Plinio Corrêa de Oliveira

 

Comentando...
 
As origens da crise contemporânea

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 16 de janeiro de 1944, N. 597, pag. 2

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Certo escritor francês manifestava grande admiração pelo gênio de sua cozinheira, que conseguia assinar o nome próprio sem uma letra sequer das que deviam nele figurar, pois transformava Sophie em Çaufy.

Mais uma vez, porém, a Europa se curva diante do Brasil. O sr. Heraldo Barbuy é o herói de proeza muito mais notável, pois conseguiu escrever um alentado volume sobre as origens da crise contemporânea, sem acertar sequer com uma das verdadeiras causas explicativas da encruzilhada em que atualmente se acha a humanidade.

E a razão desse prodígio é muito simples: o sr. Barbuy, como todo liberal e racionalista, nega o pecado original. Daí nega a Redenção, o maior fato histórico registrado desde a criação do mundo.

Para perpetuar sua doutrina e seu exemplo, fundou Nosso Senhor a Santa Igreja, que pelo ensinamento de seus doutores e pelos exemplos de seus santos, há vinte séculos vem mostrando aos homens o verdadeiro caminho da salvação. E à medida que a nova concepção de vida trazida à terra por Nosso Senhor Jesus Cristo entrou nas inteligências e ganhou os corações, a sociedade passou por uma transformação radical, somente negada pelos que fingem desconhecer a existência do sol mediante o processo simplista de fechar os olhos.

As virtudes adquiridas pelos esforços pessoais se transformaram pela educação de geração em geração, e assim se formou pouco a pouco a nova hierarquia social, fundada, não mais sobre a força e seus abusos, mas sobre o mérito: em baixo, as famílias que se detinham na virtude do trabalho; no meio, os que, sabendo juntar ao trabalho a moderação no uso dos bens que ele oferecia, fundaram a propriedade pela poupança; no alto, as que, abandonando comodidades e com admirável desprendimento, se elevaram às sublimes virtudes do devotamente ao próximo: povo, burguesia, aristocracia. As famílias se escalonavam no mérito ascendente das virtudes transmitidas de geração em geração.

Esta foi a grande obra da Idade Média: lutou contra o mal que provinha das diversas seitas do paganismo e o destruiu; transformou os bons elementos que se encontravam entre os antigos romanos e as diversas raças bárbaras. Enfim, fez triunfar a ideia que Nosso Senhor havia dado da verdadeira civilização.

Os homens da Idade Média eram da mesma natureza que a nossa, natureza inferior à dos anjos e, ademais, decaída pelo pecado original. Tinham nossas paixões, deixando-se, como ainda hoje, algumas vezes levar por elas, até aos maiores excessos. Mas reconheciam que seu fim último era a vida eterna. As leis, os costumes, tudo se inspirava nesse fim. Nada existia na Idade Média de puramente “profano”, separado do respeito e do amor devido a Deus. As instituições civis dirigiam os homens para seu fim último e as atividades humanas visavam, em primeiro lugar, a melhoria do homem interior.

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É um erro, porém, tomar como sinônimos catolicismo e medievalismo. O catolicismo foi um dos grandes elementos da Idade Média, o maior, não há dúvida. Imperava então o verdadeiro conceito da Cristandade. A Igreja, porém, é sempre superior aos séculos, não lhe faltando ontem como hoje a assistência divina.

Ora, não pensa assim o sr. Heraldo Barbuy. Em recente artigo publicado na “Folha da Manhã”, chega à conclusão que “a Igreja sustenta o Castelo e o Castelo sustenta a Igreja. Ambos se protegem e se nutrem”. E mais adiante afirma: “A morte do Castelo foi a morte do legendário e também a morte do transcendente”. Como se não bastasse esse atestado de óbito passado à Igreja, esclarece o autor em seguida que “em dois séculos de penetração o racionalismo leva de vencida todos os princípios religiosos”. E assim, aos trancos, vamos sendo carregados através da história, até chegarmos ao século XIX. Confessando-se partidário do espírito e inimigo da matéria, pois até cita Allan Kardec em seu livro, não ficava bem que nesse artigo o autor deixasse a humanidade órfã com a morte da Igreja. E por isso no século XIX “a religião se transformava em socialismo”. Encontramos enfim com que preencher o vazio deixado pela morte do cristianismo. “O espírito religioso da Idade Média muda de forma no século XIX forjando a religião da humanidade”. Augusto Comte encontra um destemeroso adversário no sr. Barbuy. Não é positivismo a nova religião da humanidade, mas o socialismo.

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O artigo em questão esclarece o que no livro talvez possa ter ficado obscuro. As origens da crise contemporânea não se acham na negação do pecado original e no desprezo da grandiosa obra de redenção realizada por Nosso Senhor e por sua Igreja, mas nos preconceitos deixados pela velha crença. O socialismo transformaria a terra em novo paraíso de delícias. Subjugando as forças cegas da natureza e dominando a máquina numa era socialista em que impere a técnica, os homens cada vez mais se tornarão livres da pena do trabalho e chegará o dia em que o sr. Barbuy prevê que as máquinas trabalharão sozinhas. E então a humanidade, feliz e despreocupada, poderá se dedicar aos verdadeiros deleites do espírito, entrando na fila pela manhã para receber sua parcela de pão das mãos do Estado – socialista-totalitário -, passando o dia no Estádio assistindo a exibição dos últimos “cracks” e frequentando à noite o elevado ambiente das macumbas.


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