Plinio Corrêa de Oliveira

 

Solidariedade e Disciplina

 

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 16 de agosto de 1942, N. 518

  Bookmark and Share

 

Uma das consequências mais curiosas do zelo e do entusiasmo que as coisas da Igreja costumam despertar nas almas verdadeiramente fiéis é, sem dúvida, a extrema dificuldade que os realizadores de certas obras católicas encontram por vezes em contentar todos os gostos e conciliar todas as opiniões, não direi nos ambientes ímpios e hostis à Igreja — o que é explicabilíssimo — mas ainda em certos ambientes perfeitamente ortodoxos.

É isto, por exemplo, o que se dá com a imprensa católica, e o LEGIONÁRIO tem, a este respeito, em seus arquivos, documentos colhidos em uma longa experiência. Por maior que seja o esforço de qualquer jornalista católico, ser-lhe-á impossível contentar indistintamente a todos os leitores. Sem falar na natural oposição que certas atitudes desassombradas suscitam em ambientes encharcados de liberalismo ou de nacionalismo, até mesmo os mais insignificantes pormenores da apresentação material são objetos de cartas, anônimas ou não, que indicam às vezes um descontentamento vivaz.

Esse descontentamento se exprime, evidentemente, segundo o grau de educação e de formação de quem escreve, e segundo seu temperamento. Há descontentamentos cordiais, moderados, sóbrios. Há descontentamentos agastados, apoplécticos, truculentos. Há descontentamentos fundados em motivos se não verdadeiros, ao menos relativamente inteligentes, e há também descontentamentos absolutamente irracionais, de caráter emotivo e alógico, que denotam o destramelamento nervoso e psicológico de quem os sente. Há descontentamentos pertinazes e há outros efêmeros.

Enfim, ao lado de muito aplauso confortador, de muita solidariedade comovedora e por vezes até heroica, não falta o cortejo lacrimejante ou iracundo dos que discordam e urram, choram, gemem, resmungam ou falam com polidez, conforme cada caso.

Seria interessante ler-se as cartas anônimas ou não que recebemos. Por exemplo, sempre que o LEGIONÁRIO tem uma referência ao atual regime espanhol e externa suas apreensões pelo estado evidentemente melindroso em que se encontram, na Espanha, as relações entre a Igreja e o Estado, recebemos — e isto há anos — uma carta longa, ora injuriosa ora afetuosa, às vezes espirituosa e outras vezes insípida, de um missivista que supõe ser anônimo... e que conhecemos perfeitamente. Uma só providência, por pequena que fosse, de nossa parte, estancaria a facúndia desse missivista. Entretanto ele, acobertado sempre por seu suposto anonimato, imagina que não o conhecemos. Que fisionomia fará ele, quando ler estas linhas? Não sabemos. Pode ele ficar, porém, inteiramente tranquilo: tomamos aqui o compromisso de não violar o segredo que tão claramente desvendamos. E assim por diante as críticas se multiplicam.

Alguém teve, certa vez, a paciência de anotar todo, ou parte do LEGIONÁRIO, não me lembro bem, assinalando com tinta todos os tratamentos honoríficos dispensados às pessoas a quem nos referíamos: Ex.mo Rev.mo Sr. D., Rev.mo. Sr. Pe., etc., etc. À margem um comentário: em lugar de tantos tratamentos cerimoniosos, não seria preferível poupar espaço para notícias úteis? Como se fossem inútil ou mal empregado o espaço que destinamos intencionalmente para demostrar o respeito que devemos à Autoridade Eclesiástica, ensinando-o ao mesmo tempo a todos.

Outro missivista escreveu-nos, implicando com o número “7” dos “7 Dias em revista”. Outro ainda, que gostava dessa secção, começou a discordar das idéias dela. Por que? Argumentação deficiente? Nunca. Suas idéias — oh, lógica, onde te escondestes? — começavam a se modificar porque ele não podia suportar a palavra “confere”, que frequentemente se utiliza naquela secção. Como se uma palavra, ainda que fosse antipática, tivesse o condão de mudar as idéias de alguém, não porque ela contém algum erro, mas simplesmente porque “dá nos nervos”!

Ora é curioso notar que todas essas pessoas passaram sua vida inteira lendo jornais leigos, e nunca se sentiram no direito de se indignar com tantas coisas. Jamais lhes passou pela cabeça escrever ao diretor de um jornal leigo reclamando o excesso de cortesia com que se refere às pessoas, ou contra um vocábulo irritante ou suposto tal, empregado por um colaborador, ou ainda contra alguma disposição gráfica antipática?

Evidentemente não. Por que, então, para o jornal católico, tanto rigor?

Em grande parte, porque o jornal católico não é visto com a indiferença com que se vêm as coisas profanas. Todo o mundo gostaria dele perfeito. E como a ideia de perfeição varia, em matéria literária ou jornalística, segundo cada pessoa, cada qual gostaria de alterar alguma coisa no jornal católico que recebe.

* * *

É esse, em todos os termos, o fato que ocorre presentemente com os preparativos do IV Congresso Eucarístico Nacional. Todas as almas piedosas estão como que em suspenso diante da magnífica perspectiva dos dias que vamos viver em setembro. Cada qual antecipa o prazer espiritual desses dias, imaginando-os à guisa de sua fantasia de forma a corresponder a todas as exigências de seu gosto e de sua sensibilidade.

Evidentemente, ainda que as maiores sumidades do globo colaborassem na confecção dos preparativos materiais do Congresso, não poderiam satisfazer a pessoas colocadas em tal estado de espírito, e, implicitamente, não poderiam evitar críticas ou censuras de toda a espécie.

* * *

É preciso que se note, entretanto, que essas críticas, mesmo quando expressas de forma perfeitamente digna e respeitosa, são nocivas. Elas entibiam os entusiasmos, desarticulam as iniciativas, dividem os espíritos e criam um ambiente que torna qualquer trabalho coletivo muito difícil.

Não queremos dizer, é obvio, que se é obrigado a aceitar como dogmas de Fé que tal objeto não lucrasse em ser mais alto ou mais baixo, mais largo ou mais estreito, mais ornamentado ou mais simples; ou que tal local seja o melhor, ou que tal cor seja a mais bela, ou que tal hora seja a mais oportuna. Deslocaríamos os verdadeiros termos do problema, se sustentássemos tal. Não entramos, aqui, na apreciação objetiva de qualquer crítica: não há discussão possível sobre gosto. Mas, de toda e qualquer forma, é absolutamente preciso não perder de vista que a crítica corre célere, facilmente se transforma em burburinho e este, por sua vez, facilmente se transforma em desordem.

Assim, o próprio interesse, o próprio esplendor do IV Congresso Eucarístico Nacional exige que cada qual faça calar seus sentimentos individuais, tendo em vista exclusivamente que, ainda que possivelmente justa, a crítica pode ser nociva.

Por outro lado, o princípio da disciplina ocupa neste, como em todos os assuntos, uma posição central. Desde que a autoridade a quem incumbia decidir decidiu, ouvindo quem lhe mereceu toda a confiança, a disciplina nos impõe silêncio e acatamento ao que ficou estabelecido. Este ato de obediência será muito mais útil ao Congresso, oferecido a Nosso Senhor como sacrifício, do que mil comentários ou críticas, por mais sábias, mais procedentes, mais lógicas que fossem.

* * *

De propósito não quisemos penetrar no terreno ingrato de uma demonstração de argumentação em favor do que foi ou será feito. Não há argumentos em matéria de gosto, como dissemos. E, finalmente, a disciplina consiste em calar e obedecer quando não se está de acordo, porque a obediência ao que se aplaude é muito suave. E, por isto, queremos sugerir às pessoas que tem sempre mais uma palavra a dizer, que considerem as graves razões que apontamos, e saibam ter a disciplina que Nosso Senhor exige. Este silêncio respeitoso e que a nenhum entusiasmo arrefece, será certamente de grande valor aos olhos de Deus.


Bookmark and Share