Plinio Corrêa de Oliveira

 

Missões e política

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 18 de outubro de 1942, N. 532, pag. 4

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O conhecido jornalista Cristóvão Dantas acaba de fazer, em um artigo publicado no “Diário da Noite”, interessante comentário acerca da futura situação política do Extremo Oriente. E como os problemas debatidos naquele artigo se relacionam, muito de perto, com a expansão missionária que a Santa Igreja coloca particularmente na ordem do dia durante o mês de outubro, será interessante que lhes consagremos algumas linhas.

* * *

Mostra o Sr. Cristóvão Dantas que, qualquer que seja o desfecho da presente conflagração mundial, quer a vitória caiba à China quer ao Japão no Extremo Oriente, uma coisa é absolutamente certa: o sentimento regionalista se desenvolveu de um e outro lado das trincheiras que dividem presentemente a raça amarela e qualquer dos contendores, obtida a palma da vitória, desta se servirá para escorraçar do litoral asiático do Oceano Pacífico toda a influência político-militar da Europa.

Há algum tempo, missionário muito informado dos assuntos chineses fazia, aqui, idêntica declaração. Dizia ele que os chineses, e não somente os japoneses, influenciados talvez pelo próprio Ocidente que se consome em uma febre de nacionalismo intolerante e exagerado, têm como indiscutível que sua vitória marcará a eliminação da hegemonia europeia no Extremo Oriente e a afirmação definitiva do domínio amarelo em toda a Ásia oriental. Quanto a esta tese, chineses e nipônicos estão de acordo: o Oriente asiático é para os asiáticos orientais. A luta entre os dois povos versa somente sobre qual dos dois deterá nas mãos o cetro da hegemonia.

É óbvio que esse movimento terá outras repercussões. Assim, na Índia o regionalismo racista se acentuará fortemente, com a vitória, quer seja ela obtida pelos chineses quer pelos japoneses. E, em última análise, o espetáculo que teremos diante de nós consistirá na formação de vastos blocos raciais e nacionalistas no Extremo Oriente, todos acordes em impedir qualquer domínio ocidental naquelas plagas.

Para completar o quadro, repitamos aqui o que por mais de uma vez o LEGIONÁRIO tem publicado. O êxito do paganismo europeu encabeçado pelo Sr. Adolf Hitler despertou consideravelmente no Extremo Oriente a ressurreição dos velhos cultos pagãos.

Outrora, o paganismo representava, no Oriente, uma posição que começava a se envergonhar de si mesma, que se sentia à margem do progresso e da civilização, definitivamente superada e tornada anacrônica pela penetração triunfante da influência ocidental. Mas as coisas mudaram. E os bonzos, brâmanes etc., já não vêm porque não hão de adorar com desenvoltura seus deuses quando, em pleno Ocidente, um Sr. Hitler, um Sr. Rosenberg et caterva, adoram ostensivamente o sol, a primavera, a raça e outros deuses do mesmo estilo.

Daí um renascimento do paganismo no Oriente, que já passou do Japão para a China e Coréia, e daí para a Indochina e Índia. Não espantará que conquiste, mesmo, as populações indígenas da Oceania.

Diante de todo esse movimento, em que posição ficam as missões católicas? Eis o grande problema que nosso coração de fiéis de Jesus Cristo formula. E infelizmente, se bem que seja cedo para se lhe dar resposta cabal, força é convir em que os primeiros elementos que se delineiam para uma solução são contristadores.

No Extremo Oriente se confundem Cristianismo e Ocidente. Nega-se a distinção essencial existente entre a Igreja Católica e certas expressões odiosas de uma cultura que já não é dEla senão em alguns de seus traços mais vagos e mais gerais. E não é só. O que o Catolicismo tem de mais típico, de mais característico, é representado como produto genuíno de um espírito alienígena que no Extremo Oriente não pode e não deve medrar. Quanto à submissão a Roma papal, ela é apresentada, pelos vanguardeiros do movimento pan-asiático, como um vínculo insuportável, que torna a Igreja incompatível com os anseios mais profundos e insopitáveis da nova mentalidade do Extremo Oriente.

Em outros termos, trabalha-se na Ásia para, guerreando o Ocidente, expulsar também dali toda a obra benemérita dos missionários católicos.

* * *

Em que sentido se deve orientar, à vista de tudo isto, a atitude missionária dos católicos ocidentais?

Seria longo dar uma justificativa completa dos vários princípios que, a este respeito, julgamos interessante enunciar. Mas, ao menos em rápidas palavras, digamos alguma coisa sobre cada um deles.

Antes de tudo, devemos estabelecer uma distinção forte e clara entre Ocidente e Igreja. O Santo Padre Pio XI, em termos de uma energia que, neste assunto, talvez não tenha sido superada por qualquer de seus predecessores, fustigou o louco intento de certos governos de transformar a obra missionária em meio de penetração nacionalista. São muitas e impressionantes as declarações em que o grande Pontífice acentua que as benemeritíssimas Ordens e Congregações Religiosas que se dedicam ao apostolado missionário conquistam terras e almas, não para o domínio de um determinado povo, nem sequer para a grandeza de alguns institutos católicos, mas única e exclusivamente para Nosso Senhor Jesus Cristo e Sua Esposa mística, a Santa Igreja.

Por maiores que sejam as vantagens auferidas pela obra missionária, como ocultar suas verdadeiras finalidades sob pretexto de expansão nacionalista, deve ela renunciar absolutamente a tal. Ou a obra missionária é feita com espírito de Fé, ou não vencerá. E o espírito de Fé proíbe imperiosamente que se transforme a pregação dos princípios católicos em um pretexto para ação nacionalista. Esta atitude da Santa Sé produziu frutos fecundíssimos. E ainda recentemente pudemos admirar, na exposição missionária reunida por ocasião do Congresso Eucarístico, o respeito e até o entusiasmo que as missões católicas professam pela belíssima arte e alta cultura de cada país missionário. Sobretudo os "stands" a cargo dos RR.PP. Jesuítas e do Verbo Divino são ricos em objetos de arte do Oriente, foram eloquentíssimos neste sentido. No destes últimos, notava-se uma série impressionante de quadros chineses admiráveis, tendo por tema cenas evangélicas. Diga-se de passagem que qualquer receio manifestado a propósito da ação eventualmente desnacionalizadora dos Missionários admiráveis que trabalham no nosso interior se mostra, com isto, inteiramente infundado.

Em segundo lugar, é preciso acentuar fortemente que a Igreja não endossa, de modo algum, a civilização e a cultura ocidentais como hoje se encontram. O mundo ocidental é um mundo que apostatou. E suas obras, mesmo as mais brilhantes, trazem recôndito, na medula, o veneno de todas as apostasias: a corrupção, a desorganização, a morte.

A Igreja não quer, não pode endossar, não endossa e não endossará jamais alguns dos frutos da penetração ocidental no Oriente, verdadeiramente nefastíssimos, que tiveram como consequência a subversão de uma ordem de coisas rotineira, é certa, mas milenar e impregnada de uma incontestável grandeza, e sua substituição por um progresso febricitante, que aproxima a humanidade não da vida e da vitória, mas do caos e da ruína.

As obras boas dos apóstatas levam consigo a mácula da apostasia, enquanto eles não se regeneram. E, por isto, todo o progresso contemporâneo de caráter material - que é bom - manejado por homens ímpios e perversos, tem por fruto o mal.

Estes são os pontos em que podemos e devemos fazer aos legítimos ressentimentos dos orientais as justas concessões a que tem direito.

Entretanto, há também erros a que é preciso resistir, e resistir de frente.

Antes de tudo, é preciso bradar a este Oriente que se transvia que é falso, é errôneo, é injusto pretender que a dependência de Roma significa a dependência da Europa. Depender da Roma dos Papas é depender de Nosso Senhor Jesus Cristo, e tão somente dEle. A prova disto está inconcussa e meridianamente clara no exemplo dos povos da América Latina. Católicos todos eles, proclamaram suas independências quanto à Europa muito cedo, sem que Roma servisse de instrumento para qualquer tentativa de retardamento do fato, e sem que com esta dependência os laços que nos prendem à Cátedra de São Pedro se afrouxassem no que quer que seja.

Se o continente americano soube distinguir tão bem a dependência política à Europa, da dependência espiritual a Roma, porque não o poderá fazer a Ásia, que tem em nosso exemplo a prova de que ambas as coisas são inteiramente distintas?

Em terceiro lugar, reconhecendo embora, e proclamado até que a cultura ocidental tem máculas gravíssimas que resultam de sua ruptura com a Santa Igreja de Deus, não devemos deixar que ela [seja] amaldiçoada ou rejeitada em bloco pelo Oriente. Com efeito, a cultura ocidental ainda tem algo de cristão, e rejeitá-la em bloco significa rejeitar, com ela, coisas que a Igreja reputa essenciais. E como a Igreja é monolítica e não pode ser aceita ou rejeitada senão em bloco, rejeitar coisas que a Igreja reputa essenciais, implica em rejeitar a Igreja inteira.

Quanto à maldição, também é um erro. Se a cultura ocidental está corrompida até em suas fibras mais profundas - do que nenhum católico pode duvidar desde que Pio XI escreveu que estamos ameaçados de cair em estado pior do que o que existia no mundo antes da redenção - nem por isto deixa de ser verdade que a cultura ocidental tem muito de bom. Não só seu progresso material, bem utilizado, é excelente, como ainda não se pode negar que mesmo em outras esferas ainda sobrenadam destroços de imenso valor, de nossa cultura, no vasto naufrágio em que ela se abisma presentemente.

Amaldiçoar sem discernimento o que nossa cultura tem de bom e de mau é um erro. Este erro tanto mais patente se torna quanto é fato que, sem imensa ingratidão, o Oriente não poderia amaldiçoar em bloco este Ocidente do qual lhe vem inúmeros missionários, legítimos continuadores daqueles Apóstolos a quem Nosso Senhor disse: "Ide e ensinai a todos os povos, batizando-os em nome do Padre, e do Filho, e do Espírito Santo."

Que estas reflexões, feitas no mês das missões, nos sirvam para que compreendamos a complexidade da obra missionária, e a saibamos auxiliar com nossos recursos e sobretudo com nossas preces e mortificações.


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