Plinio Corrêa de Oliveira

 

Pastor Angelicus

 

 

 

 

 

 

Legionário, N.o 568, 27 de junho de 1943

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Pretendíamos continuar, hoje, nossa série de artigos sobre a última alocução do Santo Padre Pio XII aos operários italianos. A proximidade do “dia do Papa” nos obriga a suspender a seqüência do assunto que vínhamos expondo. Com efeito, as palavras do Sumo Pontífice, proferidas para o público que tinha diante de si, se destinavam não obstante a um âmbito muito mais vasto. Falando aos operários italianos, o Sumo Pontífice teve em mente, na realidade, o universo inteiro. É o que se deduz do próprio contexto da alocução, e dos momentosos problemas relacionados com a política internacional de que o Sumo Pontífice tratou. Na semana consagrada ao Santo Padre, vem, pois, muito a propósito que tratemos da política internacional de Pio XII. E isto tanto mais quanto, neste domínio mais talvez do que em qualquer outro, se revela toda a alma terna, forte e generosa daquele que uma profecia autêntica ou não, mas em todo o caso muito aplicável ao assunto, cognomina “Pastor Angelicus”.

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A posição internacional de Pio XII é das mais complexas. Com efeito, tem o Santo Padre dois problemas a considerar, problemas de ordens inteiramente diversas mas que, precisamente porque existem no mesmo mundo, indiretamente se entrelaçam e se agravam.

O primeiro problema é internacional. No seu aspecto mais largo, ele se põe para a Igreja em termos simples e cruéis: de um lado uma gentilidade oriental cada vez mais nacionalista, mais aferrada à sua idolatria, mais hostil às missões e à expansão católica; do outro lado uma cristandade profundamente dilacerada, cujos membros reciprocamente se guerreiam com afinco, e em cujas lutas intestinas os gentios vão tendo influência cada vez maior. Tudo isto retarda o progresso do Ocidente cristão, desprestigia profundamente aos olhos do mundo o seu ascendente, golpeia a fundo a consideração em que estavam os valores morais da civilização cristã, até mesmo aos olhos dos que viviam longe da divina luz dos Evangelhos. A técnica põe o progresso ao alcance do Oriente gentio. A técnica serve para que o Ocidente cristão mais depressa se destrua. Conclusão: lutas fratricidas, em que se ofende a Deus, se perdem bens espirituais e materiais inestimáveis, e se deslustra pelo mundo o nome de cristão.

O segundo problema é puramente ideológico. Não teremos tempo de tratar dele. Mencionamo-lo apenas. Nessa pobre cristandade tão dilacerada no campo político, por mais trágica que seja a efusão de sangue cristão por mãos cristãs em campo de batalha, há coisa ainda mais triste. É a desunião religiosa. Os cismáticos, os hereges pululam no mundo cristão. A chaga aberta por Fócio e Miguel Cerulário ainda estava escancarada quando Lutero, separando-se de Roma, perpetrou o maior crime da História depois de Judas Iscariotes. O mundo cristão geme, sofre e sangra nestas duas imensas chagas. E a estas se somam as inúmeras correntes heterodoxas, sobretudo de caráter social ou filosófico, que a todo momento procuram insinuar-se até nas fileiras católicas, desvirtuando os espíritos, transformando as mentalidades, e semeando joios de mil aspectos – socialismo, totalitarismo, etc., etc. – no campo do Pai de família. De um e de outro lado das trincheiras, as doutrinas erradas caminham céleres. E o Papa Mestre supremo e infalível da Verdade, tem a incumbência de abater o erro. De onde, para a Santa Sé, novo e angustioso problema.

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Em política internacional, a orientação do Santo Padre, extremamente subtil, indica a amplitude de suas vistas políticas e de seu coração de Pai. O Sumo Pontífice, lamentando embora a guerra, jamais se colocou na linha de um pacifismo incondicional e exagerado. O Santo Padre indicou às nações injustamente agredidas a atitude de reação e de esforço que lhes cabia, nos famosos telegramas que endereçou aos reis da Bélgica e da Holanda, bem como à Grã-duquesa do Luxemburgo, por ocasião da invasão nazista. Tanto quanto eu sabia, há talvez mais de um século, um Papa não tomava tão claramente partido, em uma luta internacional, por um país qualquer, como o fez o atual Pontífice. Mas, por outro lado, e embora desligando claramente a atitude da Santa Igreja da política pacifista à outrance que seria um suicídio, Pio XII tinha diante de si uma grande tarefa a realizar. E era de, através das angústias dos dias de hoje, preparar a paz de amanhã.

Jamais compreenderemos a política internacional de Pio XII se não tomarmos em consideração sua norma essencial. E ela consiste em que a paz deve resultar da justiça na vida internacional, e da concórdia nos corações. Não, evidentemente, uma concórdia qualquer. Mas uma verdadeira caridade fraterna e sobrenatural que, fazendo sentir intensamente a todos os povos cristãos, e muito especialmente aos católicos que são os únicos cristãos completos, que a concórdia na justiça e no amor é o mais belo apanágio de sua civilização, desarme ódios, dissipe prevenções, e torne o ambiente inteiramente hostil a novos empreendimentos guerreiros.

Este segundo pensamento merece ser mais cuidadosamente desenvolvido. É o que procuraremos fazer.

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À primeira vista, parece haver certa contradição entre a idéia do Pontífice de que a paz só pode resultar da justiça, e seu desejo de concórdia: enquanto houver homens injustos, não poderá haver paz, neste caso. E é verdade. A inércia dos bons ante a sistemática agressão dos provocadores não é sempre um fator de paz, mas, freqüentemente, uma causa de guerra, pois que os provocadores, estimulados pela carência de qualquer reação, facilmente passarão da provocação à agressão, tornando então inevitável o combate.

Mas as vistas do Santo Padre são mais profundas. Se da parte de todos os católicos houver um trabalho pertinaz, sistemático, invariável, para eliminar as incompreensões, apontar a solução eqüitativa de problemas que os elementos interessados em manter o mundo em perpétua luta costumam criar e envenenar, se houver sobretudo um sistemático trabalho contra o amor próprio nacionalista que é uma das pragas de nossos dias, e que leva todos os homens a perderem o bom senso, o equilíbrio, a serenidade desde que sua Pátria esteja afetada por qualquer problema, e isto de tal sorte que nem sequer eles podem compreender ou mesmo ouvir as queixas e analisar as gravamina dos adversários; se todo esse trabalho se desenvolver, dizíamos, num sentido pacífico, o próprio ambiente internacional a tal ponto se descongestionará, que uma nova guerra se tornará muito menos provável.

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O essencial para que a paz seja durável consiste, pois, primeiramente em que a vitória repare as injustiças sem criar injustiças novas e, em segundo lugar, que reparadas as injustiças que causaram a guerra, o espírito de ódio desapareça quanto antes dentre os povos. Lutemos com vigor, com denodo, com heroísmo. Mas deixemos limpo o campo para amanhã. Não guardemos em nossos corações aqueles mananciais de ódios e de ressentimentos dos quais brotará a guerra futura da guerra presente, como a guerra presente brotou da guerra passada.

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E especialmente entre nações católicas este pensamento deve preponderar. É para a Santa Igreja importantíssimo que os países católicos não se deixem dividir. Agredidos, prossigamos na defesa enérgica e viril de nossos direitos. Lembremo-nos, entretanto, que a legítima defesa nunca é uma fonte de ódio, e não permitamos que em nossos corações se ergam barreiras intransponíveis para o futuro convívio pacífico de todos os povos católicos no grande rebanho de Nosso Senhor Jesus Cristo, que é a Igreja Católica.

É esta a linha de conduta uniforme do “Legionário”. Tivemos muita ocasião em que um imperioso dever de consciência nos forçou a atacar regimes e estadistas estrangeiros. Jamais, entretanto, consentimos em amesquinhar povos e nações estrangeiras, especialmente quando católicos. Situando-nos no terreno meramente espiritual e doutrinário, analisamos os acontecimentos do prisma exclusivo do interesse da Igreja que é, em cada país, o interesse espiritual dos católicos ali residentes. Nossa política internacional poderia ser resumida na frase de São Paulo: “Quem não sofre que eu não sofra também com ele?” Quando a entrada do Brasil na guerra nos forçou a considerar também o aspecto temporal do problema, que nos levou, como é obvio, a uma solidariedade entusiástica com nossa Pátria, continuamos a conservar sem rancor nosso coração.

É próprio do Brasil combater como combatia São Luís IX, Rei de França: ninguém tão rijo na luta, ninguém tão moderado na vitória, ninguém tão compassivo ante a desgraça do vencido. Reivindicava seus direitos em toda linha, com heróico vigor. Mas, reparados os seus direitos, podia-se ver que nenhum ódio tivera seu grande coração.

São Luis IX, batalha de Taillebourg

Preconizando esta política, adotando-a, comentando-a, pensamos que melhor homenagem não poderíamos prestar ao grande e angélico coração de Pio XII.


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