Plinio Corrêa de Oliveira
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Legionário, 10 de janeiro de 1943, N. 544, pag. 2 |
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A morte tem dois aspectos. O primeiro, é o aspecto biológico: é a decomposição de um agregado químico instável, e que já não se consegue manter; são extravasamentos de humores e um deplorável e incoercível fracasso orgânico, contra toda a compostura e conveniência. É o corpo humano, ideal de beleza física de todos os artistas, que, após haver passado toda a vida a produzir coisas repugnantes, acaba por se transformar, ele próprio numa coisa repugnante. Durante toda a vida luta o homem para que o seu corpo não seja lixo: banhos, perfumes, unguentos, remédios, artifícios da higiene e da medicina, tudo é empregado para dar ao corpo uma aparência de estabilidade de permanência de vida perene e incorruptível. Vem a morte, e patenteia a realidade mais recôndita, mais profunda e mais característica deste corpo: transformá-lo em lixo, e começa a transformá-lo em lixo muitas vezes antes mesmo da vida se haver completamente extinguido. Por este aspecto, a morte é sórdida e repelente. Mas a morte tem outro aspecto. E por este outro aspecto, a morte é um fato eminentemente humano, o fato mais notável de toda a vida, e em certo sentido, o mais augusto. Pois a morte arranca o homem da vulgaridade quotidiana, desta armação de ninharias, que costuma ser a trama da vida do comum da humanidade, e o coloca face a face, brutalmente, com o tremendo mistério de sua eternidade, patenteando que a vida de todo homem é uma epopeia, epopeia frustrada, ou epopeia realizada. Por aí, a morte se alça acima do que ela tem de sórdido e repelente: mais do que isso, a sua própria sordidez contribui para torná-la mais grandiosa, na sua trágica magnificência. Por isso a morte tem sido a inspiradora das mais sublimes obras primas, desde a tragédia grega até a 3.ª Sinfonia de Beethoven. E quem não percebe que aquilo que mais pode dignificar e enobrecer o homem, o heroísmo, tem íntimas afinidades com a morte? É por esta razão que o homem sempre tem cercado a morte de solenidades sombrias e de pompas cheias de gravidade; é um tributo que ele deve a si, e à própria morte. À Igreja, de um modo todo especial, pois foi Ela que revelou à humanidade o sentido mais profundo da vida e da morte, deu às comemorações fúnebres o mais justo e apropriado esplendor, não só pelo sufrágio das almas, como pelas lições que apresenta à meditação dos fiéis.
Cortejo fúnebre no bairro do Bom Retiro, na capital paulista, em 1916. Clique no link do riquíssimo site "São Paulo Antiga", para poder ampliar esta foto e visualizar muitas outras sobre os mais diversos assuntos relativos ao tema principal daquele mencionado site. http://www.saopauloantiga.com.br/a-casa-rodovalho/ Ora, a pompa fúnebre, tal como a inculcou a Igreja, indo ao encontro das inclinações naturais dos homens, está em vésperas de sofrer formidável mutilação, aqui em São Paulo. De fato, anunciaram os jornais que a Prefeitura vai substituir os antigos coches fúnebres, que, na sua imponência e pesado luxo, e mesmo no seu anacronismo, refletiam tão bem as idéias que vimos expondo, vão ser substituídos por modernos caminhões, mais ou menos semelhantes aos de que se servem as casas elegantes para fazer entregas de embrulhos. Nestes modernos caminhões, nada que lembre a morte, nem ao menos uma cruz! Esta iniciativa da Prefeitura, à primeira vista sem maior importância, envolve, contudo, toda uma filosofia, toda uma concepção da vida. E, pesa-nos dizer, trata-se de uma filosofia materialista. A Prefeitura considerou apenas o primeiro aspecto da morte, o seu aspecto biológico. Viu apenas o que ela tem de sórdido, de necessidade orgânica, e tratou-a como os povos civilizados tratam os fatos mais baixos da animalidade humana: com higiene e com exterioridades agradáveis, que façam esquecer o que há de repugnante. A nobreza da morte, que se confunde com a nobreza da pessoa humana, foi esquecida, se não foi repelida. E dizer que há gente morrendo para salvar os valores humanos contra a barbárie [totalitária, referindo-se à II Guerra Mundial, então em curso, n.d.c.]. |