Plinio Corrêa de Oliveira

 

Opus justitiae pax

 

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 5 de janeiro de 1941, N. 434

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Em meu último artigo, procurei mostrar que aberram lamentavelmente do senso católico os fiéis que supõem atender a um dever de caridade desejando que a paz se restabeleça quanto antes no mundo, mas que entendem por paz uma cessação qualquer das hostilidades, que evite a qualquer preço a carnificina e a efusão de sangue ainda que por meio de graves injustiças internacionais.

Se a paz com justiça, a paz desejada pelo Santo Padre Pio XII com tão apostólico ardor, é um bem inestimável, a tranquilidade decorrente da injustiça consumada, e que implique na cessação de qualquer resistência contra os fatores de desagregação da civilização católica, não pode deixar de constituir uma monstruosa catástrofe para o mundo contemporâneo, certamente comparável ao que foi, para a antiguidade romana, a queda do Império do Ocidente.

* * *

Consideremos hoje o sentido corrente do vocábulo, que é ao mesmo tempo seu sentido mais restrito.

Não pode haver justiça quando se nega aos povos fracos o direito de existir. Não pode haver justiça quando se afirma que a ordem internacional não deve ser baseada sobre o princípio de igualdade fundamental e natural de todos os povos, mas sobre uma hierarquia anticientífica de raças, que, baseada na apreciação de valores acidentais ou imaginários, deseja fazer com que o mundo inteiro viva para o uso e gozo de um ou de poucos povos, supostos privilegiados. Todos estes conceitos implicam em uma violação radical da verdade, e em uma subversão fundamental da justiça, de modo que a paz baseada sobre eles outra coisa não seria senão a apoteose da injustiça.

Mas as injustiças que acabo de me referir não são as mais graves de que o homem é capaz. A violação dos direitos do próximo nunca poderia ser compreendida em toda a sua gravidade se não tivéssemos em mente que ela constitui ao mesmo tempo uma violação dos soberanos e adoráveis direitos de Deus. De todos os seres, nenhum há em relação ao qual o homem tenha direitos tão sagrados como Deus. A diferença entre os direitos de Deus e dos homens se pode medir pela diferença que vai ao Criador à mísera criatura. E como a Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana, é o Reino de Deus na terra, é o Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo, é a depositária da Verdade, a Arca dos Sacramentos, inestimável obra-prima de Deus, não se pode ferir os direitos de Deus sem implicitamente ferir os da Igreja; e, por outro lado, não se pode ferir os da Igreja sem ferir os de Deus. Jesus Cristo e sua Igreja constituem o Esposo e a Esposa dos cânticos.

Seus direitos se confundem, e tentar separá-los já é violá-los.

Assim, se a paz só deve ser desejada pelos fiéis com a condição de que ela respeite os direitos dos homens, a fortiori deve ela parecer sumamente repugnante a qualquer coração verdadeiramente católico, se tiver por base o repúdio dos direitos de Deus.

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Tenho plena certeza de que muitos leitores, se bem que concordando em tese com o que acabo de dizer, sentem uma certa estranheza à vista da afirmação que faço. Direitos de Deus? Como poderia uma paz violá-los? Que relação pode haver entre uma coisa e outra?

O assunto é por demais complexo para ser debatido neste artigo.

Aliás, nem pode ele ser compreendido por quem não o analise com zelo. Todos sabem como o amor de Deus costuma multiplicar os recursos da inteligência e da vontade do homem, de sorte que eles se tornam aptos a compreenderem as coisas com uma clareza e com uma energia por vezes superiores a seus recursos naturais, desde que entre em jogo os sagrados direitos da Santa Igreja. É a estes espíritos que me dirijo.

Toda a vitória que represente não apenas o triunfo de um país mas de uma ideologia, não somente de um povo, mas de uma filosofia, evidentemente será uma derrota dos católicos, desde que essa ideologia teológica ou filosófica não seja a da Igreja. Assim, qualquer paz que signifique o franqueamento de todas as fronteiras à dissolução de doutrinas que são contrárias as de Jesus Cristo, será por certo uma paz que um católico não pode desejar.

Exemplifiquemos com a Rússia. De um momento para outro, pode este país entrar em guerra. Suponhamos que o curso dos acontecimentos internacionais fosse tal que a vitória da Rússia representasse não somente a vitória de um grupo de potências às quais ela estivesse aliada, mas a vitória única e exclusive da URSS sobre todos os beligerantes, de sorte que ela, ao vencer, se tornasse igualmente senhora dos vencidos e dos seus próprios aliados. Quem ousaria afirmar que tal desfecho não seria soberanamente perigoso para os interesses das almas? Quem ousaria negar que a paz estabelecida por meio do triunfo do governo soviético seria uma paz contrária à Igreja, a consumação da derrota da justiça, a abominação da desolação, enfim?

Não se pretenda, pois, que não pode haver interesse da Igreja em jogo em um conflito internacional qualquer. Pelo contrário, tais interesses podem existir, e apresentar carácter de rara relevância.

* * *

Poderá alguém sorrir ao ler estas linhas. Qual o valor da contribuição pessoal do “Legionário” ou de seus leitores no curso dos acontecimentos ciclópicos, em que as forças mais poderosas se empenham em luta de morte? Para que, então, tratar deste assunto?

A resposta é simples. Não há acontecimentos em que não esteja presente a providência de Deus. Não há armas que possam vencer a omnipotência do Criador. E não há graças que a oração não possa alcançar.

Em proveito dos supremos interesses de todos os católicos, que são os interesses da Igreja, em benefício dos interesses mais fundamentais e mais sagrados de nosso diletíssimo Brasil, ao par da mobilização de todos os recursos naturais, há sempre a mobilização possível dos recursos sobrenaturais, mais poderosos, mais decisivos, mais importantes do que aqueles.

Os estadistas de nossos dias confiam apenas nos braços que empunham fuzis. Longe de nós o imaginar que quem quer que seja esteja dispensado de empunhar o fuzil para cumprir seu dever para com a Igreja ou a Pátria. Mas há braços que, não podendo empunhar fuzis, podem empunhar certamente rosários, e os próprios braços que empunham fuzis sentirão decuplicar suas forças se souberem alternar o manejo da arma e a do Terço.

Para rezar, somos todos poderosos. Rezemos muito, e sobretudo rezemos bem.

A Sagrada Liturgia tem uma oração que se pede a Nosso Senhor a graça de conhecermos Sua Vontade, de modo que, pedindo-Lhe coisas que Lhe são agradáveis, consigamos obter o que por nossas preces suplicamos.

Se queremos a paz, peçamos uma paz conforme o Coração de Jesus, isto é, conforme as intenções de Pio XII. Porque se pedirmos uma paz que não seja a paz com justiça, a paz de Cristo no Reino de Cristo, que esperanças podemos ter de ser atendidos?


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