Plinio Corrêa de Oliveira

 

Pétain - I

 

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 19 de abril de 1942, N. 501

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Segundo as notícias que, no momento de escrevermos este artigo, a imprensa diária tem publicado, o drama de Pétain está chegando ao seu epílogo. Entretanto, têm sido numerosas, em sua longa e nebulosa trajetória, as marchas e contra marchas, de forma que, quando esta edição do LEGIONÁRIO tiver saído à lume, não é impossível que nova contemporização tenha retardado mais uma vez o desfecho lógico, previsto há já muito tempo. A esta altura, no entanto, não é provável que ainda seja possível reter os acontecimentos. Assim, pois, é útil um rápido comentário sobre o assunto.

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A defesa do velho Marechal costuma ser feita da seguinte maneira: a derrota da França foi fruto de um longo processo de corrupção moral que minava a França há um século ou mais. Os princípios liberais, dissolventes por sua natureza, se infiltraram em todas as esferas da cultura francesa: arrancaram a Fé que vicejava em inúmeras almas, e a debilitaram em outras; disseminando o ceticismo, feriram de esterilidade todas as produções intelectuais de caráter especulativo; dando origem ao positivismo, desviaram para um terreno inferior os lampejos do gênio francês, que abandonou as mais altas paragens do pensamento, e se aplicou em atividades insuficientes para esgotar toda a força de produção do talento da raça; assim, não tornou em se aviltar o espírito público, arrancando-lhe todo o surto tradicional, de generosidade e de grandeza; a deserção dos terrenos da metafísica e da ética é um crime que se pune com penas severas, entre as quais as de caráter cultural não são as menores, e por isto a literatura, a arte, o bom gosto, as belas maneiras, que outrora haviam atingido na França a um supremo grau de perfeição, foram decaindo gradualmente até que a França de 1939 chegasse a ser a nação valetudinária e impotente que as hordas germânicas abateram; o constante sentido revolucionário das reformas políticas havia abatido as instituições multisseculares que poderiam restaurar a França, e um ensino de História totalmente falseado havia obscurecido em imensas massas de franceses o sentido mais profundo de seu passado, e da influência tutelar de suas tradições.

O território francês poderia continuar a ser habitado pelos descendentes dos atuais franceses, e a França poderia continuar a ser uma nação independente: pouco importa, o espírito francês morria aos poucos, tinha apenas alguns anos, algumas décadas talvez, a viver, e quando os últimos clarões desta chama se extinguissem, a França estaria tão morta quanto morta está hoje a Grécia de Péricles, se bem que ainda haja gregos na Grécia, e esta seja um país politicamente mais unido e mais bem estruturado do que o amálgama de republiquetas dos séculos clássicos.

Sobre este corpo ainda quente, de uma nação prestes a se tornar cadáver, abateu-se a mais furiosa tormenta política. A França não foi golpeada pelos nazistas: ela tentou suicidar-se. A incompetência criminosa de muitos de seus estadistas e cabos de guerra, a extensão indefinível dos tentáculos que a "quinta coluna" havia logrado deitar sobre o país, tudo isto mostrou que as tropas de Hitler se lançaram sobre um país moral e materialmente traído, aviltado, amordaçado, abandonado.

Feito o balanço, Hitler deve muito mais a braços, a olhos, a ouvidos franceses sua grande vitória, do que ao vigor de suas tropas ou a habilidade de seus generais.

Este o cenário delineado por Pétain nas suas primeiras proclamações, depois do armistício: palavras severas e solenes de autocrítica e de penitência, propósitos de expiação e de emenda, tudo isto abundou nos lábios e na pena do velho Marechal, quando sobre esse povo valetudinário ele ergueu seu vulto de ancião, procurando suster com suas mãos trêmulas a tocha bruxuleante que desde Clóvis não cessara, até então, de iluminar o mundo.

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Nossa época é cheia de curiosas e enigmáticas contradições. O homem contemporâneo chegou ao menor grau de logicidade a que é possível cair-se sem perder a natureza humana.

A consequência necessária da logicidade do espírito humano é um desejo insofreável de explicar, de coordenar os motivos, de eliminar as contradições, de estruturar as idéias, de por meio delas governar os acontecimentos, e assim dobrar o mundo inteiro ao domínio do pensamento. Hoje em dia, este desejo está quase extinto. As contradições as mais clamorosas e espetaculares logram quando muito surpreender, mas já não indignam. E enquanto as maiores contradições já não irritam, nada irrita tanto quanto a lógica, ao menos quando posta ao serviço de princípios verdadeiros. Hoje mais do que nunca, se odeiam as demonstrações claras e peremptórias, as deduções impecáveis e indiscutíveis, os vastos sistemas de idéias irrepreensivelmente harmônicas entre si. Disto tem o LEGIONÁRIO uma velha e dolorosa experiência. O caso francês é, a este respeito, particularmente elucidativo.

Quando Leon Blum governava a França e as sombras do comunismo se projetavam ameaçadoras sobre Paris, o LEGIONÁRIO externou, através de inúmeros artigos, comentários e notícias, as apreensões e a indignação que o fato lhe causava. De franceses bolchevizantes, não recebemos um só protesto. Estes protestos vieram - quem diria! - de fontes respeitabilíssimas, que invocavam o patriotismo (!) como fundamento de sua atitude: Blum era francês, e qualquer ataque a ele feito atingiria por força à própria França. Nós, entretanto, mais confiantes no valor da glória francesa, nunca julgamos que o Sr. Blum e seus sinistros colaboradores da C.G T. fossem de envergadura a empanar a glória legada por Joana d'Arc, S. Luís, e Luís XIV...  Doía-nos ver, através de mil e um indícios, a agonia moral da França, de que o governo Blum era o mais característico sintoma. Exprimindo nossa dor, pintávamos um quadro real. Exclamaram que exagerávamos.

Veio a guerra. Semana por semana, o LEGIONÁRIO, enfrentando irritações sem fim, veio apontando erros, denunciando as traições, estigmatizando as covardias que custava à França as mais terríveis derrotas. Recebemos cartas, protestos, interpelações. Consumou-se finalmente tudo quanto havíamos previsto. Sobre esse cenário de catástrofe, ergue-se Pétain e afirma precisamente o que dizíamos; aqueles que ainda ontem nos censuravam, aplaudiram com frenesi o velho cabo de guerra. Dir-se-ia que nunca haviam pensado outra coisa.

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Por isto, aplaudiram muitas pessoas as afirmações que, quando pronunciadas por nós, tanto as haviam irritado.

Pétain acentuou que o reerguimento político estava condicionado a um reerguimento moral, que só se poderia obter ligando novamente as instituições, a cultura e as massas às velhas fontes históricas e tradicionais de inspiração, a que devem sua glória a França de outrora. Para isto, o armistício feito em Compiègne parecia talhado sob medida. A Alemanha se comprometia a respeitar uma zona do território francês, colocada sob o governo soberano do Marechal. Na zona ocupada - outro compromisso nazista - a ação das autoridades teria apenas por objetivo assegurar a submissão do povo, a ordem pública, e certas vantagens econômicas. Estava no espírito do armistício, implícita nas próprias razões com que o Marechal justificava o ato de Compiègne, a garantia de que o III Reich não tentaria em território francês ocupado ou livre, qualquer penetração ideológica, qualquer organização de "quinta coluna", qualquer pressão política ou militar direta ou indireta.

Tudo isto posto, e assim assegurado - Hitler prometera! - poderia a França deixar que a Inglaterra sumisse do mapa, e que a Alemanha fizesse das nações francófilas - Polônia, Checoslováquia, Bélgica, Holanda, Luxemburgo - o que entendesse. A França se entregaria por seu lado a um paciente trabalho de reestruturação interna, emergindo recristianizada e remoçada de uma Europa reconstruída pelas mãos férreas do senhor e dominador do III Reich.

Não é preciso ser muito atilado para formular, de encontro a todo este belo castelo de cartas, uma objeção: que eficácia teria um trabalho de recristianização e reconstrução francesas sobre bases diametralmente opostas às que a dominação nazista está impondo em toda a Europa? Uma França cristã não seria uma França anti-germânica, mas seria certamente uma França antinazista. Lado a lado, não haveria lugar, na Europa, para a irradiação cultural e o prestígio de uma França genuinamente católica, e a ditadura ideológica e política de uma Alemanha nazista e imperialista. Uma se atiraria necessariamente sobre a outra. A ser sincero o plano do velho Marechal, faria ele da França precisamente o oposto do que Hitler quereria que ela fosse para a realização desse plano, ingenuamente, candidamente, valetudinariamente [de modo doentio], ou... perfeitamente, Pétain apostava, entretanto, para a França uma colaboração, a de Hitler, e uma garantia, isto é a palavra de honra do vencedor, os "farrapos de papel" em que ele se obrigara a respeitar a integridade territorial da França livre, a integridade ideológica, cultural, moral, da França toda.

A colaboração de Hitler para um plano oposto a ele! A promessa de Hitler, esta desprestigiadíssima e falaciosíssima garantia que costuma constituir um penhor seguro de que sucederá precisamente o contrário do que foi prometido, eram essas as bases, essas as garantias, essas as perspectivas que Pétain encontrava no momento da catástrofe.

A ingenuidade não poderia ir mais longe. Ou, digamos melhor, tão longe a ingenuidade não pode ir.

Dissemô-lo. Escrevemô-lo. Criticaram-nos: aí estão os fatos.


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