Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

A tragédia de Paris

 

 

 

 

 

 

Legionário, N.º 479, 16 de novembro de 1941

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A “HTM”, agência oficiosa do governo de Vichy, comunicou há dias, ao público paulista um telegrama em que retrata a atual situação de Paris. Depois da catástrofe, um grande e sombrio silêncio se fez sobre a capital francesa. E, no Brasil, inúmeros têm sido os corações que não pensam sem angústia e sem amargura no que poderá estar sucedendo nessa cidade à qual estão tão vinculados os afetos brasileiros.

Assim, pois, o “Legionário” passará a pôr em relevo os principais tópicos daquele telegrama, tanto mais insuspeito quanto procede de uma agência que se tem empenhado em pintar com as mais róseas cores que a realidade permita, a situação trágica da França.

Não é este o lugar nem o momento de se tentar um processo contra a cultura francesa. É certo que da França nos tem vindo muitas sementes de corrupção e de impiedade. Seja-nos lícito, entretanto, narrar a este propósito um episódio significativo. Certa vez, encontrava-se um Bispo brasileiro, e um dos mais insignes, presentes a um jantar de Prelados franceses. Durante a refeição, aquele nosso virtuoso e eminente patrício travou conversa com um Bispo vizinho, no qual comunicou seu pesar pela onda de imoralidade e de ceticismo que nos vinha da França. E o prelado francês, com aquela finura cortês que caracteriza o espírito de sua terra e de sua gente, lhe deu a seguinte resposta: é certo que a França exporta muita coisa lamentável, mas quem faz as encomendas? Não serão porventura as nações estrangeiras? Com efeito, a França do século XIX, por exemplo, não produziu apenas um monstro como Gambetta, um ímpio como Renan, ou atrizes levianas como as que, nas “boites” de Montmartre, escandalizavam os viajantes do mundo inteiro. Produziu ela também um Luiz Veillot, um Ozanam, um Montalembert, um Lacordaire, e uma rosa de pureza e de candura como Santa Terezinha do Menino Jesus. Se a humanidade inteira, em lugar de se abeberar nas fontes de talento e de santidade que nunca se estancaram em terras de França, se ia dessedentar nos antros da corrupção ou nas obras dos apóstatas, de quem a culpa? Só da França?

Quem poderia, por exemplo, ousar dizer que só a Alemanha tem culpa porque em tantos países do mundo se começa a imitar o Sr. Hitler? Quem não compreende que o Sr. Hitler não é a Alemanha, que há uma Alemanha heroica até o martírio, fiel a Cristo até nos maiores sacrifícios, a Alemanha do Cardeal Falhauber e de Thereza Neumann, que o mundo contemporâneo não imita porque ele abomina o bem e adora o mal?

*  *  *

Tudo isto posto, é bem de se ver que Paris cometeu graves pecados e sofre imensos castigos. A capital da França, da filha primogênita da Igreja, foi durante muito tempo autora de escândalos sem fim. Ela se circundou de luzes, e foi chamada a Cidade-Luz. Ela se encheu de alegrias profanas, e foi chamada metrópole mundial da alegria. Em seus museus, em seus cenáculos intelectuais, em suas galerias artísticas, ela não cultuou somente a verdade, a beleza, e o bem, mas pôs seu talento ao serviço do erro, do mal e da ignomínia. Por isto mesmo, baixou sobre ela uma catástrofe apocalíptica. Apagaram-se as luzes da Cidade-Luz. Silenciaram os cânticos joviais de seu povo sempre alegre. Estão desertas suas escolas, seus museus, suas galerias. Há quem sustente que mãos criminosas já começam a dispersar os tesouros acumulados durante tantos séculos... Emudeceu o talento parisiense. A ruína em que está Paris lembra, ponto por ponto, as grandes desgraças que, na narração do Antigo Testamento, se abatiam sobre Jerusalém quando ela violava seus deveres.

À cabeceira dessa grande agonia, quantos profetas se tem acumulado! Na sua maioria são profetas que afetam os sentimentos de dor de Jeremias apenas para poder mais facilmente recriminar a França e justificar a ocupação nazista. É o lobo assumindo ares de ovelha...

Não será essa nossa atitude. Reconhecendo embora, com a tristeza com que os profetas reconheciam a culpabilidade de Jerusalém, que Paris está muito longe de ser uma cidade inocente, é com o coração pesado de amarguras, que comentamos a desgraça em que caiu. Com efeito, tinha Paris uma missão histórica na Cristandade. E sua ruína deve por nós ser chorada como os profetas choravam a ruína de Jerusalém, deixando transparecer através do pranto as esperanças e o desejo de uma ressurreição.

Se a desgraça de Paris foi merecida, adoremos e beijemos a Mão Divina que permitiu a punição. Nem por isso, entretanto, desculpemos aqueles a quem tão grande desgraça se deve. Crer nos desígnios da Providência não é, por certo, justificar, desculpar, ou ao menos atenuar toda a gravidade da infração que a desgraça de Paris representa quanto às leis da moral internacional.

* * *

A que está reduzida essa grande e tão querida cidade, essa cidade tão maior quanto mais está prostrada sob os golpes purificadores do sofrimento?

A “HTM” começa por afirmar que “a cidade está menos triste e a atmosfera menos pesada”. Mais adiante ela assegura que “o reabastecimento se torna um pouco melhor. Os cartões de carne dão direito à compra desse alimento, o que não se via desde longo tempo”.

Mas em seguida a agência acrescenta: “Mas, de todo modo, a miséria é tão grande que as autoridades cogitam de fornecer cartas profissionais de lixeiros àqueles que vão, todas as manhãs, remexer latas de lixo. A concorrência de amadores chegou a tal ponto que os velhos praticantes desse novo ofício resolveram agrupar-se em corporação”. Mais adiante diz a Havas: “nos jardins de Paris são arrancadas as batatas e colhidos os últimos feijões. O prefeito de Paris acaba de proibir que ponham em exibição nas vitrines mais de dez pares de sapato por metro linear”, isto porque “era inútil tentar compradores eventuais para os quais o problema do calçado se apresenta de forma cada vez mais angustiosa”. Com efeito, o telegrama esclarece, algumas linhas depois, que se ainda são numerosas as parisienses que não andam com calçados de sola de madeira “o fato causa admiração”. Causa também admiração que elas “andem ainda com meias de seda”. Quanto à tristeza, essa passagem é típica: “Os franceses parecem estar cansados de sair à noite, e sobretudo de serem obrigados a voltar à casa a pé. Os teatros ou dão peças do antigo repertório ou continuam os êxitos da estação passada”. Ao que parece, até os antigos enfeites, guardados no fundo de caixas e baús, se vão tornando mais raros. Com efeito, “os chapéus são naturalmente diferentes do que eram há seis meses. Não se vêm mais véus, há menos passarinhos multicolores, menos véus ondulantes ao vento, mas em compensação peles e penas, e mesmo rendas”. Tristes e pobres restos das modas passadas...

*  *  *

Quem não vê aí a enormidade do castigo? Paris, com seus jardins artísticos transformados em grosseiros pomares, já devastados pela fome de seus habitantes; Paris com suas ruas escuras à noite, sem tráfego e sem meios de locomoção; Paris com seus habitantes crescidos à sombra dos castelos e dos palácios, na frequentação assídua dos restaurantes os mais suntuosos, e hoje revolvendo as latas de lixo em “filas de amadores”; Paris cujas mulheres começarão a usar tamancos pois que qualquer sapato de sola de madeira não é senão um tamanco disfarçado; Paris a cidade da última moda, que exuma agora no fundo das gavetas as pontas de renda e as penas de passarinhos de outros tempos, a fim de conservar um pouco de elegância, e um pequeno sorriso mesmo na desgraça, é bem Paris ferida pela mão de Deus.

Mas se Deus pune assim essa cidade, que punição há, com isto, para toda a Cristandade! A antiga capital dos Reis Cristianíssimos, hoje tomada pelas tropas do neopaganismo! Do alto do céu, que dirão São Luiz e Santa Joana d'Arc?

Nessa hora de desgraça, não amaldiçoemos Paris, não batamos palmas aos que a oprimem, não nos acumpliciemos com os que a desolam. Rezemos por Paris. Se das cinzas dessa terrível penitência renascer uma cidade convertida, que mais podemos desejar para a França, que é e será sempre a Primogênita da Igreja?


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