Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
Interconfessionalismo nazista

 

 

 

 

Legionário, 6 de fevereiro de 1944, N. 600, pag. 3

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Publicamos hoje o histórico do início do conflito entre a Igreja e o nacional-socialismo, baseados no primeiro capítulo da obra de Robert d’Harcourt “Catholiques d’Allemagne”. Mais uma vez frisamos que a explicação da cegueira de muitos espíritos com relação ao perigo nazista se acha na capa “cristã” com que o partido se apresentou ao mundo, sustentando no artigo 24 de seu programa “o ponto de vista de um cristianismo positivo, sem se ligar, entretanto, a uma confissão determinada”.

Apesar das reiteradas advertências e condenações do Episcopado alemão, foi preciso que Roma falasse para tornar difícil a atitude dos incorrigíveis otimistas. Depois da Encíclica “Mit Brennender Sorge” denunciando o “calvário” dos fiéis e a “guerra de destruição” desencadeada contra a Igreja, depois da mensagem de Natal de 1937, estigmatizando uma “perseguição tal que tem havido poucas tão terríveis e tão graves” a posição de negação em bloco da opressão dos católicos sob o 3º. Reich se tornou insustentável.

Vejamos como começou a ser levantado o véu que encobria a hipocrisia desse Estado interconfessional que fazia alarde de ser “vital e positivamente cristão”.

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O mês de setembro de 1930 contém duas datas capitais na história das relações entre os católicos da Alemanha e o 3º. Reich.

A 14 setembro 6.400.000 eleitores votam pelo partido nacional-socialista e enviam 107 deputados ao Reichstag. O movimento cresceu com a violência elementar de uma maré montante. Sete parceiros reunidos em uma cervejaria em que Hitler ensaiava suas forças 890.000 eleitores em 1928. Mais de 6 milhões dois anos mais tarde. Eis as balizas da curva. Pela primeira vez o hitlerismo aparece como grande partido político e como uma potência com a qual se torna necessário contar.

O burguês dos partidos liberais ou do Centro esfrega os olhos e acredita estar sonhando. Manteve até essa ocasião para com o nacional socialismo uma atitude de superioridade e não consentiu a seu respeito nada além de uma curiosidade irônica. A doutrina do novo partido lhe parecia sair do romantismo revolucionário da adolescência. Toda aquela propaganda lhe parecia mais tumultuária que perigosa. Tais agitadores eram sobretudo sonhadores e essa vaga artificial não tardaria a morrer de encontro à praia. O nosso homem se recusava a levar a sério a ameaça. “Psicose da juventude” (Jugendpsychose), era a formula cômoda que ele havia tomado emprestada de seu jornal favorito. Os clichês são um abrigo seguro para a preguiça mental: têm ainda a vantagem de dar ao espírito uma espécie de segurança. “Psicose da juventude”: o eleitor burguês pegou a palavra e a colou maquinalmente como uma etiqueta sobre um movimento ao qual não queria conceder a honra de tratar como um perigo. O Reichstag, que sai das eleições de 14 de setembro, sacode bem rudemente essas posições de serenidade. Os números têm qualquer coisa de brutal e não deixam margem para ilusões. Uma certa inquietação se esconde sob o dar de ombros.

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A segunda data importante do mesmo período é o dia 30 de setembro de 1930. Foi exatamente nessa data que se manifestou a primeira atitude oficial da Igreja Católica com relação ao nacional-socialismo. Como acontece frequentemente, foi um mero incidente local e aparentemente de diminuta importância que desencadeou o debate entre a Igreja e o III Reich.

 

 

Igreja católica de São Bartolomeu, em Kirschhausen

Uma aldeia perdida na província de Hessen, o pequeno burgo de Kirschhausen é o ponto de partida de uma avalanche que assumirá as proporções que sabemos. Um lugarejo de nome desconhecido, em um dia do outono de 1930, faz sua entrada na história.

Que se passou? O cura do lugar, um humilde Padre do interior, foi levado a falar em sua prática dominical dos nazistas, que começavam a agitar e a fazer barulho na região. Em termos muito nítidos ele expõe a atitude da Igreja com relação ao partido nacional-socialista e notadamente adiantou três pontos: 1º) não ter nenhum católico o direito de ser membro do partido; 2º) não ser permitido aos membros do partido tomarem parte em formações coletivas para visitar uma sepultura em cemitério religioso ou qualquer outra cerimonia pública da Igreja; 3º) não pode haver nenhum membro inscrito no partido ser admitido à recepção dos sacramentos da Igreja.

A coisa transpira e essa prática de aldeia rapidamente sai dos limites da paróquia. O chefe local, o gauleiter da província de Hessen, lança mão do incidente e exige explicação ao Ordinário episcopal de Mayença. Elas lhe são prestadas com toda a celeridade desejada. O Bispo de Mayença, pela boca de seu Vigário Geral Mayer, prestigia inteira e resolutamente o cura da aldeia: ”As diretrizes às quais vossa carta faz alusão, fomos nós mesmos que a demos ao cura de Kirschhausen, o qual nos pedira instruções sobre a atitude a adotar para com o N.S.D.A.P. (abreviação clássica do Nacional-Socialistische-Deutsche-Arbeiter-Partei: partido nacional-socialista alemão dos trabalhadores). Essas diretrizes, nós as fornecemos, porque o programa do N.S.D.A.P. contém artigos inconciliáveis com a doutrina católica, notadamente o artigo 24 que nenhum católico pode aceitar sem renegar sua Fé em pontos essenciais”.

A resposta, como se vê, é de uma clareza completa. Nenhuma brecha foi deixada para equívocos. O Ordinário de Mayença desenvolve suas razões, escolhendo como pontos de ataque três parágrafos do famoso artigo 24 do programa oficial do partido racista.

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O primeiro parágrafo incriminado se apresenta a redação seguinte: “O partido nacional-socialista favorece a liberdade de todas as confissões religiosas no seio do Estado, na medida em que elas não constituem um perigo para a existência desse Estado”. Redação prudente e saturada de equívoco. Em outros parágrafos do mesmo artigo 24, especialmente consagrado ao ponto de vista religioso, se encontram de novo essas limitações calculadas, esse “Soweit” (na medida em que) matreiro, que permite retirar com uma das mãos o que se vem a conceder com a outra.

O Prelado de Mayença desejava inicialmente saber e com mais precisão, quais eram as confissões religiosas que podiam constituir um “perigo para o Estado”. Certas recordações históricas foram a esta altura muito pertinentemente evocadas. Não era verdade que no tempo de Bismarck e do Kulturkampf a Igreja Católica tinha sido tratada com “inimiga do Estado”? Não haviam os patriotas da época se apoiado então sobre a “razão nacional” para a perseguir e oprimir? As mesmas razões, ou os mesmos pretextos não podiam surgir de novo meio século mais tarde?

Não tinham os guardiães da doutrina racista, com a maior clareza possível, feito conhecer seu pensamento, justamente sobre o perigo representado para a nação pelo catolicismo romano? O Bispo de Mayença abre o comentário oficial dado por Gottfried Feder sobre o programa do partido e dele cita as linhas seguintes: “Os homens, mesmo alemães de nascimento, que exercem uma atividade consciente e destrutiva contra o povo alemão e contra o Estado, os homens que recebem do estrangeiro suas palavras de ordem políticas (nenhuma dúvida que aqui não sejam visados os fiéis das Igreja Católica Romana), se excluem por si mesmos da comunidade do destino alemão. Não tem eles, tanto quanto o judeu, um título ao exercício dos direitos do cidadão” (Comentário do programa do NSDAP, página 32)

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A segunda parte do artigo 24 do programa oficial do partido hitlerista contém as linhas seguintes: “Nós favorecemos a liberdade de todas as confissões religiosas no seio do Estado, na medida em que elas não estejam em conflito com o sentimento moral da raça germânica”. O Bispo de Mayença se baseia neste parágrafo para levar adiante seu ataque. Sob cada uma das palavras da segunda parte da frase, da parte condicional introduzida pela fórmula equivoca “soweit” (na medida em que...), afigura-se estar escondido um erro, um equívoco ou um perigo. Esta condição mais alta atribuída à raça, deixando em segunda plana a confissão religiosa, inverte a hierarquia de valores. A religião “não deve adaptar-se” à raça. A lei moral cristã, universal por essência, é soberanamente independente das atitudes e das biologias étnicas. E ademais não estaria já aberto o conflito que punha em oposição a lei religiosa e a lei da raça e no qual cabe à primeira se curvar diante da segunda? Não haverá conflito entre a lei de Cristo que impõe a caridade para com o próximo e a lei do nacional-socialismo que ordena o desprezo de toda raça estrangeira? Não somente a ideia central do parágrafo, a do primado da raça sobre a Fé, contém um erro fundamental, mas a própria escolha das palavras é perigosa. Que se esconde a rigor sob essa palavra elástica e vaga de “Gefühl” (sentimento)? E quais imperativos deverão ser esperados desse “sentimento” germânico? O Ordinário de Mayença recorda que, em matéria religiosa, não é o sentimento que decide, mas a inteligência e a vontade.

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Chegamos à terceira parte do artigo 24 assim formulada na carta nacional-socialista: “O partido como tal sustenta o ponto de vista de um cristianismo positivo, sem se ligar entretanto a uma confissão determinada”. Este “cristianismo positivo”, verdadeira fórmula-talismã de que o hitlerismo saberá fazer um uso tão generoso, não tanquiliza em nada o Ordinário de Mayença. O Vigário Geral não se deixa iludir por uma palavra na qual apenas vê um anteparo. Obrigada por esse anteparo se encontra uma igreja nacional-alemã (eine deutsche National Kirche: é a primeira vez, segundo acreditamos, que os católicos nomeiam por seu nome a igreja sonhada pelo racismo), que se projeta e que se deseja introduzir na Alemanha.

De fato, os chefes do N.S.D.A.P. não creem nem em um Deus sobrenatural nem em um cristianismo universal, “eles desejam um Deus alemão, um cristianismo alemão, uma Igreja alemã”. O Vigário Geral de Mayença, descobrindo tão nitidamente as manobras do nacional-socialismo toma o cuidado de não trair seu espírito e de não introduzir nenhuma deformação arbitrária. Contra o escrúpulo de uma interpretação subjetiva, ele é garantido pela própria clareza das declarações dos guardiães oficiais da doutrina. Será mesmo necessário interpretar essas declarações? Basta lê-las. Basta, por exemplo, abrir o comentário de Gottfried Feder à página 49: “Sem dúvida alguma, o povo alemão achará um dia para seu conhecimento de Deus e sua vida em Deus uma forma adaptada às exigências de seu sangue nórdico. Sem dúvida alguma, nós veremos um dia se formar a trindade do Sangue, da Fé e do Estado”, ou então a obra sobre o nacional-socialismo de um de seus fundadores, Rud Jung, que é do mesmo modo categórica:

“O fim de nosso esforço, nós o definiremos por uma palavra que resume tudo: uma Igreja do povo (Volkskirche), do povo alemão. Não pensamos de modo nenhum na fundação de uma nova Igreja, não sonhamos com qualquer ersatz do cristianismo sob forma de um culto de Wotan ressuscitado. Certamente, esses cultos antigos da Germânia são para nós grandes recordações às quais nos ligamos fielmente, mas há um milênio deixaram de existir, mesmo nas terras do Norte que foram seu último abrigo... Quando falamos de uma Igreja do povo alemão, não temos em vista senão o seguinte: a fusão das duas Igrejas que dominam o território alemão. Esta Igreja da Nação deverá romper todo laço com o centralismo romano, com o espírito internacional, com o Velho Testamento, todas as coisas especificamente judias. Ela deverá ser obra de Sacerdotes alemães, animados de um profundo amor de seu povo e penetrados de seu espirito”.

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Apoiado sobre textos oficiais e tão precisos do nacional-socialismo, como vai concluir o Ordinário de Mayença? Pelas linhas seguintes que nos contentamos em reproduzir:

“Uma semelhante concepção da religião impõe aos nacionais-socialistas uma posição de hostilidade para com a Igreja Católica. O tema abertamente expresso em várias reuniões públicas tem sido: nossa luta é dirigida contra Judá e Roma. Sem dúvida há no livro de Adolph Hitler Mein Kampf algumas passagens nas quais o autor se exprime com respeito sobre a religião cristã e as instituições católicas. Essas passagens não conseguem nos dissuadir da oposição que existe entre a política cultural do nacional-socialismo e o cristianismo católico. A exposição que precede contém a resposta às três perguntas que nos foram formuladas:

1a. – Um católico pode ser membro inscrito do partido hitlerista?

2a. – Um Sacerdote católico se acha autorizado a permitir que os membros do partido hitlerista tomem parte coletivamente em cerimônia da Igreja tais como enterros?

3a. – Um católico que adere aos princípios do partido poderá ser admitido à recepção dos Sacramentos?

A estas três perguntas devemos responder com um NÃO”.


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