Plinio Corrêa de Oliveira

 

Juízo temerário - I

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 19 de outubro de 1941, N. 475

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Em artigos anteriores temos mostrado a ação nociva do liberalismo religioso, que timbra em deformar nos católicos as virtudes mais adequadas à luta e ao combate, criando assim o tipo ridículo do “carola” inofensivo e inepto, que o próprio liberalismo é o primeiro a estigmatizar afirmando que a Igreja não é capaz de produzir figuras diversas desta.

Se o liberalismo se empenhou particularmente em iludir as massas católicas a respeito da virtude da fortaleza, é certo que outra virtude, a da perspicácia, também tem sido muito combatida pela propaganda liberal. Muitos católicos se terão por certo espantado quando afirmamos que o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo é uma inigualável escola de energia e heroísmo no sentido mais belicoso da palavra. Sua surpresa não será menor se lhes dissermos hoje que o Evangelho é uma inigualável escola de perspicácia, e que Nosso Senhor Jesus Cristo inculcou reiteradamente esta virtude.

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O que vem a ser perspicácia? É a virtude pela qual nosso olhar, transpondo as aparências enganosas apresentadas pelas pessoas com quem lidamos, penetra até à realidade mais recôndita de sua mentalidade. Assim, diz-se de uma autoridade eclesiástica ou civil que é perspicaz se, através da prolixidade dos conselhos e informações que recebe, sabe discernir a verdade do erro, adotando em consequência uma linha de conduta conforme os interesses que tem em mãos. Dentro da mesma ordem de idéias, pode-se dizer que é perspicaz um médico que sabe discernir a existência de uma moléstia através dos mais ligeiros indícios. E no mesmo sentido ainda se chamaria perspicaz o detetive que sabe interpretar as circunstâncias aparentemente mais insignificantes, delas deduzindo com segurança qual foi o autor de um crime.

Difícil seria imaginar uma profissão ou condição social em que a perspicácia não fornecesse ao homem os mais inestimáveis recursos para o cumprimento de seus deveres. O pai de família, o professor, o diretor de consciências precisa discernir em seus alunos, dirigidos ou filhos, os mais ligeiros sintomas das crises que se esboçam, a fim de prevenir o que de futuro seria talvez impossível remediar. O homem de Estado não pode deixar de distinguir, por entre as múltiplas manifestações de amizade que seu alto cargo suscita, os amigos sinceros dos insinceros: todo o êxito de sua carreira política está condicionado a esta aptidão. Os advogados, militares, industriais, comerciantes, banqueiros, jornalistas etc., etc., não podem exercer convenientemente suas funções, nem poupar aos interesses que têm em mãos os mais graves sacrifícios, se não forem munidos de uma perspicácia hoje mais necessária do que nunca.

A este respeito queremos insistir muito especialmente: todo mundo tem, em certas circunstâncias, o direito de arcar com prejuízos que afetem seus interesses individuais. Ninguém, entretanto, tem o direito de expor os interesses de terceiros. Haverá situação mais ridícula do que a de alguém que declare romanticamente haver comprometido os interesses de terceiros que lhes estavam confiados, porque “foi bom demais e confiou excessivamente na bondade alheia”. “Bom demais”? É realmente ser “bom demais” sacrificar ao amor próprio de uma meia dúzia de aventureiros os interesses sagrados confiados à pessoa que assim procura se inocentar? Quem não percebe que essa “bondade” fora de propósito redundou em uma injustiça cruel para com os terceiros prejudicados no caso?

Apliquemos na ordem concreta dos fatos estes conceitos. Um apóstolo leigo que, por “excessiva bondade”, tolera em alguma associação membros gangrenados nos quais confia infundadamente, e que ocasionam a perda de todos os outros, não é um traidor que sacrifica cruelmente os elementos sãos e inocentes aos elementos culpados?

“Se teu pé de escandaliza, corta-o. Se teu olho te escandaliza, arranca-o”. É esta a máxima do Evangelho. Mas quanta perspicácia é necessária para perceber a premência de certas amputações! E, no entanto, o apóstolo leigo que não sabe discernir a oportunidade destes cortes dolorosos, ou não sabe apreciar a utilidade de tais amputações, não é menos inepto nem menos perigoso para o laicato católico do que o médico que desprezasse sistematicamente o emprego dos processos cirúrgicos.

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Não foi outra a razão pela qual Nosso Senhor, além de recomendar a amputação dos membros gangrenados de qualquer sociedade humana, falou de modo todo particular contra os falsos profetas e os lobos disfarçados em ovelhas. Qual a virtude que nos faz evitar os aventureiros arvorados em profetas senão a perspicácia? Qual virtude que nos leva a repelir o lobo metido na pele da ovelha senão a perspicácia? E o que de mais triste do que, por falta de perspicácia, seguir falsos profetas ou abrir o aprisco às falsas ovelhas?

Por isto mesmo Nosso Senhor não se limitou a pregar a perspicácia, mas deu dela exemplos insignes e memoráveis. Assim, quando o Divino Mestre denunciava os fariseus, o que fazia senão estimular a perspicácia de seus ouvintes, desmascarando aqueles sepulcros caiados, brancos por fora e por dentro cheios de podridão? E, entretanto, se o “Legionário” dissesse de alguém - de um violador de tratados e concordatas por exemplo - que é um sepulcro caiado, quem não afirmaria que além de faltarmos com a caridade estaríamos cometendo um juízo temerário?

Em torno deste capítulo dos juízos temerários, quanta teologia de água doce não se tem feito?

É precisamente para desfazer um pouco do ridículo romantismo edulcorado e pietista, que em torno da questão do juízo temerário se tem formado, que escreveremos nosso próximo artigo.


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