o luxo gera em uma sociedade corrupta. Isto mantinha na superfície do mundo romano uma aparência de trabalho livre, semelhante à vegetação malsã, porem vivaz, que cresce às vezes à superfície dos paludes. Era então o verdadeiro trabalho livre completamente sufocado? Não, permanecia ainda uma semente obscura, débil, desprezada, que não morreu inteiramente, como se estivesse esperando o dia em que o Cristianismo devia protegê-lo e fazê-lo germinar. Alguns homens livres, bastante altivos para viverem como viviam, dentro em pouco veremos, milhares de proletários que o Estado nutria gratuitamente, ou bastante sobrecarregados com o peso da família para se contentarem com a distribuição intermitente que alimentava a plebe de Roma, se empregavam como operários nas oficinas já cheias de escravos. Partilhavam aqueles a sorte com estes, sem outra distinção que o tênue salário que recebiam. Uns e outros viviam confundidos no mesmo sentimento de desprezo. Cláudio, oferecendo, como sumo pontífice, um sacrifício expiatório, manda “fazer retirar a multidão de operários e de escravos”, summeta operariorum servorumque turba (Suetonio, Claudius 22)”. * * * Mas esses homens livres, que se misturavam voluntariamente com os escravos, eram bem pouco numerosos, comparados com a imensa multidão de ociosos que o Estado nutria. A maioria dos proletários vivia, portanto, no ócio. Esta é a conclusão lógica à qual se chega pelo que ficou dito. O povo romano, que não mais participava do governo e composto, quase inteiramente, de escravos libertos, e de gente sem profissão definida que vivia à custa do tesouro público, era nutrido pelo Estado, pelos imperadores e pelos ricos. “As distribuições de trigo feitas à plebe romana, em nome do Estado, foram a princípio intermitentes. Tornaram-se depois regulares em virtude de uma lei do ano 123 antes de Cristo. O trigo não era então dado gratuitamente, mas à metade do preço; somente no ano 58 de nossa era a distribuição se tornou gratuita”. No fim do tempo de Cícero, a renda indireta do tesouro público era absorvida na distribuição gratuita feita unicamente na cidade de Roma. A esta distribuição regular é necessário acrescentar as largitiones extraordinárias, frequentíssimas sob os imperadores, o aumento da ração de trigo ou de pão, à qual tinham direito os proletários, as distribuições suplementares de vinho, de óleo, de carne, de cereais e de outras mercadorias, e até de dinheiro. * * * “Augusto e seus sucessores praticaram abertamente esta política e se esforçaram por associar a ela todos os ricos cidadãos de Roma. Estes foram convidados a abrir seus tesouros, porque era necessário que Roma se embelezasse à sua custa. Não bastando o dinheiro do Estado e sendo ilimitados os bens particulares, foram os ricos senhores convidados a concorrer com seus haveres para o bem viver e os passatempos do povo romano. Estes constroem monumentos novos, aqueles restauram os antigos, e por toda a parte surgem templos, termas, teatros, pórticos". Estamos na fase do pão e do circo. “Eis-nos em pleno socialismo: se não se arrebata violentamente aos ricos seu patrimônio para dividi-lo com os pobres, são eles obrigados, todavia, a dispendê-lo inteiramente “para saciar a multidão ignorante com jogos, monumentos, dádivas, festas”. Esta profissão vai sempre crescendo. Vimos como foi assegurado o necessário aos proletários romanos; vimos em seguida como lhes foi assegurado o supérfluo por toda parte; mais um passo e este supérfluo se tornou para eles, não mais uma dádiva acidental, mas um direito, o direito do cidadão romano. Além do trigo, do óleo, da gordura, que recebiam a este título, Aureliano esteve a ponto de estabelecer a distribuição aos proletários de Roma de uma ração quotidiana de vinho, sendo chamado à razão por um prefeito do pretório que lhe fez entrever, como consequência, a necessidade de acrescentar um dia para a distribuição de ovos e de galinhas”. A plebe romana havia perdido toda dignidade, pouco lhe importando qual fosse o seu senhor, contanto que tivesse que comer e os imperadores velavam para que diariamente lhe fosse fornecido um bom prato. “Era este o segredo principal de sua política interna, um dos tais arcana imperii da que fala Tácito. Vem aqui a propósito fazer um paralelo entre o cesarismo antigo, que foi mantido à custa de saber aviltar e adular o povo, satisfazendo os seus caprichos, e o cesarismo moderno, seu servil imitador. Após cinco séculos de um tal regime, o mundo romano, não obstante a força de ressurreição que o Cristianismo lhe havia trazido, não soube resistir aos bárbaros. Graças a Deus, entre a constituição econômica da sociedade antiga e a nossa, existe uma diferença fundamental. O Cristianismo destruiu a escravidão e com isto deu ao trabalho sua liberdade e dignidade. Mas o trabalho livre não tem inimigo mais formidável que o cesarismo (com esta palavra entendo o poder, uno ou múltiplo, que tem suas raízes somente no favor do povo e sobre esse unicamente se apoia para governar). Visto que este se volta para a parte inferior da alma humana, aos interesses ou aos apetites da multidão, tende por sua própria essência a solapar a bela e grande ideia do trabalho cristão, a substituir o gosto do trabalho modesto, corajoso, perseverante e a estima do salário penosamente ganho, pela caça febril do dinheiro e dos prazeres, do amor de fortunas fáceis e de riquezas improvisadas. Pouco a pouco o cesarismo, para colorir esse horizonte falaz, é conduzido a falsear as idéias econômicas, a fazer entrever no brilho da cobiça uma nova organização da sociedade, uma repartição diferente dos bens deste mundo, enfim uma espécie de terra prometida, na qual o Estado fará o papel de providência universal, na qual será suprimida aquela lei do esforço que Virgílio, o mais perspicaz de seu século, cantou em versos admiráveis, e que é a condição de todo progresso. Todos os nossos dados nessa direção farão o mundo moderno se avizinhar do abismo em que se destruiu o mundo romano. Aquele que promete ao povo felicidade infinita, se quiser abandonar o trabalho paciente para declarar guerra ao capital, à propriedade, a todos os direitos legítimos, o engana ao mostrar-lhe seu ideal no futuro; é no passado e na época mais baixa da civilização romana que importa procurá-lo. |