Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

"O santo do diabo"

 

 

 

 

Legionário, 13 de fevereiro de 1944, N. 601, pag. 2

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Íamos publicar alguns comentários acerca do último discurso do Sr. Adolph Hitler, pronunciado por ocasião da passagem do 11º aniversário de sua ascensão ao poder, quando recebemos a resposta serena e convincente do Revmo. Pe. Arlindo Vieira à biliosa carta enviada pelo Sr. Jacques Maritain ao "Diário" de Belo Horizonte. Julgamos dever dar preferência àquela importante colaboração, pelo que só hoje, com um atraso de duas semanas portanto, nos é possível dizer a nossos leitores alguma coisa acerca da última oração do "führer". O tema, entretanto, nada perdeu de sua atualidade, porque, tratado à luz das últimas reformas constitucionais operadas na Rússia, adquire uma precisão de aspectos verdadeiramente singular.

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Para bem compreendermos o alcance e o verdadeiro sentido do discurso do Sr. Adolf Hitler, devemos fazer antes de tudo uma análise sucinta da atual situação político-militar da Europa.

O Sr. Adolf Hitler não pode ter a menor dúvida de que está irremediavelmente perdido. Por toda a parte suas tropas passaram da ofensiva para a defensiva. Na Rússia, seus recuos são tais que dispensam descrições ou comentários. Nos Balcãs, na Itália, em toda a orla do Mediterrâneo enfim, os insucessos militares e diplomáticos do III Reich se vão acentuando com uma nitidez inclemente. Recuam as tropas pardas na Iugoslávia, recuam na Itália, agitam-se na França os sabotadores e os descontentes de toda ordem, treme e vacila a diplomacia luso-hispânica, a neutralidade otomana caminha prudentemente para um regime de colaboração cada vez mais clara com os aliados, a Bélgica e a Holanda se convulsionam em movimentos insofreáveis de reação, até na pacífica região dos frios escandinavos, índices alarmantes de descontentamento demonstram que o poderio nazista chegou ao seu termo.

Dos aliados, o "governo republicano" da Itália não passa de um fantasma; a Finlândia, descrente de qualquer sanção alemã, flirta escandalosamente com os Estados Unidos; o Japão humilhado, vencido em seu surto bélico inicial, impotente para conquistar as ilhas ou se espraiar na China, consome seus recursos em guerrilhas marítimas e terrestres inglórias, que passarão  a ser inteiramente inúteis para o Império do Sol Nascente quando os Aliados tiverem vencido na Europa, e por enquanto de quase nada adianta ao Reich. Com efeito, uma vitória nipônica, já agora inteiramente improvável, de que pode servir ao Sr. Hitler? Digamos que os japoneses cheguem a desembarcar na Austrália - só o Barão de Munchausen poderia admitir hoje tal hipótese - nada disto poderia retardar seriamente a preparação da segunda frente que representará para o nazismo a iminência próxima e irremediável do colapso final.  Tudo isto é o que se vê quando se percorre com os olhos os países não-alemães.

E dentro da Alemanha? Quem poderá exprimir o desaponto, a irritação, a apreensão, o ódio que em espessas labaredas há de subir a todos os momentos até os pés do odioso ditador, manifestando-lhe o imperioso desejo do povo teutônico, de que ele saia e saia já? De dentro da Alemanha, de fora, de todos os lados, cada minuto que passa traz ao Sr. Hitler um novo viso da iminência de sua ruína. Hitler está perdido. Ele o sabe, sabe-o o seu Estado Maior, sabem-no os aventureiros que constituem sua comitiva habitual. E, a despeito de tudo isto, Hitler luta. Por que não entrega o governo desde já? Por que não foge para a Suíça, onde possivelmente lhe reste alguma perspectiva de vida retirada e tranqüila, para temor e desgraça do mundo? Que espera ele, que deseja ele, com o que agora sucede?

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A resposta saltará, provavelmente espontânea e ingênua, a muitos lábios. Depois de ter podido considerar-se a dois passos do poder mundial, Adolph Hitler, déspota orgulhoso e tirânico entre os que mais o sejam, não se deixaria seduzir com o opróbrio de uma pequena vida burguesa na Suíça, passando entre o ódio de uns e o esquecimento de outros uma existência que seria precisamente o oposto de tudo quanto quis e sonhou. Preferiria ele mil e mil vezes a morte, a ruína, a execução capital trágica, em um patíbulo armado pela ira de todas as nações, a esse lento extinguir-se, retirado, tranqüilo, burguês, de leão que morre surdo, meio cego, velho, em uma jaula, depois de ter dominado pelo terror toda a vastidão dos desertos. Napoleão preferiu a aventura dos Cem Dias, ao pequeno reinado de opereta na ilha de ElbaHitler preferiria a tragédia de uma nova Santa Helena a um fim de vida à Sancho Pança.

Resposta ingênua, dizíamos, e com quanta razão! Não entremos na análise da psicologia de Hitler, que nos parece inteiramente deformada nas comparações que se estabelecem entre ele e Bonaparte. Hitler, a nosso ver, nada tem de heróico, senão as aparências que, segundo as necessidades do momento sabe tomar, como hábil comediante que é. A nosso ver, ele é um Sancho Pança que representa bem o papel de Dom Quixote. Nada mais. Mas essa tese é por demais delicada para ser susceptível de uma demonstração rigorosa, e para servir à cálculos políticos positivos, frios, técnicos. Deixemos, pois, de lado a pessoa de Hitler como a vemos, na nudez de sua personalidade psicológica pequenina e velhaca, e admitamos o paralelo que se traça entre ele e Napoleão. Por esse próprio paralelo, verificaremos como são insuficientes as explicações simplistas sobre a pertinácia e o orgulho de Hitler, para explicar a duração da resistência alemã.

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Tanto em sua primeira quanto em sua segunda abdicação, Napoleão não renunciou de bom grado ao poder. Antes dos "Cem dias", sobretudo, Napoleão que ainda não conhecera a extensão de sua catástrofe, quis resistir até o último contra os aliados. Mas ao lado dele, suportes de seu trono, instrumentos de seu poder, indispensáveis meios de sua ação, tinha ele inúmeros generais de primeira e de segunda ordem, diplomatas, políticos, financistas, literatos que eram a essência mais intima, a estrutura mais interna do sistema imperial. Associados aos lucros do regime nos dias de grandeza, mas já estafados pelas guerras sem fim, pelos riscos incessantes, pela perpétua instabilidade das instituições bonapartistas, os generais, os diplomatas, os senadores e os banqueiros de Napoleão já não queriam perseverar em seu serviço. Eles sabiam muito bem que a sorte que desabaria sobre Napoleão e os membros de sua família, sobre as figuras irremediavelmente ligadas ao seu destino, seria inexorável. Mas eles sabiam também que Napoleão simbolizava toda a resistência, que caindo sobre ele o raio da indignação européia, a opinião pública toleraria com fatigada indiferença a sobrevivência das ratazanas que haviam fugido a tempo dos avariados porões do bonapartismo, para a sombra de qualquer outro regime.

Para eles, uma existência confortável em Paris ainda tinha seus atrativos e suas doçuras e pouco se lhes dava que o direito a essa existência fosse conquistado à custa do opróbrio de Napoleão em Elba. Esse era o fato real: seus interesses se dissociavam dos de Napoleão: traíram o corso, como se trai um comparsa que começa a embaraçar. Em essência, é este o sentido das duas quedas de Napoleão.

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Há muito recanto do globo, em que se podem refugiar, não direi Hitler, nem Goering, nem Goebbels, nem Himmler, mas toda a incomensurável e influente camarilha dos cúmplices subalternos, das figuras de segunda plana, dos executores diretos dos crimes nazistas. Que de melhor para eles, do que preparar inesperadamente um colapso para o nazismo, retirando ao regime sua indispensável cooperação, entregando ao furor dos aliados os chefes nazistas mais famosos, e fugindo em todas as direções do globo, com as algibeiras abarrotadas de ouro, em aviões céleres do exército alemão? A Suíça já declarou que não entregará os trânsfugas de qualquer país à vendeta dos aliados ou seja à justiça de Deus e dos homens. Na Espanha, se Franco continuar no poder, muita gente encontrará guarida, sob nomes supostos, e com as vistas gordas da polícia falangista. Em Portugal, já há muito nazista refugiado, que, se não foi entregue até agora à justiça universal, não o será de futuro. E o mundo é grande. Depois de cinco anos de esconderijo prudente em alguma aldeola dos Andes, em algum ponto perdido do Congo, em alguma ilhota da Oceania, o furor dos aliados já terá amainado contra muito chefe nazista. Será o momento de deixar cair a máscara e gozar tranqüilamente a vida.

Pode ser que, de momento para outro, isto se tente. Mas não acreditamos em tal, antes da abertura de uma segunda frente que pode talvez ainda demorar meses. Por que? Há aí uma incógnita que, à luz dos pontos de vista desta Folha, se explica admiravelmente.

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Ora, é curioso que, se Hitler e seu incontável bando de asseclas não tivessem senão o intuito de servir a expansão comunista, não agiriam de outra forma.

Com efeito, à medida que a guerra se prolonga, a propaganda esquerdista vai procurando firmar por todo o mundo o prestígio da URSS.

Obrigados à preparação lenta e técnica de uma ofensiva ciclópica, os aliados anglo-americanos devem contentar-se no momento com operações militares desenvolvidas na Itália, entre tesouros religiosos e artísticos intangíveis, em uma atmosfera psicológica delicadíssima, onde cada passo deve ser medido antes de ser empreendido. O "homem da rua" não percebe nada disso. Mede no mapa o progresso anglo-americano. Mede, depois, o progresso russo, e conclui muitas vezes daí, que de fato, a vitória está sendo principalmente dos soviéticos. Pode-se imaginar todos os equívocos ideológicos, as ambigüidades sentimentais, os riscos espirituais que essa verificação sumária traz consigo.

A Rússia avança, e já vai estendendo sua influência pela Europa central. Hitler, gentilmente, vai recuando. Não que não lute. Mas esse paladino do anticomunismo prefere de tal maneira como desfecho da guerra que não pode vencer, a expansão russa à expansão anglo-americana que, perdendo embora na Rússia zonas territoriais imensas, exércitos inteiros, prefere deixar que isto se dê, a retirar da zona ocidental os exércitos imobilizados na Europa ocupada à espera de uma segunda frente. Cada polegada que Hitler perde na Rússia, perde-a em parte para manter no Ocidente europeu as forças que retardam a abertura da segunda frente. Em outros termos, colocado entre dois adversários, está nas mãos dele optar pelo avanço de um ou do outro. Optou pelo avanço dos comunistas e, por isto continua plenamente senhor do front ocidental em que tudo está tranqüilo, e defende - palmo a palmo, é certo - o front oriental apenas na medida do que lhe é possível.

Retenhamos esta conseqüência: entre a Rússia e a coligação anglo-americana, Hitler prefere o avanço da primeira. Derrotado, procura influir na configuração do mundo de amanhã. É este seu último crime.

Esta preferência pelo predomínio russo na Europa de amanhã transparece em seu discurso com uma clareza meridiana. É com prazer, com volúpia, esfregando as mãos de contente, que ele anuncia ao mundo que a vitória dos aliados será a vitória da Rússia. Hipócrita nisto como em tudo, ele omite de dizer que seu regime é idêntico, em essência, ao dos comunistas, e que sua vitória seria a dos comunistas de camisa parda. Com os exageros, as deformações, as mentiras, que lhe são próprias, traça o quadro de amanhã como sendo o de uma insofreável vitória do bolchevismo.

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A irrupção de Hitler na História é de um verdadeiro anjo das trevas semeando em torno de si a corrupção, a mentira, a confusão, malfazejo em toda linha, e procurando o maior detrimento da Cristandade com a obstinação com que um Santo Inácio de Loyola procurava a maior glória de Deus.

O povo possui por vezes um raro senso teológico. Conta-se que, quando os moleques do Rio ao tempo de Pedro I queimavam os Judas de trapos e palha, nos sábados de Aleluia, diziam que estavam queimando o "santo do diabo". O diabo, com efeito, tem pessoas que se devotam a ele até os extremos limites da degradação, como Deus tem os seus Santos.

Autêntico "santo do diabo", Hitler, esmagado, perdido, fracassado, conta ainda com sua coorte infernal para o supremo malefício: já que não pode esmagar a Cristandade vencendo esta guerra, procura tornar-lhe o mais difícil possível, o dia de amanhã.

 


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