Plinio Corrêa de Oliveira

 

Juízo temerário - III

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 2 de novembro de 1941, N. 477

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Em meu último artigo, mostrei que não pode haver confusão mais grosseira do que a de certas pessoas que identificam os conceitos de “juízo temerário” e suspeita. Evidentemente, uma suspeita, pelo próprio fato de não ser uma certeza, envolve uma forte possibilidade de erro. Nem por isto, qualquer suspeita fundada em indícios seguros deve ser considerada temerária. Desde que não tenha havido desproporção entre os indícios e a suspeita, nenhuma temeridade terá existido.

Formular uma suspeita razoável será, assim, um mal? Não. Pelo contrário, pode implicar em grave violação dos mais elementares deveres o não formulá-la.

Demonstrado isto em meu último artigo, passarei agora, dentro do mesmo assunto, a outra ordem de considerações.

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Analisemos a palavra “temerário”. Que significa ela? Imprudente, inconsiderado.

Assim, qualquer juízo só será temerário se inconsideradamente formado, isto é, se formado sem aquela madura análise que deve preceder todos os nossos julgamentos.

Entretanto, de nenhum modo se deve daí inferir que, quando erramos em nosso juízo sobre alguém, agimos sempre temerariamente. O homem é falível e as circunstâncias muitas vezes o enganam. Por isto, sempre que se tiver agido com cautela, pode a consciência ficar plenamente tranquila.

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É curioso notar que nem todo juízo temerário é necessariamente desfavorável. Se é temerário todo juízo imprudente, é óbvio que, quando as conclusões desse juízo forem favoráveis, nem por isto terão deixado de ser temerárias.

Não é necessário dizer que, enquanto o juízo temerário desfavorável pode lesar gravemente os direitos da pessoa por ele alvejada, o juízo temerário favorável é, deste ponto de vista, inócuo. Entretanto, um juízo temerário favorável, não ferindo os direitos da pessoa a quem se refere, pode ferir gravemente os direitos de terceiros. E, neste caso, o pecado daí decorrente será tanto mais grave quanto mais respeitáveis forem os direitos assim desrespeitados, bem como quanto mais numerosas forem as pessoas prejudicadas.

Exemplifico. Um pai tem deveres sagrados para com seus filhos. Se ele, entretanto, levado por uma exagerada complacência, ou por um culposo descuido, forma de seus filhos, temerariamente, um juízo muito melhor do que merecem, viola gravemente seus deveres, pois que se coloca na impossibilidade de corrigir seus filhos. Esse mesmo pai, entretanto, teria talvez escrúpulo em formar uma suspeita legítima quanto a algum empregado, sócio, cliente etc. Não há nisto um evidente desequilíbrio?

Outro exemplo: em geral, os professores conservam sobre seus antigos alunos alguma autoridade moral; entretanto é tão grande a cegueira de muitos deles para com esses produtos de seus esforços educacionais que só veem neles qualidades e não defeitos; e, em última análise, a influência moral dos antigos professores, em grande número de casos, se torna inteiramente inútil para os alunos.

Outro exemplo ainda: os presidentes de setores de Ação Católica ou de associações religiosas têm obrigação estrita de discernir, nos associados, os defeitos que os tornem perigosos aos demais, a fim de que, se inúteis às advertências amistosas, os elementos nocivos sejam eliminados. Conheço, entretanto, um caso concreto de certa associação que tendo relutado durante anos inteiros em expulsar alguns membros, acabou por ficar reduzida a uma inanição absoluta, pela corrupção dos elementos bons que tinha conseguido laboriosamente formar. Não houve, no juízo temerariamente bom das autoridades dessa associação, uma grave falta no cumprimento dos encargos?

Tudo isto posto, é certo que não são só os juízos temerários desfavoráveis que podem acarretar pecados.

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Penso que chocarei muitos leitores se a isto eu acrescentar que minha experiência me tem mostrado que a Igreja e a sociedade têm padecido muito mais dos juízos temerários favoráveis do que dos desfavoráveis que hoje em dia se formam. Entretanto, esta é uma importante verdade. Se o mal tem tantas vezes uma imensa liberdade de ação, se ele conquista círculos de influência cada vez mais largos, se ele estende seu domínio sobre o mundo de modo cada vez mais insolente, enquanto a influência dos elementos bons se retrai, ferida muitas vezes de uma oprobriosa impotência, de uma infecundidade evidente, a que se deve isto senão à confiança por vezes infantil e ridícula com que os bons abrem seus ambientes aos maus?

Ora os pecados contra os interesses da Igreja são, de sua natureza, maiores e mais graves do que os que se cometem contra interesses humanos. Por outro lado, os pecados contra a sociedade são maiores, de sua natureza, do que os que se cometem contra os indivíduos. Tudo isto posto, quem por juízo temerariamente bom prejudica a Igreja e a sociedade, peca mais gravemente do que quem por juízo temerariamente mau prejudica um indivíduo.

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Tudo quanto dissemos sobre os juízos temerários se aplica, ponto por ponto, às suspeitas temerárias. Também há suspeitas temerariamente boas. Quando concebemos uma infundada e temerária esperança de que alguém é bom; quando supomos temerariamente que podemos dar a A, B, ou C as maiores provas de confiança com o intuito de os comover e assim arrastá-los para a Igreja; quando deixamos de exigir deste ou daquele indivíduo as garantias necessárias em matéria de interesses espirituais ou temporais, por julgarmos muito auspiciosa sua fisionomia franca e leal, em todos estes casos cometemos suspeitas temerariamente boas, porque nos teremos deixado empolgar por esperanças infundadas, por aparências enganosas, por ilusões contra as quais um homem sério deve estar premunido internamente. E, assim, prejudicamos seriamente os nossos interesses, os de nossas famílias, de nossa Pátria e, o que é pior do que tudo, os da Santa Igreja. Livre-nos Deus, pois, das suspeitas temerariamente severas. Mas livre-nos também das suspeitas temerariamente indulgentes.

A este respeito, não julgamos dever desmascarar o erro infantil dos que supõem que todo juízo severo, pelo próprio fato de ser severo, é temerário. Achar que um assassino é um assassino, um adúltero é um adúltero, ou um ladrão é um ladrão, constitui para muita gente juízo temerário. Poderá haver opinião mais ridícula? Assim, quando Nosso Senhor chamava os fariseus “raças de víboras” e “sepulcros caiados”, cometia juízo temerário? Quando os Apóstolos, os Papas, os Padres e Doutores da Igreja estigmatizavam em palavras candentes os erros dos potentados de seu tempo, cometiam juízo temerário? E a caridade, segundo essa estranha moral, consistira em achar pertinazmente, e contra toda a evidência dos fatos, que um assassino é um cordeiro, um adúltero um lírio, e um ladrão uma pomba. Isto não é virtude, mas imbecilidade. Diz-se de Santa Teresa que ela afirmou que a humildade consistia na verdade. É também certo que a caridade não consiste nem no erro nem na mentira.

* * *

“Tudo isto está certo”, dirá muita gente. “Mas deixemos aos que detêm qualquer autoridade, seja na família, seja na sociedade, seja no Estado ou na Igreja, o encargo de formar essas dolorosas certezas e essas tristes suspeitas. Conformemo-nos com nossa condição de súditos, e aproveitemos nela ao menos a satisfação de viver sem preocupações.”

Todo o mundo reconhece que para as altas funções - e quantas funções há que, sendo humildes, são altíssimas - é necessária uma preparação remota. Se todos aqueles que exercem no movimento católico, na sociedade ou na família, funções que os obrigam absolutamente a suspeitar do próximo (dentro da medida do justo e do razoável, repetimo-lo), se se preparam para isto só depois de terem recebido nos ombros o peso da autoridade, que espécie de chefes teremos? Não haveria uma analogia entre eles e um general que só começasse a aprender estratégia depois de promovido a essa alta dignidade?

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Tenho a certeza de que a leitura destas reflexões terá causado a muitos leitores, que sofrem de uma caridade neurastênica, de uma violenta e iracunda misericórdia, uma irritação sem nome. Estas linhas lhes terão causado, no fundo da consciência, estranhos e agudos remordimentos. Estavam em tal paz, e de repente o cenário se muda diante de seus olhos. Qual o jornalista impertinente que assim perturba seu sossego?

O mundo está atravessando uma tremenda hora de crise. A “caridade” com que muita gente, fechando os olhos ao perigo, dorme o sono da paz, muito mais se parece com o torpor dos Apóstolos no Horto das Oliveiras do que com uma verdadeira virtude sobrenatural. Se esses membros sonolentos da Igreja militante não querem ouvir nossa voz, meditem ao menos nas palavras de Nosso Senhor:

“Una hora non potuistis vigilare mecum?”


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