Plinio Corrêa de Oliveira

 

Carolas

 

 

 

 

 

Legionário, N.º 462, 20 de julho de 1941

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Costuma-se dizer que no Brasil não há heresias. Ainda que fechemos os olhos, (...) ainda que continuemos a ignorar as grandes heresias sociais que são o liberalismo e o totalitarismo, (...) a asserção não é verdadeira. Com efeito, há uma série de idéias que, no fundo, são perfeitamente heréticas, que implicam na negação dos princípios mais essenciais de nossa Religião, e que entretanto circulam por nossos ambientes sem que as pessoas em cujo espírito elas encontram guarida notem que, na realidade, estão aceitando doutrinas condenadas pela Igreja. Trata-se não propriamente de doutrinas, mas de preconceitos, impressões, tendências psicológicas, que implicam na negação da doutrina católica. E só Deus saberá dizer no dia do Juízo Final quanto esses erros terão concorrido para afrouxar as almas no caminho do bem, macular nelas a pureza virginal da ortodoxia ou dos costumes, e finalmente atirá-las pela estrada larga da heresia, até a perdição eterna.

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Faz parte desse conjunto de preconceitos todo um mundo de erros, de antipatias, de más vontades que se oculta atrás da palavra “carola“. Qual o católico autêntico que já não a terá ouvido como suprema injúria que lhe é atirada por algum adversário de nossa Fé? Qual o principiante da Ação Católica ou das associações auxiliares que não terá ouvido a advertência: “Cuidado, porque assim você se tornará um «carola»?” Quanto e quanto rapaz se terá detido no caminho da perfeição exclusivamente porque não deseja ser tido como carola? Que dom tem esse vocábulo para inspirar em uns tanto desprezo, e em outros tanto terror? Seria talvez uma interessante página de sociologia analisar a função que exerce entre nós essa palavra, como bombarda de efeito seguro nas mãos de nossos adversários. Para que algum dia algum estudioso escreva essa página, aqui fica o despretensioso subsídio de certas observações diretas.

O assunto é complexo. O que vem a ser exatamente um “carola”? Quais os defeitos inerentes à “carolice”? Católico e “carola” são termos sinônimos? Qual a categoria de pessoas que gosta de criticar a “carolice”? Com que direito? Eis aí uma série de problemas que apresentam, de um lado, um aspecto indiscutivelmente jocoso, mas do outro lado uma inegável importância concreta. Essa idéia errada sobre a “carolice” tem feito ao Brasil mal talvez maior do que todos os panfletos heréticos. E, assim, se bem que do ponto de vista doutrinário o valor do assunto seja nulo, não deixa ele de oferecer relevante interesse a quantos se dedicam aos problemas concretos do apostolado.

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Comecemos pelos conceitos mais elementares. No espírito público, não há uma noção abstrata do que seja a “carolice”. Há apenas certas figuras típicas de “carolas”, que se consideram como realizadoras autênticas daquilo a que a piedade leva um homem, e portanto como uma prova exuberante de que homem nenhum deve praticar o catolicismo, sob pena de se desfigurar e passar a ser por sua vez um “carola”. Descrevamos sumariamente esses tipos como os considera a imaginação popular, e através disto chegaremos a encontrar, como resíduo comum de todas essas figuras de imaginação, um conceito mais ou menos preciso que devemos examinar.

Injuriosamente, caluniosamente, contrariando toda a evidência dos fatos, o público entende que encarna bem  o tipo do “carola”, por exemplo, um homem magro e esquálido, de longas pernas um tanto sinuosas, que mais são arrastadas pelo corpo do que servem para o carregar. Seu peito é curvo e estreito, e, ao longo dele, pendem dois braços longilíneos. “Pendem” é bem a palavra, pois que esses braços parecem servir apenas para estar pendurados ao corpo como a um cabide, e não para lutar, trabalhar ou agir. O pescoço é longo e projetado para a frente. No alto de tudo isto, uma cabeça vulgar, de cor desbotada, com olhos muito parados numa atitude que traduz ao mesmo tempo incompreensão e espanto. A voz é vagarosa e de pequeno volume, como são vagarosos e de pequeno volume os pensamentos. Os conceitos, os mais banais: apenas as idéias de que ninguém discorda, as reflexões que todo o mundo já fez, as impressões que todo o mundo já sentiu. Nas horas de perigo, é a personificação do medo. Na hora do trabalho é a encarnação da honestidade pachorrenta e ininteligente, absolutamente improdutiva e inteiramente estéril. Em suma, um infer-homem, que não se faz mau por falta de coragem, mas cuja piedade tolheu para ele todo o horizonte para uma formação espiritual viril, capaz de grandes feitos e grandes heroísmos. Por isto, basta vê-lo rezar. Tudo nele transuda lirismo. Sorri de modo perfeitamente incompreensivo. Faz gestos descomedidamente profundos. Fecha os olhos para se concentrar... e ao cabo de tudo isto sai idêntico ao que era antes.

Há, evidentemente, outros perfis de “carolas”. Há, por exemplo, o “carola” gordalhão, volumoso, de difícil locomoção, pachorrento, inerte, tolo, que se deixa ludibriar por qualquer pessoa, que se intimida diante de qualquer perigo, que ama acima de tudo a inércia, e que exatamente por isto não pratica o mal: pode trazer tantas complicações... Pelo contrário, a consciência tranqüila proporciona sonos tão leves e tão doces. O sossego antes de tudo! nada de aventuras! O ideal da vida é mofar em um canto, em paz com os homens e na doce ilusão de que também se está em paz com Deus!

E assim os exemplos se poderiam multiplicar indefinidamente...

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É curioso observar que essa série de conceitos errados, longe de dominar apenas os arraiais anticatólicos, também se esgueirou em certos ambientes católicos, ou supostos tais. Veja-se, por exemplo, certos manuais de devoção que mostram como se ajuda a Missa, e olhe-se qual o físico com que ali se desenha o coroinha: muitas vezes, é um mocinho de idade indefinida, que tem da adolescência a mocidade sem ter o viço nem a graça, raquítico, tímido, vestido com uma “fatiota domingueira” que há um século ninguém usa, penteado como jamais ninguém se penteou, com um sorrisozinho alvar nos lábios, dando atestado exato de que o “carola” é aquilo mesmo. O que prova isso senão que certas almas existentes perderam completamente a noção da realidade, e à força de ouvirem dizer que o “carola” é isso ou é aquilo, acabaram por achar que é mesmo?

 

Godofredo de Bouillon

Certos trabalhos que uma ou outra vez se lêem sobre o moço católico não concorrem para desfazer esta idéia. As suas grandes virtudes devem ser a mansidão, a docilidade, a conformidade, a prudência. Nenhuma palavra lembra que além destas preciosas qualidades o verdadeiro moço católico deve ter em alto grau a coragem, o denodo, a intrepidez, o espírito de iniciativa e de realização. Se um desses coroinhas - não dos que na realidade temos, mas dos que as vinhetas de certos manuais pintam - devessem pegar em armas para uma nova Cruzada, se tivessem sido dessa fibra os Godofredo de Bouillon, quando teríamos tido na História da Igreja aquelas magníficas expedições militares destinadas a fender de meio a meio os muçulmanos, para libertar o Santo Sepulcro do Salvador? Quem não vê que essa espécie de gente deixaria os escudos à beira das estradas e se poria a chorar? São esses os verdadeiros filhos da Igreja? Ou são somente uma triste caricatura do que deveriam ser?

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Todas as idéias que se ocultam atrás do conceito de “carola” têm como substractum comum a convicção de que o católico deve ser dotado de uma vontade fraca, exímio na prática de todas as virtudes passivas, e totalmente incapaz da prática das grandes virtudes ativas. Pondo de lado os erros que se poderiam emboscar nessa distinção entre as virtudes ativas e passivas, é preciso lembrar que o Catolicismo é, por excelência, a escola das almas grandes e fortes, capazes das audácias santas, das energias inquebrantáveis, dos empreendimentos ousados que a Fé sabe inspirar. Não há heroísmo verdadeiro e completo fora da Igreja. A santidade, que é o produto da verdadeira formação católica, outra coisa não é senão um grande heroísmo que empolga toda a alma e a torna capaz de gestos tão altos e tão grandes, que sem o auxílio de Deus o homem mais enérgico do mundo não seria suficientemente forte para os realizar.

Assim, pois, devemos trabalhar intensamente para que esse preconceito se dissipe de modo completo. O “carola” - e a realidade manda que se confesse que há alguns tipos correspondendo à triste descrição que foi feita - não é o católico autêntico, mas a caricatura do verdadeiro católico. A humildade não é pieguice, o amor ao próximo não é lirismo, a boa-fé não é estupidez. Pelo contrário, essas virtudes em lugar de amesquinhar o homem o elevam e o engrandecem. Um pequeno fato pode ilustrar tudo isto. Certo sultão muçulmano, preso na Europa durante a Idade Média, visitou as Catedrais famosas que então se construíam e teve esta exclamação: “Não posso compreender que as almas tão humildes dos monges que constroem esses edifícios possam entretanto levantar monumentos tão altivos”. Nessa humildade como nessa altivez está o segredo do perfeito equilíbrio.

A grandeza de alma, o arrojo, o espírito de combatividade que elimina a humildade é falso. Mas também é falso, e falsíssima, a humildade que diminua o arrojo, o espírito de combatividade e a altivez.


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