Ninguém pode compreender o que realmente se está
passando na França sem primeiramente
traçar um quadro retrospectivo da situação política daquele glorioso país, na
última década. Nosso público conhece com relativa precisão, a história dos
principais homens de Estado da França contemporânea, e dos grandes partidos políticos
tradicionais. Quanto às figuras mais recentes e as correntes ideológicas de
menor nomeada, quase nada se conhece entre nós. Croix de Feu, cagoulards,
etc., são palavras quase sem sentido para nossas grandes massas. Entretanto‚ é
nestas palavras que se encontra a chave do enigma.
* * *
O LEGIONÁRIO já tem apontando várias vezes a
existência, em quase toda a Europa, de correntes fascistisantes
que têm agido, para com Berlim, com uma disciplina verdadeiramente mecânica.
Durante muito tempo, entendeu-se entre os detratores da Igreja que a famosa
norma perinde ac cadaver enfeixava toda a espiritualidade da Companhia
de Jesus e todo o espírito do Catolicismo. Hoje, essa lenda se desfez. Mas a
máxima passa a ter, à vista da realidade contemporânea, aplicação nova: aos Quislings, aos Degrelles, aos Mussarts, aos Mosleys, ela se
ajusta de modo verdadeiramente literal. Quando, na Holanda, na Noruega, na
Bélgica, na Checoslováquia, na Áustria, nos círculos "Falange
Espanhola" e nas esferas mais recônditas da política inglesa, foi preciso
espalhar "palavras de ordem" que favorecesse o nazismo, boatos que
facilitassem a derrocada, sugestões que dificultassem a defesa, as organizações
partidárias de tipo nazifascista a isto se prestaram
de tal maneira que, verdadeiramente, se poderia dizer que foram a medula da
"quinta coluna". Quando alguns destes países capitularam, e o
invasor quis estabelecer por detrás de um governo de aparência nacional uma
ocupação tanto mais tirânica quanto mais disfarçada, a este papel de traidores
se prestaram invariavelmente os chefetes dessas
correntes. Nenhum deles se deteve no caminho da traição. Nenhum deles sentiu na
consciência a natureza das irremediáveis capitulações a que submetiam suas
pátrias. Obedeceram, e obedeceram como cadáveres. E hoje procuram cobrir com
seus vultos de pigmeus a agonia lenta e segura a que a ocupação nazista submete
todos os países que as tropas do "füehrer"
conseguiram avassalar. Havia uma Internacional comunista - que infelizmente
ainda existe, é preciso não o esquecer - que mantinha seções em todos os
países. Jamais estas seções foram mais disciplinadas ao centro de Moscou,
quanto as seções da imensa Internacional nazista se revelam quanto a Berlim.
E a França? Não tinha sua
"seção" totalitária? Evidentemente, sim. Os "Croix
de Bois" e outras organizações de tipo fascistas eram evidentemente
simpáticas ao nazismo. Favoreceram a criminosa política de Munique, os pactos cegos, as capitulações inúteis, os recuos
criminosos. Quando veio a guerra, foram agoureiros da derrota. Quando veio a
capitulação, criaram um ambiente de pessimismo que facilitou a aceitação, por
parte da opinião publica, das piores exigências do vencedor. Quando se
estabeleceu a ocupação, cobriram de flores os invasores, em seus jornais mais
ou menos disfarçadamente nazistas. Quando foi preciso um simulacro de governo,
apresentaram-se para esta inglória tarefa. Em tudo e por tudo solidários com Laval, Flandin e outros [...],
que emprestavam a manobra vivíssimo apoio, foi nas fileiras dessa gente que Pétain escolheu seus
auxiliares de governo. Com efeito, entre os franceses de outras correntes, ou
entre os apolíticos, tão numerosos nesse esplendido
país de grandes e riquíssimas "elites", não pode Pétain
encontrar colaboradores. Foi entre os joguetes de Hitler que ele procurou os
elementos destinados a fazer uma manobra que, em última análise, deveria
contrariar evidentemente os planos mais seguros e mais caros ao próprio Hitler.
Uma palavra de Hitler como garantia; instrumentos cadavericamente
dóceis a Hitler como colaboradores; foi assim que Pétain,
montado sobre os escombros da França, empreendeu o seu trabalho voltado, no
fundo, contra Hitler. Misterioso e profundo enigma! Não se apercebeu disto o
velho Marechal? Não notou ele que, enquanto ele era para o povo a incarnação da
glória de 1918, a figura que colocava ao seu lado fora a personificação do
derrotismo, da traição, da venalidade? Laval, o primeiro dos colaboradores de Pétain,
chegara a ser denunciado como traidor durante a Grande Guerra, na qual foi um
dos pouquíssimos deputados em idade militar que não seguiram para o "front". E enquanto os de sua geração lutavam e
morriam, Laval aproveitava os lazeres para trair e se
enriquecer. Este o homem que, acobertado pelos louros de Verdun,
foi bastante feliz para subir ao governo com uma facilidade de movimentos que
jamais teria se a sombra de Pétain não pusesse um véu
sobre o ignominioso passado desse politiqueiro! Sem Pétain,
Laval jamais teria sido possível. Logo, Pétain tem, ao menos na ordem objetiva dos fatos, culpa
pelo que fez Laval.
O que fez Laval?
Consumou, consolidou, solidificou a derrota.
A famosa entrevista de Montoire
- que eterna ignomínia se liga hoje ao nome Montoire
- em que Pétain se apresentou aos olhos de toda a
França como fiador da reaproximação com Hitler, foi a
obra de Laval. Mas sendo obra de Laval
foi essencialmente e sobretudo obra de Pétain. Com
efeito, aquilo que Laval conseguiu fazer com Pétain, sem Pétain jamais teria
sido feito. É possível que o plano e a execução sejam de Laval.
Mas a autoridade era de Pétain, o prestígio era de Pétain, só Pétain poderia levar o
brioso povo francês a aceitar aquilo que feito exclusivamente por Laval teria arrancado brados de indignação às próprias
pedras das ruas e dos caminhos. E tanto assim‚ que uma onda de indignação
popular levou do poder Pierre Laval
pouco depois. Premidos pela indignação geral, os nazistas aceitaram a demissão
de seu principal agente. A glória da proeza reverteu toda ela para Pétain que entretanto só havia sido um instrumento dócil de
Laval. E Pétain recolheu
mais estes louros - quanto mais modestos que os de Verdun!
- fingindo despedir, enojado, seu antigo auxiliar.
Hoje, entretanto, a situação se transfigura. Pétain chama novamente ao poder aquele auxiliar do qual se
despediu enojado. Apoia-o, auxilia-o, entrega-lhe todas as funções. E, mais do
que isto, Pétain continua, pela sua presença, a
coonestar aquilo que, ainda que quisesse, já não poderia evitar. Como murcharam
os louros de Verdun!
* * *
Que juízo deveremos fazer de Pétain?
Seu sistema caiu por terra inteiramente. Com efeito, como demonstramos em
artigo anterior, as garantias verbais de Hitler, de que Pétain
poderia reconstituir uma França cristã e forte, ruíram por terra. A única
justificativa que Pétain poderia dar à sua conduta é
de que está sofrendo uma pressão nazista. Mas essa desculpa encerra a confissão
de que ele está inteiramente nas mãos de Hitler, que assim já violou a palavra
empenhada. E se essa palavra está violada, se Pétain
vê que a base de seu sistema ruiu, porque permanece no poder, a amortecer, com
sua inútil presença, as justas desconfianças, a explicável indignação, a
desejável reação do povo francês?
Agora virá, para Pétain,
o momento decisivo. Ao que parece, cogita-se fazer uma invasão anglo-americana
na França. Se Pétain reagir contra o invasor, sua
figura ficará definitivamente incluída na galeria dos Quislings.
Se, pelo contrário, enfrentando vexames, injúrias, expróbrios,
a morte talvez, souber subtrair-se à ação nazista que dele se serve como um
joguete, será uma figura que se terá redimido pela expiação de seus erros.
Que caminho tomará?