Plinio Corrêa de Oliveira

 

Apóstolo da intolerância

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 12 de outubro de 1941, N. 474

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O cinquentenário do nascimento de Jackson de Figueiredo obriga-me a tratar hoje de sua invulgar figura. Fazendo-o não interrompo a série de artigos que venho escrevendo contra o tremendo caruncho do liberalismo religioso. Jackson foi, sem dúvida, o maior paladino suscitado pela Providência nas fileiras do laicato católico para lutar contra este erro, ou antes, este vasto amálgama de erros. Assim, um rápido estudo das feições psicológicas do valente polemista sergipano acrescentará a força persuasiva do exemplo à série de argumentos com que tenho procurado refutar o liberalismo religioso em artigos anteriores.

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Assistimos hoje a uma verdadeira ressurreição do liberalismo religioso. Por de trás da “maquillage” de novos misticismos, de messianismos duvidosos e de “novidades” teológicas de há muito tempo condenadas pela Igreja, é o velho espírito (...) liberal e bonacheirão (...) das antigas irmandades, que pretende apossar-se da direção do movimento católico. Não se trata apenas de uma doutrina que renasce. Habilmente dosada em dinamizações ajustadas a todos os gostos, procedendo por iniciações e “iluminações” graduados com um talento de que só encontramos exemplo na gnose (...), estas velhas novidades são difundidas de modo metódico, perseverante e estrategicamente eficaz, que mostra, através dos progressos da ideia, a ação sutil de engenhosíssimos propagadores.

Em matéria de estilos, distingue-se a pureza de linhas das realizações simples estilizadas. Há móveis tipicamente antigos. Há móveis tipicamente modernos, mas há, também, estilizações modernas de linhas antigas, em móveis de fabricação recente. É exatamente este o caso do espírito das confrarias, que já não reside nas antigas irmandades nem afeta aqueles ares de festança pacata e um tanto familiar dos pachorrentos sodalícios de outrora, mas assume aspectos de um misticismo streamlined (moderno, alinhado, n.d.). O recheio, entretanto, é o mesmo.

Por tudo isto, não faltará, e infelizmente não faltou, quem procurasse apresentar de Jackson de Figueiredo um retrato novo, ajustado às conveniências de tão hábil propaganda. Mas a realidade é realidade. Basta abrir a esmo qualquer página das obras de Jackson para notar que sua figura viril e ardente de lutador não comporta a caiação nova com que se pretende “civilizá-lo”. Jackson foi, por excelência, e no mais alto grau, o apóstolo da intolerância, no belo e nobre sentido desta nobre e bela palavra. É  para o demonstrar, prestando assim um pequeno serviço à memória do grande batalhador, que escrevemos este artigo.

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Intolerante é aquele que não tolera. A confusão de idéias existente em nossa época exige por vezes que relembremos alguns conceitos hoje menos supérfluos do que outrora. Com efeito, o mais imbecil dos Acácios ainda é um sábio em comparação com certos semeadores de palavras ocas e bombásticas de nossos dias, certamente capazes de fazer vibrar as fibras de pedantismo que o pecado original deitou na personalidade de todos os homens, mas fecundos em confusões e desordens de toda espécie.

E, assim como é útil lembrar que intolerante é quem não tolera, perdoem-me os leitores se ainda lembramos que tolerante é quem tolera. A intolerância será sempre um mal? A tolerância será sempre um bem? Há coisas que se devem tolerar. Outras não podem nem devem ser toleradas. Diria pois o Conselheiro Acácio que há situações em que a intolerância é uma grande virtude, e situações em que a tolerância pode ser um imenso pecado. Não há, pois, a menor razão para que se constitua em torno destas palavras um tabu. Acusar uma pessoa de intolerante e com isto pretender atirar-lhe uma injúria, é muitas vezes um erro grave. Mesmo porque os excessos de intolerância são quase sempre muito mais toleráveis do que os excessos de tolerância.

Basta correr um pouco os olhos em torno de nós para que verifiquemos que os excessos de tolerância são hoje imensamente mais numerosos que os da intolerância. Os pais que toleram maus jornais, maus livros e más companhias para seus filhos; as mães que toleram o rádio mesmo quando enche a casa de declamações obscenas; as moças que toleram liberdades exageradas por parte de rapazes; os jovens que toleram contrafeitos e vexados a mofa e a risota dos prosélitos da impureza e da impiedade; as autoridades que toleram os desmandos e excessos dos subalternos; enfim, os professores, os patrões, os superiores hierárquicos de toda a escala civil, costumam hoje em dia tolerar muito mais do que punir. E os raros superiores que sabem punir fazem-no em muitos países tolerando e até fomentando o mal, e punindo intransigentemente o bem. Tudo isto é de tal maneira evidente, que ninguém ousaria afirmar que o grande problema de nossos dias decorre do excesso de severidade dos pais, dos extremos de recato das moças e dos exageros de desassombro dos jovens virtuosos. Assim, pois, a que propósito se encontra em certas penas uma tão perseverante luta contra a intolerância, e tão geral olvido das devastações feitas pela tolerância? Há aí um mistério que talvez só no dia do Juízo Final se possa desvendar.

Seja como for, dizendo que Jackson foi, além de um católico intolerante, isto é intolerante no sentido e segundo o espírito em que a Santa Igreja de Deus é intolerante, faz-se dele o mais belo dos elogios. Dele se deve afirmar que não foi dos tíbios que causam asco ao Senhor, dos mornos que Deus, segundo a expressão forte da Escritura, “vomita de sua boca”, mas uma alma forte e inteiriça, que passou de péssima a excelente, e hoje goza provavelmente a felicidade eterna.

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Com efeito, a vida de Jackson pode ser admiravelmente explicada por aquela palavra magnífica do Espírito Santo: “Se fosses frio ou quente eu te aceitaria; mas como és morno começo a vomitar-te de minha boca”.

Jackson foi frio, no sentido bíblico da palavra. Houve tempo em que a chama da Fé estava inteiramente extinta em sua inteligência e em seu coração, inimigo ardente e militante da Igreja, ele chegou aos extremos os mais radicais do erro, e os abraçou com entusiasmo. Mas como não era dos mornos, dos acomodatícios, dos tíbios, dos que se comprazem no criminoso brinquedinho intelectual de justapor coisas que “hurlent de se trouver ensemble” [que urram de se encontrar juntas] na mesma mentalidade, Deus teve pena dele. E desse homem frio como gelo para as coisas do Céu, a Providência soube fazer um homem ardente e combativo, que atingiu rapidamente, em suas obras, as culminâncias do senso católico, ao menos sob vários pontos de vista, enquanto, longe de Deus, a multidão asquerosa - o que se vomita é por certo asqueroso - dos tíbios continuava a acender uma vela a Deus e outra ao demônio, servindo na aparência a dois senhores, mas rendendo homenagem, na realidade, ao príncipe das trevas. Saulo e Paulo: nisto se resume a história de Jackson.

Não se diga, nem se pretenda, entretanto, que Jackson só combateu as idéias errôneas, mas poupava seus fautores. Não é verdade. Ele era bastante viril para compreender que as idéias não existem no vácuo, nem se propagam sem o auxílio de ninguém. As idéias são, até certo ponto, inseparáveis daqueles que as adotam. E a mesma razão pela qual admiramos no mais alto grau um São Tomás de Aquino - sua doutrina dá-lhe direito a todo louvor - nos leva a detestar no mais alto grau Lutero. E assim como, se Lutero morreu impenitente, não foram apenas suas heresias que Deus atirou ao inferno, mas sua alma, e por isto também nós devemos detestar não apenas a heresia mas o heresiarca, e, combatendo a heresia, nunca devemos esquecer a transcendental importância do combate ao heresiarca ou simplesmente ao herege.

Exatamente por ter compreendido isto, Jackson de Figueiredo foi um batalhador audaz, inteiriço e leal. Abominava ele as atitudes intermediárias, hoje tão em voga em certos meios. Detestava ele as acomodações que a certas pessoas parecem hoje a suprema sabedoria do apostolado. Abominava ele os silêncios covardes, os disfarces indignos, as pequenas espertezas mesquinhas que muita gente principia a considerar condição essencial para toda a atividade apostólica inteligente. Nada disto existia em Jackson. E se alguma coisa disto existia em outrem, ali estava Jackson impávido, pronto para atacar, para discutir e para censurar.

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Nesta ocasião, quando tanto se celebrou o cinquentenário de Jackson de Figueiredo, não podemos deixar de tentar um esforço para evitar que a fisionomia moral deste magnífico atleta de Jesus Cristo se deforme, segundo as adocicadas preferências de certos intérpretes pouco fiéis. Jackson prestou ao Brasil um serviço incomparável semeando em torno de si um pouco daquela intolerância santa que é o de que mais carecemos em nossos dias. Negá-lo ou ocultá-lo equivale a tirar a esse grande morto sua melhor coroa. Mas as coroas da glória humana podem ser roubadas; dia virá em que veremos a coroa que Deus soube reservar, por sua santa intolerância, a este batalhador benemérito.


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