Plinio Corrêa de Oliveira

 

“Odiai o erro, amai porém os que erram” (II)

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 21 de setembro de 1941, N. 471

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Sob este título, publicamos em nossa última edição um artigo que constitui a justificação completa do “Legionário” contra os ataques que lhe são frequentemente dirigidos por certos católicos mais ciosos de pouparem as susceptibilidades dos adversários da Igreja do que reivindicar os direitos desta contra as incessantes violações que sofre.

Como vivemos num século ainda encharcado de liberalismo filosófico, religioso, não é de espantar que o nosso artigo tenha causado digna irritação em certos espíritos eminentemente liberais. Perdoem-nos estes leitores se lhes revelamos hoje um importante segredo. A doutrina que anunciamos não tem o simples valor de modesta opinião de seu autor. Divide-se ela em duas partes claramente separadas por asterisco. A primeira parte é realmente de nossa exclusiva autoria, e a segunda, porém, é tradução fiel do que se encontra à página 80 e seguintes da obra El Liberalismo es pecado, de autoria de um dos maiores publicistas católicos do século passado, o Pe. Félix Sardà y Salvany, publicada no sexto tomo da Coleção “Propaganda Católica”.

 

Pe. Félix Sardá y Salvany (1841-1916) foi um presbítero, escritor e apologeta espanhol, destacado representante do espírito militante da Santa Igreja em sua época

Este magnífico trabalho do grande polemista espanhol fora denunciado à Sagrada Congregação do Index, que, tendo examinado, enviou a 10 de janeiro de 1877 ao então Bispo de Barcelona, Ex.mo e Rev.mo Sr. D. Tiago Catalá, um escrito em que declarou que “A dita Congregação pesou com maduro exame aquele opúsculo com as observações contra ele feitas. Como resultado deste exame declara a Sagrada Congregação que nada nele encontrou contra a Sã Doutrina, e, pelo contrário, seu autor, Dom Félix Sardà y Salvany, merece louvor, porque, com argumentos sólidos, clara e ordenadamente expostos, propõe e defende a Sã Doutrina na matéria que trata, e isto sem ofensa para ninguém”. E, depois de algumas considerações, o rescrito se encerra com as seguintes palavras: “Ao comunicar-vos isto de ordem da Sagrada Congregação do Index, a fim de que o possas comunicar a teu preclaro diocesano Sr. Sardà para quietude do seu ânimo, peço a Deus que vos dê toda prosperidade e ventura, e com a expressão de todo o meu respeito, me declaro de vossa excelência devotadíssimo servidor. Frei Jerônimo Pio Sacchi, O.P., secretário da Sagrada Congregação do Index”.

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Jamais seria suficiente encarecer a importância deste documento. Nele, a Santa Sé desarma quantos pretendam em nome da doutrina católica e dos ensinamentos de caridade que Ela prega, atacar os conceitos que transcrevemos. Erra, revela-se contra a Santa Sé quem ousar afirmar que colide com a doutrina católica qualquer das afirmações contidas na segunda parte daquele artigo. Assim, não possui o espírito da Igreja o jornalista que imaginar que falta à caridade se proceder conforme o que na segunda parte de nosso artigo ficou dito.

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Mas porque não mencionamos em nossa última edição o verdadeiro autor daquelas linhas, e a magnífica aprovação que lhe deu a Santa Sé?

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Todas as heresias deixam atrás de si semi-heresias, ou melhor heresias diluídas: arianismo e semi-arianismo, pelagianismo e semi-pelagianismo, balanismo e semi-balanismo.

No século passado, foram muito frequentes os hereges que pretenderam escolher livremente dentro da doutrina católica o que lhes agradasse, rejeitando o demais, com evidente desprezo para a autoridade da Santa Sé. Em nosso século, esta raça de víboras não se extinguiu. Há muitos católicos que presumem ter senso católico simplesmente porque estudaram superficialmente, e a seu modo, a doutrina da Igreja, de tal maneira que, supondo conhecê-la toda e professá-la integralmente, em uma multidão de circunstâncias agem, sentem e pensam como pagãos.

E de tal maneira estão eles embotados em sua ignorante presunção que não há argumentos que os convença do erro senão o da autoridade da Santa Sé.

Como é lamentável que em questões candentes certos católicos sejam tão cegos que, incapazes de raciocinar sadia e seguramente tomando por base os princípios de sua fé, sentem uma atração quase invencível pelo erro, que abraçam com ardor e sofreguidão, dele só consentindo em se separar quando premidos pelo ensinamento explícito e insofismável da Igreja.

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Compreendam tais católicos a anomalia da situação espiritual em que jazemos. Certamente é nobre renunciar ao erro para obedecer à Santa Sé. Mas quão lamentável é que a todo momento uma alma católica assimile idéias erradas, manifestando muito mais avidez do erro que da verdade, do mal que do bem!

Os católicos que discordaram daquele nosso artigo pertencem a esta classe. E quão doloroso é que na sua arrogância se arvorem eles mesmos em guias das massas, sem mandato da Igreja, cegos que conduzem outros cegos ao abismo!

Foi para que eles melhor compreendessem essa funestíssima orientação de seu espírito, que lhes armamos essa pequena e inofensiva cilada.

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Para completar o exame de consciência a que esta surpresa os deve conduzir, transcrevo da mesma obra o seguinte trecho também ele acobertado pela alta autoridade:

“Conhece-se o católico que tenha laivos de liberalismo, por isso que sendo homem de bem e de práticas sinceramente religiosas, não obstante quando fala ou escreve e manifesta um sabor liberal. Poderíamos dizer a seu modo, como Madame de Sevigné: ‘Não sou a rosa, porém estive perto dela, e tomei alguma coisa de seu perfume’. O homem de bem liberalizado discorre e fala e age como um verdadeiro liberal, sem que ele mesmo, coitado, o perceba. Seu forte é a caridade: este homem é a caridade mesma. Como ele aborrece as exagerações! Como aborrece ele os exageros da imprensa ultramontana! Chamar-se mau a um homem que difunde idéias más, parece a este singular teólogo, pecado contra o Espírito Santo. Para ele não há senão extraviados. Não se deve resistir nem combater, o que se deve procurar sempre é atrair. ‘Afogar o mal com a abundância do bem’: é esta sua fórmula favorita, que leu um dia em Balmes, e foi a única coisa do filósofo catalão que lhe ficou na memória. Do Evangelho aduz apenas os textos que sabem a mel e almíscar. As invectivas espantosas contra o farisaísmo, dir-se-ia que as tem por genialidades e intemperanças do Divino Salvador. Bem que saiba usá-las muito desembaraçadamente contra os irritantes ultramontanos que com suas exagerações comprometem dia a dia a causa de uma Religião que é toda paz e amor. Contra estes mostra-se exacerbado e duro o homem de bem liberalizado, contra estes é azedo seu zelo e acre sua polêmica e agressiva sua caridade. Por isso exclamou o Pe. Félix em um discurso célebre, a propósito das acusações de que era objeto a pessoa do grande Veuillot: `Senhores, amemos e respeitemos até aos nossos amigos’. Mas, o bom liberalismo não faz assim: guarda todos os seus tesouros de tolerância e de caridade liberal para os inimigos jurados de sua Fé. É claro, pois, como poderia o infeliz atraí-los? Em troca, não tem senão o sarcasmo e a intolerância cruel para seus mais heroicos defensores. Em suma: ao homem de bem liberalizado aquilo da oposição diametral de Santo Inácio em seus Exercícios Espirituais, nunca lhe pôde entrar. Não conhece outra tática senão atacar pelos flancos, o que em matéria religiosa costuma ser o processo mais cômodo, não porém o mais decisivo. Bem quereria ele vencer, mas sob condição de não ferir o inimigo, nem de lhe causar mortificação ou enfado. O homem de guerra lhe põe em polvorosa os nervos; mais lhe agrada a pacífica discussão. Está pelos círculos liberais em que se perora e delibera, não porém pelas associações ultramontanas em que se dogmatiza e increpa. Em uma palavra, se por seus frutos se conhece o liberal petulante, o liberal manso se distingue por suas afeições.

“Por estes rasgos mal perfilados, que não chegam a parecer esboços, e muito menos verdadeiros e perfeitos retratos, será fácil conhecer desde logo qualquer dos tipos da família em suas diversas graduações. Resumindo em poucas palavras o traço mais característico de sua respectiva fisionomia, diremos que o liberal petulante ruge seu liberalismo; o liberal manso o perora; aquele que tem simples laivos de liberalismo o suspira e choraminga.

“Todos são piores, como dizia de seu pai e sua mãe aquele patife da fábula; mas ao primeiro paralisa muitas vezes seu próprio furor; ao terceiro sua condição híbrida, por si mesma infecunda e estéril. O segundo é o tipo satânico por excelência, é o que em nossos tempos produz o verdadeiro estrago liberal”.

Nos tempos do autor, talvez. Mas hoje em dia é o liberalismo “choramingado e suspirado” dos da terceira categoria, que constitui um dos maiores tropeços da Igreja.


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