Plinio Corrêa de Oliveira

 

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O papel

 

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 29 de novembro de 1942, N. 538, pag. 2

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Uma das observações mais agudas de Papini [Giovanni P., 1881-1956] é a de que o enorme peso da civilização moderna não repousa nem sobre ferro, nem sobre o petróleo, nem sobre o carvão, nem sobre a eletricidade, nem sobre a técnica, como poderia parecer à primeira vista; repousa sobre o papel. Aliás, antes de Papini, já Rui Barbosa havia pressentido esta grande verdade, quando escreveu frases candentes de indignação a respeito dos célebres “farrapos de papel” do celebérrimo Bethmann-Holweg. De fato, a parte mais delicada e fundamental da civilização moderna, a saber, o seu aspecto transnacional (?), assenta sobre o papel. Nem ao menos sobre o pergaminho, papiros ou ladrilhos cozidos (como ainda fazia notar, maliciosamente, Papini), que são materiais resistentes, mas sobre o simples papel ordinário, feito de pasta de celulose.

Isto é muito interessante. O homem moderno, à força de desenvolver o que há de mais mesquinho na natureza humana, à força de se diminuir, de se mediocrizar e de se envaidecer de sua própria pessoinha, acabou por perder o contacto com a realidade objetiva, com a vida, com os valores morais, que ele traiu para satisfazer interessinhos liliputianos [minúsculos, n.d.c.], e criou para si um mundo artificial, armado em ficções e em fórmulas verbais. Assim, o homem moderno não acredita mais na alma espiritual, na honra, na dignidade, no desinteresse, no sacrifício, na verdade, na vida, pois o homem moderno, depravado e vaidoso, esvaziou o sentido de todas as coisas. Só uma crença ele tem: superstição do papel, o fetichismo do papelório burocrático, o tabu dos rótulos oficiais.

As noções fundamentais de legítimo e ilegítimo, falso e verdadeiro, moral e imoral passaram a estar na dependência exclusiva de papéis garatujados. Vejam-se, por exemplo, estas pessoas que se casam no Uruguai e alhures: elas não querem saber se, na realidade, o seu estado é de sem-vergonhice declarada; basta-lhes que um papel, timbrado e selado, afirme que são casadas. É curioso notar como, quanto mais as pessoas se livram dos chamados preconceitos sociais, mais se escravizam ao preconceito do papel. E a influência do papel está crescendo tanto, que já tem havido casos de indivíduos se tornarem subitamente geniais, em virtude de um papel, e depois, abandonarem resignadamente esta genialidade, em virtude de outro papel. E não é só: há uma corrente jurídica que  pretende, empregando apenas o papel, sanear completamente o ambiente social. Até hoje, juristas e moralistas antiquados, pretendem extirpar os males sociais procurando adaptar a conduta humana à regra, à norma. Mas agora se descobriu um processo mais eficiente: adaptar a norma à conduta humana, escrevendo no papel novas disposições legais; assim se eliminarão, de um só golpe, todos os crimes.

Até já estamos pensando que se poderá adotar uma medida de extraordinário alcance biológico, higiênico e econômico: a organização de um alimento único, especialmente dosado, em calorias e vitaminas, para o nosso clima e o nosso povo. E, para evitar a monotonia do sabor, que poderia vir a tirar o apetite de muita gente, alguns tabeliães teriam, como único ofício, a incumbência de fazer certidões de várias classes que seriam apostas às porções do alimento único, que, assim, passariam a denominar-se: Sopa de Aspargos, Peru à Brasileira, Leitão Assado etc.

Essas reflexões, ocorreram-nos ao ver que certas pessoas, talvez oficiais do Registro Civil, querem mover uma companha contra os matrimônios constituídos só no religioso. Para aquelas pessoas, os casais assim constituídos vivem em mancebia, o que lhes repugna ao de(susado) [erro tipográfico no original; a palavra foi completada por este site, ficando sujeita, pois, a melhor complementação – n.d.c.] senso moral.


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