Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
A “cidade fraternal”

 

 

 

 

 

 

Legionário, 5 de março de 1944, N. 604, pag. 5

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Uma das mais temíveis armas do totalitarismo moderno é o interconfessionalismo. Dois exemplos nos convencerão desta verdade. O grande ímã usado pelo nazismo para atrair os católicos para as suas fileiras, foi o “cristianismo positivo”, que, segundo a voz dos mais autorizados doutrinadores do nacional-socialismo, não passa de um mero movimento interconfessional, campo largo e sem fronteiras em que se reúnem católicos e protestantes das mais variadas seitas, todos os “gottesgläubigen” (que acreditam em Deus, n.d.c.) enfim. Pondo em prática os conselhos de Lenine, segundo o qual o comunismo devia abandonar os métodos violentos de proselitismo, também os soviets estão lançando atualmente uma campanha interconfessional de grande envergadura liderada pelo “patriarca” cismático Sérgio e pelos “arcebispos” anglicanos de Cantuária e de York.

Não tardarão a surgir os “prudentes” que verão nesse interconfessionalismo a desejada ponte que fará o socialismo aceitável aos próprios católicos, sob pretexto de uma colaboração na obra de reconstrução de após guerra.

Torna-se muito oportuno portanto, relembrar as palavras com que o Santo Padre Pio X fulmina a “audácia e a ligeireza de espírito de homens que se dizem católicos, e que sonham refundir a sociedade em tais condições, e estabelecer sobre a terra, por cima da Igreja Católica, o reino da justiça e do amor com operários vindos de toda a parte, de todas as religiões ou sem religião, com ou sem crenças, contanto que se esqueçam do que os divide: suas convicções religiosas e filosóficas, e ponham em comum aquilo que os une: um generoso idealismo e forças morais adquiridas onde possam”. Queremos nos referir à nunca assaz citada Carta Apostólica em que o grande Pontífice condenou o movimento do “Sillon”. Por esse documento vemos como Pio X já concluía ser esse interconfessionalismo funesto uma arma propícia à implantação do totalitarismo, restaurando no mundo “o reino legal da fraude e da violência, e a opressão dos fracos, daqueles que sofrem e trabalham”.

Eis as palavras com que nessa Carta Apostólica é condenado o aspeto interconfessional do movimento sillonista:

“Houve um tempo em que o “Sillon”, como tal, era normalmente católico. Em matéria de força moral, ele só conhecia uma, a força católica, e ia proclamando que a democracia havia de ser católica ou não seria democracia. Em dado momento, entretanto, ele mudou de parecer. Deixou a cada um sua religião ou sua filosofia. Ele próprio deixou de se qualificar de “católico” e a fórmula “A democracia há de ser católica”, substituiu-a por esta outra “A democracia não há de ser anticatólica”, tanto quanto, aliás, antijudaica ou antibudista. Foi a época do “maior Sillon”. Todos os operários de todas as religiões e de todas as seitas foram convocados para a construção da cidade futura. Outra coisa não se lhes pediu a não ser que abraçassem o mesmo ideal social, que respeitassem todas as crenças e que trouxessem um certo mínimo de forças morais. Certamente proclamava-se, “os chefes do Sillon põem sua fé religiosa acima de tudo. Mas podem recusar aos outros o direito de haurir sua energia moral, lá onde podem? Em troca, eles querem que os outros respeitem seu direito, deles, de haurí-la na Fé católica. Eles pedem, pois, a todos aqueles que querem transformar a sociedade presente no sentido da democracia, que não se repilam mutuamente por causa de convicções filosóficas ou religiosas que os possam separar, mas que marchem de mãos dadas, não renunciando às suas convicções, mas experimentando fazer, sobre o terreno das realidades práticas, a prova da excelência de suas convicções pessoais. Talvez que neste terreno de emulação entre almas ligadas a diferentes convicções religiosas ou filosóficas a união se possa realizar” (Marc Sangnier, Discurso de Rouen, 1907). E ao mesmo tempo se declarou (de que modo isto se poderia realizar?) que o pequeno Sillon católico seria a alma do grande Sillon cosmopolita.

Recentemente, desapareceu o nome do “maior Sillon”, e houve a intervenção de uma nova organização, que em nada modificou, bem pelo contrário, o espírito e o fundo das coisas “para pôr ordem no trabalho, e organizar as diversas forças de atividade. O Sillon continua sempre a ser uma alma, um espírito, que se misturará aos grupos e inspirará sua atividade”. E a todos os novos agrupamentos, tornados autônomos na aparência: católicos, protestantes, livre pensadores, se pede que se ponham a trabalhar. “Os camaradas católicos se esforçarão entre si próprios, numa organização especial, por se instruir e se educar. Os democratas protestantes e livre pensadores farão o mesmo de seu lado. Todos, católicos, protestantes e livre pensadores terão em mira armar a juventude não para uma luta fratricida, mas para uma generosa emulação no terreno das virtudes sociais e cívicas” (Marc Sangnier, Paris, maio de 1910).

Estas declarações e esta nova organização da ação sillonista provocam bem graves reflexões.

Eis uma associação interconfessional, fundada por católicos, para trabalhar na reforma da civilização, obra eminentemente religiosa, porque não há civilização verdadeira sem civilização moral, e não há verdadeira civilização moral sem a verdadeira religião: é uma verdade demonstrada, é um fato histórico. E os novos sillonistas não poderão pretextar que eles só trabalharão “no terreno das realidades práticas” onde a diversidade das crenças não importa. Seu chefe tão bem percebe esta influência das convicções do espírito sobre o resultado da ação, que ele os convida, qualquer que seja a religião a que pertençam, a “fazer no terreno das realidades práticas a prova da excelência de suas convicções pessoais”. E com razão, porque as realizações práticas se revestem do caráter das convicções religiosas, como os membros de um corpo, até às ultimas extremidades, recebem sua força do princípio vital que o anima.

Isto posto, que se deve pensar da promiscuidade em que se acharão agrupados os jovens católicos com heterodoxos e incrédulos de toda a espécie, numa obra desta natureza? Esta não será mil vezes mais perigosa para eles do que uma associação neutra? Que se deve pensar deste apelo a todos os heterodoxos e a todos os incrédulos para virem provar a excelência de suas convicções sobre o terreno social, numa espécie de concurso apologético, como se este concurso já não durasse há 19 séculos, em condições menos perigosas para a Fé dos fiéis e sempre favorável à Igreja Católica? Que se deve pensar deste respeito por todos os erros e desse estranho convite, feito por um católico a todos os dissidentes, a fortificarem suas convicções pelo estudo e delas fazer as fontes sempre mais abundantes de novas forças? Que se deve pensar de uma associação em que todas as religiões, e mesmo o livre-pensamento, podem manifestar-se altamente à vontade? Porque os sillonistas que, nas conferências públicas e em outras ocasiões proclamam ativamente sua fé individual, não pretendem certamente fechar a boca aos outros e impedir que o protestante afirme seu protestantismo e o cético, seu ceticismo. Que pensar, enfim, de um católico que ao entrar em seu círculo de estudos deixa na porta seu catolicismo, para não assustar seus camaradas que, “sonhando com uma ação social desinteressada, têm repugnância de a fazer servir ao triunfo de interesses de facções, ou mesmo de convicções, quaisquer que sejam?” Tal é a profissão da fé da nova Comissão Democrática de Ação Social, que herdou a maior tarefa da antiga organização, e que afirma, “desfazendo o equívoco em torno do “maior Sillon” tanto nos meios reacionários como nos meios anticlericais”, está aberta a todos os homens “respeitadores das forças morais e religiosas e convencidos de que nenhuma emancipação social verdadeira será possível sem o fermento de um generoso idealismo”.

Ah, sim! O equívoco está desfeito: a ação social do Sillon não é mais católica: o sillonista, como tal, não trabalha para uma facção, e “a Igreja, ele o diz, não deveria, por nenhum título, ser beneficiária das simpatias que sua ação possa suscitar”. Insinuação estranha, em verdade! Teme-se que a Igreja se aproveite, com objetivo egoísta e interesseiro, da ação social do Sillon, como se tudo o que aproveita à Igreja não aproveitasse à humanidade! Estranha inversão de idéias: a Igreja é que seria beneficiária da ação social, como se os maiores economistas já não houvessem reconhecido e demonstrado que a ação social é que, para ser real e fecunda, deve beneficiar-se da Igreja. Porém, mais estranhas ainda, ao mesmo tempo inquietantes e acabrunhadoras, são a audácia e a ligeireza de espírito de homens que se dizem católicos, e que sonham refundir a sociedade em tais condições, e estabelecer sobre a terra, por cima da Igreja Católica, “o reino da justiça e do amor”, com operários vindos de toda a parte, de todas as religiões ou sem religião, com ou sem crenças, contanto que se esqueçam do que os divide: suas convicções religiosas e filosóficas, e ponham em comum aquilo que os une: um generoso idealismo e forças morais adquiridas “onde possam”. Quando se pensa em tudo o que foi preciso de forças de ciência, de virtudes sobrenaturais para estabelecer a cidade cristã, e nos sofrimentos de milhões de mártires, e nas luzes dos Padres e dos Doutores da Igreja, no devotamento de todos os heróis da caridade, e numa poderosa Hierarquia nascida no céu, e nas torrentes de graça divina, e tudo isto edificado, travado, compenetrado pela Vida e pelo Espirito de Jesus Cristo, a Sabedoria de Deus, o Verbo feito homem, quando se pensa, dizíamos, em tudo isto, fica-se atemorizado ao ver novos apóstolos se encarniçarem por fazer melhor, através da comunhão num vago idealismo e em virtudes cívicas. Que é que eles querem produzir? Que é que sairá desta colaboração? Uma construção puramente verbal e quimérica, em que se verá coruscar promiscuamente, e numa confusão sedutora, as palavras liberdade, justiça, fraternidade e amor, igualdade e exaltação humana, e tudo baseado numa dignidade humana mal compreendida. Será uma agitação tumultuosa, estéril para o fim proposto, e que aproveitará aos agitadores de massas menos utopistas. Sim, na realidade, pode-se dizer que o Sillon escolta o socialismo, o olhar fixo numa quimera.

Tememos que ainda haja pior. O resultado desta promiscuidade em trabalho, o beneficiário desta ação social cosmopolita só poderá ser uma democracia, que não será nem católica, nem protestante, nem judaica; uma religião (porque o sillonismo, os chefes o afirmam, é uma religião) mais universal do que a Igreja Católica, reunindo todos os homens tornados, enfim, irmãos e camaradas no “reino de Deus”. “Não se trabalha para a Igreja, trabalha-se pela humanidade”.

E agora, penetrado da mais viva tristeza, nós nos perguntamos, Veneráveis Irmãos, onde foi parar o catolicismo do Sillon. Ah! Ele que dava outrora tão belas esperanças, esta torrente límpida e impetuosa foi captada em sua marcha pelos inimigos modernos da Igreja, e agora já não é mais do que um miserável afluente do grande movimento de apostasia organizada, em todos os países, para o estabelecimento de uma Igreja universal que não terá nem dogmas, nem hierarquia, nem regra para o espírito, nem freio para as paixões, e que, sob pretexto de liberdade e de dignidade humana, restauraria no mundo, se pudesse triunfar, o reino legal da fraude e da violência, e a opressão dos fracos, daqueles que sofrem e que trabalham.

Nós conhecemos demasiadamente os sombrios laboratórios em que se elaboram estas doutrinas deletérias, que não deveriam seduzir espíritos clarividentes. Os chefes do Sillon não souberam evitá-las: a exaltação de seus sentimentos, a cega bondade de seu coração, seu misticismo filosófico misturado com um tanto de iluminismo os impeliram para um novo Evangelho, no qual julgaram ver o verdadeiro Evangelho do Salvador, a tal ponto que ousam tratar Nosso Senhor Jesus Cristo com uma familiaridade soberanamente desrespeitosa, e que sendo o seu ideal aparentado com o da Revolução, não temem fazer entre o Evangelho e a Revolução aproximações blasfematórias, que não têm a escusa de haverem escapado de alguma improvisação tumultuosa.”


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