Plinio Corrêa de Oliveira

 

Um grave perigo para a América

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 19 de janeiro de 1941, N. 436

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Os Católicos não podem deixar de ver com a mais séria apreensão o movimento que, em certas democracias hispano-americanas, se delineia em favor de um reatamento de relações comerciais com a Rússia. O objetivo desta campanha está tão em desacordo com os princípios católicos que constituem o substrato de nossa civilização, que não pode deixar de desagradar todos os corações bem formados.

Examinemos detidamente o assunto.

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As relações internacionais podem ter duas razões distintas: a necessidade e a cordialidade. A História tem registrado, mais de uma vez, o caso de povos que, odiando-se profundamente e divergindo entre si pelos princípios fundamentais de sua civilização, pela estrutura da sua organização política ou social, por sua índole artística e feitio intelectual, se vem, entretanto, coagidos em manter recíprocas relações diplomáticas. Era este por exemplo o caso da Polônia e do governo soviético. A Polônia era católica e os sovietes ateus. A Polônia era um país liberal, de economia baseada na propriedade privada, e o regime soviético é totalitário e comunista. A Polônia tinha tradições históricas próprias, e a Rússia também, e o que figurava na tradição de ambos estes países era um ódio inveterado, multissecular, persistente e meticuloso, de um país contra o outro. Isto tudo não obstante, a Polônia e os sovietes mantiveram, até a guerra, relações diplomáticas. Não é preciso ser muito perspicaz para perceber que estas relações correspondiam a um imperativo de circunstâncias irremovíveis. Vizinhos, os dois países tinham, constantemente, incidentes de fronteira e atritos diplomáticos que ou seriam tratados por legações respectivamente acreditadas em Varsóvia e em Moscou, ou fariam irromper a cada passo uma guerra que se tornaria quiçá mundial.

Quando uma razão tão evidentemente forte obriga um país a manter relações diplomáticas com os sovietes, de nenhuma crítica é ele passível: estas relações não resultam evidentemente de qualquer condescendência para o regime supremamente abominável imposto à desditosa Rússia.

O mesmo fato se observa na história da Igreja. Quantas e quantas vezes, estando a Santa Sé em luta declarada com o governo de determinado país não retira dele sua legação diplomática! O motivo se explica. O Santo Padre tem súbditos espirituais em todos os países do mundo, e, por isto, seus deveres de Pai lhe impõem que mantenha junto a todos os países representantes diplomáticos que sejam, para o Episcopado e para os fiéis, um luzeiro, uma proteção, um ponto de união indefectível. Cortar as relações diplomáticas seria para Santa Sé, em certos casos (evidentemente não em todos), um ato de abandono incompatível com a índole maternal da Igreja. Evidentemente, esta continuidade de relações não pode ser atribuída senão a este fortíssimo motivo, e nunca a qualquer complacência da Cátedra infalível da Verdade, que é o trono de São Pedro, para com as heresias ou erros deste ou daquele governo.

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Como se vê, nossa posição nesse assunto nada tem de estremado, e, pelo contrário, reconhecendo com objetividade o caráter imperioso de certas circunstâncias, proclama implicitamente que há certos ressentimentos que se devem abafar e conter para a conservação de bens de ordem superior, quando se trata de relações internacionais.

Esta afirmação outra coisa não é senão o reconhecimento, na esfera internacional, de princípios admitidos pelo bom senso na esfera das relações individuais. Quantas e quantas vezes o dever nos impõe que silenciemos ressentimentos dos mais justos, em atenção a razões de ordem superior! É este o caso do esposo e da esposa que, tendo embora mil razões legítimas para se separar de um cônjuge culpado, prolonga a convivência com este em benefício dos filhos. É este, ainda, o caso de um amigo que, tendo embora mil motivos legítimos para romper algumas relações antigas, não o faz em atenção a um motivo de gratidão ou de caridade. Quantos e quantos exemplos disto se poderiam registrar! Em todos eles, a nobreza do ato decorre do sacrifício de uma consideração justa, a um princípio de ordem superior.

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Nada disto vemos no caso das relações hispano-americanas com o governo soviético.

Assaltada por um grupo de bandidos que em seu território proclamaram o regime bolchevista, a desditosa Rússia, na mão de seus algozes, outra coisa não tem sido senão uma infeliz vítima que, sob o olhar mais ou menos indiferente da humanidade inteira, vem sendo depauperada, sugada, oprimida e corrompida metodicamente por uma malta de celerados que, segundo a mais elementar justiça, já deviam ter sofrido pena capital de caráter infamante.

Não contentes com sugar e corromper um povo tão numeroso, tão rico de qualidades intelectuais e morais, tão cheio de promessas e de esperanças para a civilização, os bandidos bolchevistas ainda transformaram Moscou no foco das conspiratas, dos motins, dos crimes e dos levantes comunistas que se urdem pelo mundo inteiro. Não há antro de apaches nem foco de gangsters onde o banditismo tenha assumido uma forma mais perigosa do que na Rússia. O Brasil pode dar disto um testemunho. Em 1935, tivemos aqui um motim comunista, simultaneamente irrompido em vários pontos do território nacional. Derramado o sangue dos defensores da lei, e recolhidos à disposição da justiça os culpados pelo crime, não se restabeleceu, segundo declarou a própria autoridade, a ordem do País, e o Sr. Getúlio Vargas, em 1937, descrevia como tão agudo este perigo, que julgou encontrar na alteração radical de toda a organização nacional o único remédio para fazer face ao inimigo. Mas a que inimigo? As declarações oficiais foram peremptórias a este respeito: a bandidos vindos do estrangeiro com a missão expressa de dissolver a unidade nacional, de desagregar as famílias, pilhar e saquear as propriedades, incendiar os palácios e entregar o País ao domínio de Moscou. O que é, perto disto, a traição de um Calabar senão um inofensivo passatempo.

Felizmente, o governo tem feito contra o comunismo declarações tais e as razões apontadas como justificativa do golpe de 37 são tão peremptoriamente anticomunistas, que as próprias autoridades nos deram, no Brasil, os mais fortes motivos para afirmar que nossas relações com a Rússia soviética jamais serão estabelecidas: à inteligência indiscutivelmente sagaz do Chefe do país não passaria desapercebido que o Estado forte, assim, se desmentiria a si próprio.

Mas não foi só o Brasil que foi atingido pela ação criminosa dos bandidos de Moscou. Também a Argentina, o Uruguai, o Chile, e muitos outros estados latino-americanos podem atestar o que é a manobra subversiva da III Internacional em nosso Continente. Aliás, bastaria voltar os olhos para o desgraçado México e ouvir o clamor de vingança que o sangue dos mártires, como de Abel, eleva para o Céu contra os próceres bolchevistas de Moscou, para compreender o que é aquilo a que, enfaticamente, e por força do uso, se costuma chamar “governo soviético”. A expressão “governo” se aplica aos comunistas no sentido de que quem dirige os sovietes é aquele punhado de malfeitores. Assim também uma sociedade de apaches tem seu governo, isto é um punhado de bandidos que, mais refinados e mais corrompidos que os outros, dirigem a atividade coletiva. E até no inferno há um governo. Mas que o governo dos sovietes tenha, de governo, a legitimidade, a respeitabilidade, a autoridade moral, é um verdadeiro absurdo. Os dirigentes russos estão para os governos legítimos assim como Lúcifer está para São Miguel Arcanjo, ou o chefe de um bando de gatunos está para o chefe do destacamento policial que os persegue.

A este respeito, não há a menor diferença.

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Isto posto, só se compreende que um governo autêntico tenha para com o “governo” soviético aquela repulsa, aquela aversão, aquele desdém higiênico, que um homem de bem deve ter por um facínora. É legítimo que se trate com o facínora quando se quer discutir com ele a razão de uma pessoa que ele raptou. Mas não é igualmente legítima, por simples interesse pecuniário, convidar um facínora para casa, jantar com ele, cumulá-lo de toda sorte de atenções e, finalmente, lhe declarar uma amizade pública e oficial.

Assim também é compreensível que um país, como a Polônia, trate com um vizinho como os sovietes. Mas não é igualmente compreensível que a simples consideração de interesses econômicos leve um país a reatar as relações com a URSS. O lucro não é um bem superior àquele que o reatamento de tais relações sacrifica. Este reatamento não significa a subordinação de um objetivo nobre a outro mais nobre, e não pode, pois, ser aprovada.

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Favorecido por comentários simpáticos da imprensa fascista, um esforço neste sentido se vem desenvolvendo, entretanto, em duas Repúblicas dignas de toda a nossa fraternal amizade, isto é, na Argentina e no Chile. Na Argentina, o Governo sofre forte pressão neste sentido, por parte de grupos interessados. E um jornal chileno chegou a sugerir que agissem assim todos os países sul-americanos.

Por quê? Um telegrama publicado na semana passada parece fornecer-nos a chave do enigma. A exportação argentina à Rússia, feita provavelmente pelo Pacífico, em um grande comboio de navios, destinar-se-ia a aumentar o comércio da Rússia com “outras potências”.

Por maiores que sejam, entretanto, as vantagens comerciais daí decorrentes, esperamos que a Argentina e seus ilustres governantes, fiéis a suas nobres tradições, saibam rejeitar estas sugestões.


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